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«Há muitos cancros que se curam»

«Há muitos cancros que se curam»

Tal como na medicina humana, a oncologia veterinária tem vindo a sofrer desenvolvimentos nos últimos anos, que permitem agora diagnósticos mais precisos e possibilidades de tratamento mais eficazes, aliados a uma maior consciencialização dos donos para o problema. Apesar desta evolução, o cenário ainda não é o ideal, faltando um centro de radioterapia e mais investimento em I&D.

Comum em animais domésticos, a incidência dos tumores aumenta com a idade e há mesmo quem aponte a doença como responsável pela maioria das mortes de animais com mais de dez anos.

A exercer essencialmente na área da oncologia, Joaquim Henriques afirma desconhecer estudos sobre a prevalência de cancro nos animais em Portugal. Porém, reporta os casos de Itália, Reino Unido e EUA em que se regista «em média 35% a 40% de prevalência de cancro em animais. Destes tumores, dependendo da população analisada, os mais comuns são o linfoma, os tumores de mama e os tumores de pele e tecido subcutâneo».

 

Cancros de maior prevalência

Como explica Nélia Carvalho, da Clínica Quinta do Anjo, «apesar de existirem muitos tumores cutâneos associados à exposição solar prolongada em Portugal, especialmente em gatos com mucosas despigmentadas (nariz, olhos e até orelhas), os tumores da mama são ainda os mais prevalentes». E, se no caso das gatas estão «claramente associados à utilização da pílula como forma de anticoncepcional, nas cadelas resulta de uma vida inteira de cio ou das pontuais injecções para supressão do mesmo», elucida.

 

Uma das formas de prevenção deste tipo de cancro é a esterilização do animal, mas como conta a médica veterinária a exercer em Almada «já é comum a esterilização de gatas logo antes do primeiro cio, mas nas cadelas é ainda uma escolha tardia, até porque é mais caro dado tratar-se de um animal maior».

Já Someia Umarji, da ZenVet, clínica em Fernão Ferro, refere os linfomas (nos felinos) e os tumores de pele (nos caninos) como sendo os cancros com maior prevalência. Além disso, a médica veterinária aponta ainda os mastocitomas como os mais frequentes dentro deste último grupo e, destaca também, nas fêmeas, o tumor de mama como «o mais relevante».

 

Outro tipo de tumor que tem vindo a aumentar a sua prevalência são os intracranianos, «agora que temos disponível TAC e RM em Portugal, embora ainda não ao alcance de qualquer bolsa», refere Nélia Carvalho
Além disso, a prevalência de linfomas é elevada quer em cães, quer em gatos, «nestes associada ou não ao vírus da leucemia felina, cuja vacinação em Portugal continua a não ser feita por sistema», salienta.

Raças mais afectadas

 

Entre a classe médica há quem aponte algumas raças como mais propensas a sofrer deste tipo de patologias. Entre elas destacam-se o boxer, o pastor alemão, o retriever e o dobermann. Nélia Carvalho diz mesmo que «há claramente predisposição genética de algumas raças puras para o aparecimento de alguns tumores», apontando como exemplos os mastocitomas nos boxers ou os hemangiossarcomas nos pastores alemães.

Também Someia Umarji defende que as raças denominadas puras, e cujo cruzamento possuiu maior consanguinidade, são «as que se encontram dentro do grupo de maior risco para a patologia cancerígena». Contudo, esta médica veterinária advoga que, «com o aumento da longevidade dos animais de estimação, outros factores para além da raça passam a ser determinantes. A geriatria é por si só um factor crescente na lista que contribui para a prevalência da doença».

Mais cauteloso, Joaquim Henriques diz que o estabelecimento de uma relação directa entre determinada raça e tipo de cancro depende da população estudada. «Por exemplo, se estudarmos uma população animal como a portuguesa, em que a maioria dos cães são de raça indeterminada e os gatos são europeus comuns, podemos dizer que são raças com maior prevalência», explica.

Contudo, como elucida o médico veterinário, «quando se fala de raça mais afectada, tem de se ter em conta o tumor de que se fala. Por exemplo, o boxer é uma raça com maior risco para linfoma e mastocitoma, enquanto que os cães de raças grandes são predispostos a tumores ósseos. Existem ainda casos especiais de associação entre determinado tumor e raça: os bouviers da Flandres têm predisposição para desenvolver histiocitose maligna e nos boxers, na sua maioria, os linfomas tendem a ser do fenótipo T. Nos gatos os siameses são talvez das raças com mais tumores reportados, mas provavelmente por serem a raça mais comum».

Factores de risco

Mas existirão factores de risco para o aparecimento deste tipo de patologias nos animais? Someia Umarji afirma que sim. Além da questão genética, associada na maioria dos casos «à manipulação que é exercida pelos “criadores” em busca das características fenotípicas que entendem ser ideais de uma raça, a pressão exercida sobre os genes que originam os factores de “beleza” incluem cada vez mais genes que transportam patologias». Assim, no entender da especialista em medicina veterinária holística, «a herança oncológica acaba por ser herdada em conjunto com os genes (na sua maioria recessivos) dos fenótipos que interessam ao homem». E, como salienta ainda, «os adenocarcinomas, os mastocitomas e os linfomas estão a ser cada vez mais estudados e documentados relativamente ao componente genético».

Mas não é apenas o factor genético que influi no aparecimento destas patologias. Também o meio ambiente desenvolve «um papel importante» no aparecimento do cancro. E neste âmbito engloba-se a alimentação, o exercício, o stress, a vivência em ambientes poluídos ou de pouca higiene, a fraca imunização ou a toma de determinados medicamentos.

Joaquim Henriques aponta mesmo exemplos, como os gatos expostos ao fumo do tabaco (que vivam com fumadores) «que têm um risco seis vezes superior de desenvolver linfoma e carcinoma espinocelular na boca. Da mesma forma, os cães que moram em zonas industriais ou zonas de tratamento de lixo parecem ter maior risco de desenvolver determinadas neoplasias».

Também os vírus predispõem para o aparecimento de tumores, como o caso do «papilomavirus felino que promove desenvolvimento de carcinoma espinocelular e o FeLV (vírus da leucemia felina) que predispõe a tumores linfóides», esclarece o especialista em oncologia.

Além disso, Joaquim Henriques salienta entre as causas genéticas «a presença do cromossoma de Reileigh nos cães com leucemia mieloide crónica, o equivalente ao cromossoma de Filadélfia nos humanos com a mesma doença. Este cromossoma vem da fusão de partes de dois cromossomas normais, e na sua fusão dá origem a uma mutação genética que torna as células cancerígenas».

Someia Umarji acrescenta ainda o facto de os medicamentos usados, desde corticóides aos imuno-estimulantes de várias naturezas, poderem influenciar o modo de funcionamento do sistema imunitário, comentando que, «actualmente, sabe-se que um sistema imunitário débil é uma porta aberta ao aparecimento de patologias oncológicas».

Dificuldades no tratamento

Apesar da possibilidade de diagnósticos mais precoces, os médicos veterinários enfrentam ainda algumas limitações no âmbito dos tratamentos, até porque as possibilidades são algo limitadas. E, ao contrário do que se poderia pensar, Nélia Carvalho diz que este entrave se prende não com o facto de o tratamento ser caro ou com grandes efeitos secundários para o animal, «mas porque é difícil para as clínicas ter acesso aos quimoterápicos. Não são de venda, nem nas farmácias hospitalares».

Assim, nos casos para os quais não tem possibilidade de resolver, a directora-clínica recomenda o trabalho do colega Joaquim Henriques, do CDVet, «que tem um bom stock de fármacos e autorização especial para os administrar da melhor forma». Este médico veterinário defende uma legislação que «permitisse aos veterinários, com formação e experiência na área, adquirirem mais facilmente medicamentos citotóxicos».

Já no caso dos meios de diagnóstico explica que os mais avançados estão «normalmente só nos centros de referência e universidades, pois necessitam de pessoal especializado para os executar». E nestes locais faz-se cirurgia, radioterapia, quimioterapia, terapia fotodinâmica, imunoterapia, transplantes de medula em cães e gatos com cancro, «tal qual como nos humanos». Aliás, o especialista revela que «muitos dos meios terapêuticos agora usados em humanos são, muitas vezes, utilizados primeiro em animais, como é o caso da vacina do melanoma desenvolvida pela Merial, nos EUA, que resultou dum esforço conjunto entre veterinários e oncologistas humanos».
Por seu lado, Someia Umarji salienta que «na área da homeopatia já existem “gamas” de uso veterinário», embora ainda prevaleça o uso de homeopáticos de humana em diluições específicas para as patologias que se pretendem tratar.

Mas um dos maiores entraves no tratamento destas patologias prende-se com o facto de não existir ainda um centro de radioterapia em Portugal. Assim, como explica o especialista em oncologia, «os doentes têm de ir para Espanha, o que dificulta a opção dos proprietários».

Dilema da eutanásia

Tratar pacientes oncológicos é uma tarefa duplamente dificultada, porque os médicos veterinários além de terem de encontrar a solução clinicamente mais viável, ainda têm de lidar com a disponibilidade dos donos do animal, não só financeira, como de tempo para dedicar ao tratamento.

Apesar de considerar que os proprietários de animais de estimação estão «cada vez mais exigentes» e que, de certa forma, «acabam por permitir que realizemos melhores diagnósticos e que possam ser feitas sugestões de tratamento», Someia Umarji refere o factor económico como sendo um entrave no tratamento deste tipo de patologias, «mas a maioria opta por tratar “da melhor forma possível”».

Ou seja, «a grande maioria dos donos começa por perguntar por tratamentos e protocolos de quimioterapia mas, quando confrontados com a realidade de visitas regulares ao médico veterinário e uma esperança de vida de mais alguns meses apenas, acabam por pedir a eutanásia», revela Nélia Carvalho. A médica veterinária conta ainda que os tumores em animais jovens são «cada vez mais frequentes, mas são os geriátricos que apresentam maior prevalência de tumores e, logicamente, não conseguimos esticar a esperança de vida destes animais a anos (e os meses parecem aos donos muito pouco para o esforço da quimioterapia)».

No caso da cirurgia, «quando possível e curativa», o facto de ser onerosa também «pode tornar difícil convencer os donos a tomarem essa opção», confessa Nélia Carvalho.

Situação idêntica relata a especialista em médica veterinária holística que diz que «ainda nos deparamos com as decisões sobre eutanásia, seja a actualmente chamada “eutanásia económica” – um fenómeno observado devido à crise económica – seja por motivos como a perda de qualidade de vida ou ainda a pequena expectativa de longevidade que alguns tratamentos podem oferecer».

Joaquim Henriques advoga que «a eutanásia só deve ser considerada quando se esgotaram as opções terapêuticas», sublinhando que «há muitos cancros que se curam».

Medidas de prevenção

Mas mais do que curar, há que saber como evitar o seu aparecimento. Assim, além de recomendar aos donos estarem atentos aos sinais no animal, acredita-se que «as boas rações, ricas em antioxidantes e ácidos gordos, selénio e zinco, equilibradas, tal como nas pessoas, promovem uma boa renovação celular e diminuem o aparecimento de células anómalas e posteriormente tumores». Daí que Nélia Carvalho defenda que esta é uma das principais medidas de prevenção de doenças oncológicas.

Contudo, a directora-clínica acredita que, numa época de crise económica, «a opção de muitos donos por rações de má qualidade vai certamente, a longo prazo, aumentar a prevalência de tumores». Além disso, salienta que as opções de ração também sofreram uma grande evolução e que «até já há no mercado rações para animais doentes oncológicos».

Medicina veterinária vs. humana

Fruto de uma maior investigação e desenvolvimento e também porque «a casuística na medicina veterinária é muito menor», as médicas veterinárias entrevistadas consideram que, normalmente, se anda a “reboque” da medicina humana e, como explica Nélia Carvalho, «muitas vezes começamos a utilizar protocolos que não foram experimentados nos animais, depois de já estarem testados e estabelecidos nos humanos».

Porém, Joaquim Henriques, explica que não é bem assim. «Muitos meios terapêuticos, ou medicamentos, são utilizados primeiro em animais. Os resultados nos animais vêem-se mais rapidamente, pois o que se pode esperar para ver numa pessoa ao fim de cinco anos, pode observar-se num animal ao fim de um ano».

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