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Médicos Veterinários

O dever de proporcionar as melhores condições possíveis aos animais a nosso cargo

Qual o papel dos clínicos de bovinos nos dias de hoje?

O termo especismo não é novo, remonta à década de 70, e pressupõe a discriminação de uma espécie animal em detrimento de outra. O tema surge numa altura em que as atenções da sociedade estão voltadas para o bem-estar animal. Mais importante do que debater conceitos, na perspetiva do médico veterinário George Stilwell, é a atuação que permite mitigar o sofrimento animal. E neste circuito, a influência do médico veterinário junto dos produtores é essencial.

Recentemente, em entrevista à Rádio Observador, falou sobre o termo especismo. O que motivou o debate sobre o tema?

 

A entrevista surgiu com o objetivo de contestar algumas das afirmações que foram feitas pelo jornalista José Rodrigues dos Santos no lançamento do livro O Jardim dos Animais com Alma, em que este falava sobre a relação homem-animal e do impacto da produção animal, motivando assim o debate sobre o conceito de especismo. Nesta apresentação, foi feita a comparação do circuito de produção animal com o Holocausto e Auschwitz, o que, na minha opinião, acaba por ser um insulto às vítimas desses horrores. Mesmo tentando esquecer que se está a falar de humanos, no holocausto tínhamos uma intenção premeditada de eliminação de um povo recorrendo a métodos e práticas repletas de crueldade, de violência e de tortura, o que não acontece na produção dos nossos animais que são, pelo contrário, criados na procura constante da satisfação das suas necessidades. Achei que era demasiado ofensivo e, por isso, quis pronunciar-me sobre o assunto.

Quando surgiu o termo especismo e o que significa?

 

Surgiu no início dos anos 70 através de Richard Ryder, mas foi o filósofo australiano Peter Singer um dos grandes responsáveis pela difusão deste termo no seu livro Animal Liberation: A New Ethics for Our Treatment of Animals – lançando a questão da discriminação baseada na espécie, a qual denominou de especismo, comparativamente com o racismo e o sexismo. No entanto, gostava de começar por dizer que a comparação entre especismo e racismo não pode ser feita desta forma. O racismo na espécie humana é sempre censurável e inaceitável – não pode haver excepções – enquanto que o especismo é algo natural. Dentro do reino animal é claro que existe especismo, porque os animais tentam sempre preservar a sua espécie.  Os humanos fazem-nos o tempo todo, nem que seja entre os chamados animais superiores e inferiores. A desparasitação dos cães, com base na eliminação de parasitas, é um exemplo claro disso. É, portanto, necessário definir o grupo ou a linha a partir da qual não é aceitável a descriminação. Esta é uma linha difícil de traçar e é proposto que seja a senciência o factor conglomerante. Ou seja, há quem defenda que as espécies de demonstram senciência não devem ser descriminadas.

E que características apresentam efetivamente estes animais sencientes, que os permite distinguir dos restantes?

 

Um animal senciente dispõe de um sistema nervoso − mais ou menos complexo −, ou seja, é capaz de sentir dor e sofrimento. O grau e tipo de percepção ou de consciência já é bem mais variável. Por exemplo, a ciência diz-nos que o animal não tem propriamente a capacidade de ter expectativas em relação ao futuro, ou seja, o eventual sofrimento é algo que ocorre naquele momento e que é esse que é preciso combater.

Há, portanto, quem defenda que não deve existir discriminação entre os animais sencientes. São anti-especismo. Nesses casos, pergunto, porque consideram aceitável fazermos esterilização de gatos e cães para controlo da população? Não será uma forma de especismo já que nunca aceitaríamos tal prática em humanos, independentemente do tamanho da população? Estamos a ser especistas, por muito que se argumente que é para bem dos animais.

 

Na tentativa de defender um estatuto idêntico para humanos e outros animais sencientes, existe ainda outro argumento habitual, que se prende com o tratamento que damos a pessoas que não dispõe das suas funções racionais, como é o caso das pessoas que se encontram em coma, com atrasos cognitivos ou perturbações mentais. É argumentado que, assim como não se defende a descriminação desses humanos, também não se deveria descriminar os animais apenas porque não são racionais. Seria defensável discriminar essas pessoas? Obviamente que não! Por princípio, nós defendemos os membros da nossa espécie e para tal temos valores morais que são inultrapassáveis. Por exemplo, se uma vaca e uma pessoa morressem atingidos por um relâmpago, poucos se sentiriam revoltados em comer a carne da vaca, mas só em condições extremas se consideraria comer o humano. Pelo contrário, muito provavelmente ser-lhe-ia dado um enterro condigno.

O especismo entre os humanos e os restantes animais é aceitável. É a ordem natural.  Exactamente ao contrário do racismo, que deu origem ao holocausto que o jornalista pateticamente usou como exemplo.

Justificar a descriminação entre um porco e um cão, por exemplo, já é uma questão mais complicada. Há quem defenda que aquilo que não é permitido fazer ao cão, também não deveria ser permitido fazer aos porcos. O porco tem o mesmo grau de senciência de um cão, a mesma capacidade de dor e sofrimento, mas, no entanto, não lhe são atribuídos o mesmo estatuto nem protecção de certas práticas, como seja o abate. Isto tem a ver com a história comum e com aquilo a que alguns filósofos chamam de contrato social que se estabelece entre os humanos e os animais. No caso dos cães e outros animais de companhia esse contrato social inclui o acesso ao nosso grupo familiar mais restrito. No caso dos animais de produção, esse contrato social inclui a garantia da alimentação, abrigo, proteção de eventuais predadores e em troca servimo-nos dos produtos que eles fornecem, sejam ovos, leite ou carne.

*Leia a entrevista completa na edição de abril de 2022 da VETERINÁRIA ATUAL

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