Há ou não resistência aos fármacos utilizados no tratamento da Leishmaniose? Portugal tem alguma investigação que o confirme? E na prática clínica, o que notam os médicos veterinários? A doença não é nova, o assunto também não, mas as dúvidas persistem. Enquanto isso, a indústria farmacêutica lança novidades ao nível da prevenção e do tratamento, os médicos veterinários sensibilizam mais e melhor e os proprietários estão mais informados.
Na 2ª edição do VetSummit, realizado a 3 de maio, Coralie Bertolani analisou a relação entre a Leishmaniose e a Doença Renal. A oradora, diplomada pelo Colégio Europeu de Medicina Interna, vive em Palma de Maiorca, uma região com forte presença da doença e chamou a atenção para o aumento preocupante das resistências aos fármacos para tratamento da Leishmaniose. Daí que a prevenção seja muito importante para evitar este problema.
“Já existe um artigo publicado sobre resistências a fármacos em cães”, disse. O artigo intitula-se: “Decresead antimony uptake and overexpression of genes of thiol metabolism are associated with drug resistance in a canine isolate of Leishmania infantum”, foi publicado em junho de 2016 no International Journal for Parasitology: Drugs and Drug Resistance e é da autoria de Verónica Gómez Pérez; Raquel García-Hernandez; Victoriano Corpas-López; Ana. M. Tomás; Joaquina Martin-Sanchez; Santiago Castanyns e Francisco Gamarro.
Já em 2002, os autores Jaume Carrió e Montserrat Portús chamavam à atenção para este tema num dos primeiros estudos efetuados “sobre a suscetibilidade na nossa área geográfica, através da publicação do ‘In vitro susceptibility to pentavalent antimony in Leishmania infantum strains is not modified during in vitro or in vivo passages but is modified after host treatment with meglumine antimoniate’, realizado em Barcelona e citado por Luís Lucas Cardoso, docente de Doenças Parasitárias no Mestrado Integrado em Medicina Veterinária da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), diplomado pelo Colégio Europeu de Parasitologia Veterinária e especialista veterinário europeu em Parasitologia, membro fundador do Observatório Nacional das Leishmanioses – ONLeish, e membro da associação europeia LeishVet.
Os resultados obtidos confirmam “observações anteriores sobre estirpes de doentes coinfetados com Leishmania / HIV e indicam o efeito do uso crescente de derivados de antimónio para o tratamento da Leishmaniose canina em áreas endémicas na emergência de estirpes resistentes a antimónio de Leishmania”, pode ler-se no estudo.
Coralie Bertolani explicou à VETERINÁRIA ATUAL que “há alguns casos que não respondem ao tratamento como seria esperado. Obviamente poderiam ser infeções secundárias a doenças concomitantes, mas na Medicina Humana, e mais recentemente na Medicina Veterinária, têm havido descrições de resistência ao antimoniato de meglubina ou ao alopurinol para cães já tratados. Essa é naturalmente uma das principais preocupações atuais, especialmente nas zonas em que a incidência da Leishmania é alta”. No que respeita à prevenção propriamente dita, mesmo os cães que foram vacinados podem desenvolver a doença. “Ainda que a haja uma grande efetividade vacinal contra a Leishmaniose, a proteção das vacinas não é de 100%”, refere a diplomada.
E em Portugal?
No nosso país não existe ainda uma conclusão científica a propósito da resistência aos fármacos, “ainda que seja oportuno equacionar o problema em Portugal”, segundo Luís Lucas Cardoso. Na sua opinião, é de admitir que “existam resistências a fármacos, sobretudo em relação àqueles que são mais frequentemente utilizados e há mais tempo. Noutros países em que a Leishmaniose humana atinge maior expressão do que em Portugal, como por exemplo a Índia, há resistência manifestamente comprovada de estirpes do parasita Leishmania a alguns fármacos. Estamos a falar da espécie Leishmania donovani, que não é a mesma que existe na Europa. No nosso Continente existe sobretudo a espécie Leishmania infantum. Seja como for há estirpes de Leishmania infantum provenientes quer de seres humanos, quer de cães, para as quais também já foram identificadas resistências a fármacos. Em Portugal é perfeitamente possível que alguns dos casos de insucesso do tratamento anti-leishmania verificados em cães se devam a menor eficácia de alguns tipos de fármacos”.
Os insucessos terapêuticos existentes em Portugal devem-se sobretudo à “diminuição da suscetibilidade ou resistências aos fármacos. Isto acontece, por exemplo, quando a mudança de um primeiro fármaco anti-leishmania para um segundo fármaco permite consideráveis melhoras clínicas nos cães”, revela o professor da UTAD. Relativamente à escassez de evidência científica, Luís Lucas Cardoso considera que “existem estudos laboratoriais de suscetibilidade de estirpes de Leishmania infantum a fármacos, mas não há monitorização clínica. E falta também a definição das bases genéticas das eventuais resistências”.
No que respeita à prática clínica já se denota esta problemática? Fomos tentar perceber com alguns médicos veterinários a perceção do problema mediante a prática clínica. Para Ricardo Almeida, DMV, MBA da clínica Vet Póvoa, “empiricamente é algo que suspeitamos há alguns anos. Quando comecei a tratar cães com Leishmaniose, desde que não houvesse insuficiência renal grave, bastava seguir o protocolo para termos uma taxa de sucesso muito elevada, conseguindo controlar o parasita por vários anos apenas com um ciclo de tratamento leishmanicida. Neste momento, apesar de termos muito menos casos positivos, as respostas ao tratamento têm sido variáveis e o controlo da doença tornou-se imprevisível”.
A clínica onde Ricardo Almeida exerce localiza-se em Coimbra, onde há “uma elevada prevalência da doença, podendo considerar-se endémica. No entanto temos uma tendência decrescente manifestamente marcada relativamente ao número de novos casos. Inversamente, o conhecimento da doença por parte dos tutores e a preocupação com a prevenção têm sido cada vez mais marcados”, explica.
Também a região de Viseu, Seia e Oliveira de Frades tem uma elevada prevalência de Leishmaniose, conforme constatado na prática clínica do Hospital Veterinário de Viseu (HVV). “Dada a quantidade de produtos disponíveis é geralmente fácil escolher um protocolo de acordo com o perfil do animal e cliente. Podemos não conseguir logo a adesão ao protocolo ideal (dentro do que existe no mercado) mas conseguimos, na grande maioria das vezes, que o tutor adira a parte significativa do sugerido”, explicam Helena Maia, diretora clínica do HVV e Cátia Nascimento, diretora clínica da Amipet (centro de saúde veterinário pertencente ao grupo do hospital). No que respeita aos tratamentos propriamente ditos, não verificam resistência aos fármacos. “Há alguns animais que permanecem com um título de anticorpos elevado, mas que apresentam controlo da sintomatologia clínica”, defendem.
Para Rita Vicente, médica veterinária responsável pelo departamento de Bem-Estar animal do Hospital Veterinário Casvet, na Parede, concelho de Cascais, o tema da resistência aos fármacos para a Leishmaniose “é tão ou ainda mais grave do que a resistência aos antibióticos. Se tivermos em conta a quantidade de opções que temos para tratar uma infeção bacteriana, comparativamente, as medicações disponíveis para o tratamento da Leishmaniose são muito inferiores”, defende.
Apesar de no hospital onde trabalha este problema ainda não se notar, a médica veterinária está preocupada com essa possibilidade e questiona: “Se as resistências aos fármacos utilizados forem cada vez mais uma realidade no nosso dia-a-dia como vamos conseguir travar esta doença e ajudar os nossos animais de estimação se não surgirem novas alternativas? Creio que num futuro próximo seja uma realidade com a qual vamos ter de conviver, o que acentua ainda mais a importância da prevenção, lema que utilizamos na nossa prática clínica diária”.
Uma vez que a casuística do Hospital Veterinário Baixo Vouga (HVBV) é relativamente baixa, Sónia Miranda, diretora clínica, não tem uma opinião muito fundamentada acerca do assunto. “No entanto, os casos diagnosticados têm respondido de uma forma favorável ao tratamento instituído e recomendado pela Canine Leishmaniasis Working Group”, avança. No Hospital Veterinário VetSet, em Palmela, a resistência aos fármacos para a Leishmaniose não é notada. “Tivemos apenas uma situação de um animal que já se encontrava numa fase muito avançada da doença, não respondendo ao tratamento, mas atribuímos essa circunstância ao facto dele se encontrar muito debilitado”, explica a diretora clínica Cristina Lemos Costa.
Mais informação, mais poder para controlar
Esta é uma doença que assusta os proprietários, “sobretudo nas zonas mais endémicas onde há a probabilidade de alguém ter um cão com esta doença que tem diferentes manifestações clínicas, e que em alguns casos pode ser severa. Não obstante, com um diagnóstico precoce, tratamento adequado e monitorização correta é possível verificar a evolução da doença e evitar a morte do animal”, explica Coralie Bertolani.
Para Ricardo Almeida, “virtualmente todos os casos podem ser controlados. No entanto, nas formas com manifestações viscerais graves (principalmente nas IRC’s), o prognóstico a curto/médio prazo pode ser pobre e a sobrevida muito curta”. Assim sendo, deve insistir-se sempre no tratamento? O médico veterinário assegura que sim. “Já tive alguns casos gravíssimos com sobrevidas e qualidade de vida superiores a dois anos. Não nos podemos esquecer que esta é uma doença relacionada com a imunidade humoral e que a resposta à terapia vai estar sempre condicionada por este facto. Ao início notava resistência por parte dos proprietários dos animais doentes, mas com o tempo, e o aumento de confiança nos tratamentos, esse fenómeno esbateu-se”, acrescenta.
Por outro lado subsistem mitos e informações erradas relativamente à doença que caberá aos profissionais de saúde desmitificar. “Antes de tudo é essencial que o médico veterinário conheça e esteja à vontade com a patologia de modo a poder atuar da melhor maneira possível em cada caso e a aconselhar sobre as melhores práticas. Depois basta sermos sinceros e transparentes com os donos, de modo a que a sociedade adquira cada vez mais confiança na nossa classe. Felizmente temos assistido ao longo das décadas a um aumento do profissionalismo por parte da classe médico-veterinária dedicada a animais de companhia. Como os tutores conscientes procuram um médico veterinário da sua confiança para se aconselharem parece-me que o tempo do ‘isso nem vale a pena tratar’ tem os dias contados”, sublinha Ricardo Almeida.
Todos os meses, a Vet Póvoa tem um tema. Com o início da época mais quente e o consequente aumento do número de mosquitos, o mês maio é indicado para sensibilizar ainda mais os donos para este problema. “Assim, toda a equipa se prepara para explicar a doença, desde o seu modo de transmissão, fisiopatogenia, sinais e sintomas, e essencialmente nos vários métodos de prevenção. Depois das dúvidas esclarecidas, o proprietário leva folhetos e outros materiais que temos preparados sobre o assunto e é encorajado a realizar o despiste, bem como a iniciar uma prevenção”, explica Ricardo Almeida. A maioria dos clientes já utiliza repelentes, pelo que a equipa centra-se mais em prevenções específicas.
Na Casvet, a maior dúvida dos tutores relaciona-se com a “Leisguard®, pois alguns pensam, erradamente, que ao utilizarem os mesmos nos seus animais de estimação, podem descurar a prevenção com repelentes não percebendo que essa é a única forma que temos de impedir a picada do flebótomo. Cabe-nos a importante tarefa de sensibilizar os tutores que todas as medidas profiláticas são ‘armas’ importantes para combater esta doença e que só a sua utilização em conjunto nos ajudará a diminuir a sua incidência. No entanto, estando o nosso hospital localizado numa zona endémica, notamos uma consciencialização crescente nos tutores, ou porque já experienciaram a perda ou porque alguém que lhes é próximo perdeu um animal com a doença”, explica Rita Vicente.
A doença é mortal e transmite-se aos seres humanos? São as duas questões mais colocadas pelos clientes do VetSet. “Quando explicamos que, na maior parte das vezes, a enfermidade é controlável, as preocupações centram-se sobretudo no custo do tratamento, na sua duração, e na expetativa e qualidade de vida futura dos animais”, esclarece Cristina Lemos Costa. Em virtude da península de Setúbal ser “uma zona endémica de Leishmaniose”, os clientes estão bastante sensibilizados para a doença. “Isto deve-se não só porque os alertamos para esse facto nas consultas, mas porque quase todos têm conhecimento de animais afetados na sua vizinhança”, sublinha a diretora clínica.
A possibilidade de cura é a maior inquietação dos clientes do HVBV. “Ainda não existe cura no caso desta doença. Outras dúvidas frequentes surgem quanto à forma de contágio ou se se pode transmitir por via direta aos humanos”, revela Sónia Miranda. Esta é também uma preocupação denotada no Hospital Veterinário do Cacém, Alma Veterinária, especialmente em relação ao contágio de crianças.
“Outra questão frequente prende-se com garantia de eficácia do tratamento, a par do custo elevado do mesmo. Atualmente, os maiores desafios clínicos são as formas de doença sem produção de anticorpos (aquela em que a resposta celular é mais frequente). Estas situações têm diagnóstico mais complicado e monitorização difícil tornando crítico prever a evolução da patologia”, esclarece a diretora clínica Susana Azinheira. Ainda que a sua equipa não tenha detetado nenhum caso de resistências ao tratamento, acredita que “é inevitável que tal situação ocorra, fruto da sua utilização frequente e das baixas dosagens”, defende
Enfrentar e melhorar os desafios
Nesta doença em particular, como em outras, os desafios clínicos são vários. “O tratamento é prolongado e dispendioso, há sempre o risco de reinfeções e recidivas. Se por um lado cada vez mais nos aparecem animais sem qualquer sintomatologia, que são diagnosticados em consultas vacinais de rotina, por outro temos os que chegam com um quadro de insuficiência renal avançado, e consequentemente, um mau prognóstico. É importante salientar que tanto os cães portadores assintomáticos, como os que manifestam a doença irão infetar flebótomos e auxiliar na propagação da doença. Deste modo, a nossa preocupação é informar e sensibilizar os tutores para a prevenção e assim mantermos os nossos amigos connosco durante muitos anos”, salienta Rita Vicente.
No caso do HVBV, os maiores desafios clínicos “residem no diagnóstico e nas respostas ao tratamento. Na Leishmania, cada caso é um caso e apesar de existirem guidelines para o tratamento desta doença, a resposta é sempre individual e muito variável”, explica a diretora clínica.
Helena Maia e Cátia Nascimento consideram que a resposta dos laboratórios “ainda é insuficiente. Ao nível da prevenção há spot-ons que não têm uma eficácia muito duradoura (inferior a três semanas) e a eficácia vacinal idealmente também deveria ser maior. No entanto já é um passo à frente podermos dispor de duas vacinas contra a Leishmaniose e esperamos também que o preço das mesmas vá baixando. É outro fator positivo podermos dizer ao tutor que, em uma só dose de primovacinação, com a vacina mais recente, conseguimos induzir uma boa proteção por um ano, mas não chega…”, defendem.
Em relação ao tratamento, as médicas do HVV consideram que a resposta “é razoável. O facto de podermos transformar uma doença incurável numa doença crónica (assim costumamos falar ao tutor) já é bom. No entanto continua a fazer falta um tratamento que elimine definitivamente a infeção! Era bom que surgisse uma apresentação veterinária do alopurinol (tratamento mais comum usado a longo prazo)”.
Coralie Bertolani considera que os maiores desafios passam por identificar, tão cedo quanto possível, cães com Leishmaniose e tratá-los com os fármacos mais corretos e nas doses mais indicadas. “Outro desafio passa por identificar as resistências da medicação atual e usualmente mais utilizados, de forma a adotar protocolos em casos muito específicos. Finalmente, os standards para o tratamento da doença tenderão a ser mais multimodais”.
No que respeita às novidades ao nível da profilaxia, Cristina Lemos Costa refere que “a nova vacina LetiFend® criou uma enorme expetativa, porque ao contrário da vacina já existente, na primovacinação só necessitamos de inocular uma única dose, e devido ao facto de ser uma vacina de tecnologia DNA recombinante, não interfere com os testes serológicos ELISA e IFI, e também não deverá provocar reações alérgicas. Até ao momento temos tido uma boa adesão, mas como em qualquer nova terapêutica quer seja preventiva, quer curativa, a sua verdadeira eficácia só será comprovável a médio ou longo prazo”.
Ricardo Almeida concorda com as teorias relacionadas com as resistências ao tratamento por parte da Leishmania. “Tal como está a acontecer com as bactérias, considero que o grande desafio vai ser a Medicina conseguir andar um passo à frente da seleção natural, e consequentemente, dos parasitas resistentes. Para já faltam estudos para tentar determinar os mecanismos de resistência. De qualquer das formas é necessário ter todos os cuidados com a execução dos protocolos terapêuticos de modo prevenir a transmissão de parasitas resistentes. Tal como nos antibióticos, o tratamento poderá ter de ser ajustado à agressividade do parasita. Por outro lado, a prevenção da picada do Phlebotomus deve ser mantida quer em animais normais, quer nos portadores. Como em todas as doenças transmitidas por mosquitos, considero imperativo atuar sobre os vetores, já que a história nos provou que atuar nos reservatórios não é solução a longo prazo”, conclui.
Nos últimos três anos, o grupo das Doenças Parasitárias do I3S / IBMC, coordenado pela Professora Anabela Cordeiro da Silva, participou em dois projetos europeus: NMTRYPL (New Medicines for Trypanosomatidic Infections: HEALTH.2013.2.3.4-2) e KINDRED (Kinetoplastid Drug Development: strengthing the preclinical pipeline: HEALTH.2013.2 .3.4-2). “Obtivemos, a partir destes estudos, alguns novos fármacos promissores para o desenvolvimento futuro. Um destes novos fármacos tem a vantagem de poder ser administrado por via oral, ser mais eficaz, menos tóxico e reduzir o desenvolvimento de novas resistências. A resistência aos medicamentos na terapia humana para a leishmaniose é um dos problemas mais graves a nível mundial levando à necessidade da descoberta de novas moléculas ativas”, explica Anabela Cordeiro da Silva, directora do grupo de Doenças Parasitárias do I3S/IBMC e professora de Imunologia na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto. A docente esclarece que, “em algumas regiões do mundo, como Bilhar, na Índia, a resistência à terapia convencional (derivados de antimónio) atinge 60% dos casos. Mesmo no Brasil, apesar do uso de fármacos mais recentes como a Anfotericina B e a Miltefosina, 10% dos tratamentos falham. A nível do tratamento da leishmaniose canina será uma questão de tempo até que casos de resistência sejam reportados”.