A Lidel lançou recentemente o “Manual de Necrópsia Veterinária”, da autoria de Augusto Faustino, George Stilwell, Hugo Pissara, Jorge Correia, José Ferreira da Silva, Patrícia Dias-Pereira, Tânia Carvalho e Maria da Conceição Peleteiro, que assumiu igualmente a sua coordenação. Em entrevista, a professora catedrática de anatomia patológica na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa revela o porquê da urgência deste manual.
Por que razão criar um manual de necropsia veterinária?
Em 1962, os patologistas Nunes Petisca e Tavares Montano publicaram um livro sobre técnicas de necrópsia, que funcionou como uma base para a técnica de realização de necrópsias durante muitos anos. Eu ainda apanhei esta edição quando estudava, há 40 anos. No entanto, após a edição ter esgotado, deixou de haver qualquer livro em língua portuguesa que desse a indicação aos alunos – logo aos futuros médicos veterinários – de como realizar uma necrópsia. E quem diz aos alunos, diz aos próprios profissionais. Estes aprendem a técnica durante a sua formação, mas como podem não a praticar durante muitos anos poderão ter de a reaprender mais tarde. Sempre sentimos, como professores, necessidade de ter um texto que auxiliasse os alunos e que, ao mesmo tempo, estes pudessem usar, mais tarde, como profissionais quando precisassem de realizar uma necrópsia”. Por outro lado há muitas circunstâncias associadas à realização de uma necrópsia que convém saber, mesmo por quem só as realiza esporadicamente, nomeadamente como colher o material, como fazer a sua preservação, como enviá-lo para o laboratório, como fazer um relatório de necrópsia.
E a lei que criminaliza os maus tratos a animais ainda veio tornar todas estas questões mais relevantes…
Sim, hoje em dia, com a nova legislação que criminaliza atos contra animais tornou-se muito importante. Os médicos veterinários têm uma intervenção cada vez mais intensa no capítulo das necrópsias forenses. Os patologistas são chamados a fazer a interpretação de lesões que ocorrem em cadáveres, que podem significar que os animais foram sujeitos a maus tratos e isso implica ter uma forma de elaboração de relatórios diferente da do relatório que fazemos simplesmente para identificar a causa de morte, por exemplo. Há condicionantes associadas a esta patologia forense que para nós também são novas e que entendemos que a classe, de uma forma geral, precisa de conhecer. Por outro lado é necessário perceber que estas condicionantes da necrópsia forense obrigam a que elas sejam realizadas por pessoas devidamente preparadas para o efeito, pois há requisitos importante que é preciso respeitar.
Quais as principais diferenças do vosso “Manual de Necrópsia Veterinária” relativamente ao dos patologistas Nunes Petisca e Tavares Montano?
Incluímos matérias que não existiam na obra destes patologistas, nomeadamente necrópsia de peixes, roedores e répteis. De salientar que também tivemos a preocupação de tornar este livro o mais didático possível e recorremos, para demonstração das necrópsias e de exemplificação, a desenhos e não a fotografias. Na verdade, recorremos a um colega, o Diogo Guerra, que também faz desenho científico, e que fez um trabalho espetacular, reproduzindo aquilo que lhe pedimos.
O que nos pode adiantar em relação aos temas tratados no manual?
Tentamos esgotar todas as hipóteses. Não esgotamos todas as espécies animais, mas esgotamos aquelas que se consideram os animais domésticos (animais de companhia e de interesse económico). Nas necrópsias do roedor, o exemplo que usamos é o morganho, porque é o animal mais utilizado em investigação; na área dos exóticos escolhemos os répteis; abordamos os peixes porque hoje em dia é uma espécie de interesse económico e tem de ser necropsiada pelos médicos veterinários que acompanham a produção. E, por último, também abordamos a necrópsia das aves.
Quais os principais desafios deste projeto?
Todos nós fazemos necrópsias como sendo a nossa atividade regular e a ideia foi aproveitar esta nossa experiência. Aquilo que transcrevemos não é conhecimento académico (no sentido do conhecimento livresco), é conhecimento baseado na prática regular porque são centenas de casos que nos passam pelas mãos. Anualmente, na Faculdade realizamos centenas de necrópsias e em muitas espécies. Por isso, um dos nossos desafios foi sermos bastante exaustivos e, por outro lado, encontrar pessoas que estivessem à altura de ajudar, ou seja, que tivessem mais experiência ao nível da necrópsia de algumas das espécies referidas.
Em termos de necrópsias, o que é mesmo importante os médicos veterinários terem em consideração?
Que uma técnica de necrópsia tem de ser rigorosa e seguir um protocolo do princípio ao fim. Esse protocolo é o garante de que todos os órgãos, aparelhos e sistemas são observados, de que não há falhas e de que o relatório final emitido está correto. Por exemplo, a abertura do coração não é fácil. Daí seguirmos um determinado protocolo que permite analisar todas as cavidades, todas as válvulas, medir e comparar a espessura da cavidade e das paredes, etc.
Os médicos veterinários, de uma forma geral, estão preparados para realizarem necrópsias?
Faz parte das competências de primeiro dia. Todos os médicos veterinários, quando saem das escolas onde fizeram a sua formação, saem habilitados a realizar necrópsias. Não é preciso ser-se patologista, mas obviamente que estes estão em melhores condições que os colegas porque é o nosso dia-a-dia.
Um dos capítulos do livro é sobre a eutanásia…
Sim, é um dos assuntos polémicos. Em medicina veterinária, a eutanásia não tem as limitações que tem em medicina humana. No entanto há regras, ou seja, não é qualquer animal que pode ser eutanasiado e a eutanásia não pode ser realizada de qualquer forma. Existem regras de bem-estar animal e regras a que uma eutanásia deve obedecer. Há medicamentos ou produtos químicos que não devem ser utilizados e outros que são aceites. E, além disso, existe a questão das doses ou da sequência de administração para que o animal primeiro entre em estado de inconsciência e depois então se introduza a técnica que o leva à morte. Tudo isto de modo a salvaguardar que não há sofrimento desnecessário.
Atualmente, quais as principais razões para necropsiar um animal?
Para saber a principal causa de morte ou de doença. Há muitos animais que não morrem de causa natural, têm de ser eutanasiados. A eutanásia é aconselhada porque o animal está muito doente e em sofrimento. Pede-se, por isso, ao patologista uma necrópsia para saber por que motivo morreu. Neste sentido, muitas vezes serve para confirmar o diagnóstico, outras vezes porque controlar uma epidemia que está a ocorrer num grupo de animais, etc..
Na sua opinião, dever-se-ia necropsiar mais?
Acho que sim. Sou presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) e deparamo-nos frequentemente com casos em que os donos fazem queixa à Ordem por suspeita de má prática profissional. E sistematicamente nestas situações os animais não foram necropsiados. Ou seja, o dono suspeita que o animal morreu porque o médico veterinário não o acompanhou como devia quando eventualmente o animal morreu porque era vítima de uma doença fatal e o colega não poderia salvá-lo. Como os colegas muitas vezes não têm o bom hábito de eles próprios fazerem necrópsias, às vezes ficamos na dúvida. Resumindo, os donos acusam o colega de má prática e este não tem meios de defesa. A falta de recurso à necropsia deixa o médico veterinário numa posição muito frágil porque não tem maneira de provar claramente o que era melhor para o animal. Há muito campo para fazer mais necrópsias e espero que este livro contribua para isso.
Maria Conceição Peleteiro, além de professora na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, também é presidente do presidente do Conselho Profissional e Deontológico da OMV.
Que balanço faz deste tempo como presidente do Conselho Profissional e Deontológico da OMV?
O trabalho do Conselho tem estado a correr muito bem e gosto muito da equipa que formamos. Percebo que, para quem começa, não é fácil porque ter um processo em mãos é uma enorme responsabilidade. Temos algum trabalho acrescido, por decisão do Conselho Diretivo atual, dado que somos nós que lemos as folhas de reclamação e fazemos a triagem do que são assuntos deontológicos ou não. Saliento que o CPD não se limita a ser disciplinar, também é deontológico. Não há reunião que tenhamos tido até aqui que não tenhamos emitido recomendações para que os colegas possam ter orientações.
Em termos futuros, o que perspetivam fazer?
Perspetivamos uma revisão do código deontológico, mas ainda só debatemos os assuntos. Temos um volume de trabalho muito grande, mas felizmente um bom apoio jurídico e um elemento de secretariado só para nós, o que tem sido fantástico. Às vezes o conselho recebe pedidos de resposta imediata que, se não houvesse alguém na OMV a fazer essa triagem, daríamos resposta dali a um mês quando nos reuníssemos e não pode ser. Há colegas que às vezes precisam da resposta em dois dias. Temos de ser rápidos na nossa relação com a classe. Por isso tem sido um desafio muito interessante. Gostaríamos de ser mais rápidos, mas não é possível. O chamado regulamento disciplinar impõe prazos, até bastante largos, períodos de pergunta/resposta que leva que um processo aberto hoje dificilmente esteja encerrado, mesmo para arquivamento, antes de seis meses. Estamos a trabalhar bem, mas é preciso que os colegas percebam, e mesmo a sociedade civil, que todos os elementos que trabalham nos órgãos sociais da OMV fazem-no de forma voluntária.