Rafael Mala, médico veterinário no Poultry Health Services Ltd em Leominster, Herefordshire, no Reino Unido
Qual é a sua área de especialidade e porque escolheu essa área?
Sou médico veterinário avícola, trabalho essencialmente com explorações comerciais de aves − frango, ovo-produtoras, reprodutores de perus e um pouco de gamebirds ou aves para caça (faisões e perdizes).
Como surgiu a oportunidade de ir trabalhar para o estrangeiro? Onde trabalha neste momento?
Quando terminei o curso estava interessado na área de saúde pública e inspeção veterinária. Um dos meus colegas falou-me de uma empresa que estava a recrutar médicos veterinarios oficiais (inspetor sanitário) para matadouros e enviei o meu currículo. Desde a primeira entrevista, via Skype, ficaram curiosos com o meu currículo e a minha área de interesse − dado que a minha tese de mestrado foi em HACCP. No Reino Unido não há interesse dos colegas veterinários em áreas de saúde pública, são muito mais direcionados para trabalhos clínicos.
O que o fez tomar a decisão de ir para fora de Portugal?
Em primeiro lugar a oferta de emprego. Ofereceram-me emprego imediatamente e estavam muito interessados que me juntasse à equipa. Entretanto mudei de trabalho, de região, mas tive oportunidade de viver em lugares lindíssimos como Cornwall e Devon. O interesse pelo trabalho clínico desenvolveu-se e acabei por aceitar uma posição de médico veterinário avícola.
“A legislação em bem-estar animal implica a presença de médicos veterinários oficiais e, acima de tudo, a prestação de serviços veterinários permanentes. Somos uma peça essencial na sociedade”
Quais as diferenças que encontra entre os métodos de trabalho nos dois países? Ou seja, como é um dia de trabalho normal? O que faz?
Trabalho para uma empresa privada e o nosso horário é das 8h30 às 17h. Há uma rota de 1:16 durante a semana para out of hours, mas na maioria dos casos não há chamadas urgentes (há uma rota para o fim de semana também). Os médicos veterinários delegam muitas tarefas aos produtores − temos uma relação de trabalho com eles. Por exemplo, se precisar de adminstrar antibióticos, confio no produtor para dosear de acordo com a minha prescrição. O mesmo com as vacinas.
No meu trabalho acabo por fazer vários papéis, começo por ler bacteriologia e sensitividade antibiótica, ligo aos clientes para update e para decidir o plano de tratamento se necessário, ou discutir alterações de maneio que podem ser feitas na exploração para melhorar a performance (ventilação, higiene da água, etc). Grande parte do meu trabalho acaba por ser avaliar a mortalidade diária da exploração, os parâmetros de produção (consumo de água, alimento) e realizar Post-Mortem (PMs). Na minha clínica temos horário “aberto” no período da manhã para PMs, as tardes são normalmente dedicadas a visitas a explorações − desde visitas de rotina, de bem-estar, para health plans, pré-vacinação e de diagnóstico. A maior parte dos testes de diagnósticos são feitos in-house por uma equipa de técnicos de laboratório, portanto nos períodos mais calmos faço interpretação de resultados e discuto planos de ação na exploração.
Como é viver fora de Portugal? Conseguiu adaptar-se bem?
É uma sensação estranha nos primeiros meses o facto de não ir ao café/esplanada e estar com os amigos no final do dia. Os colegas na equipa convidam para pequenos eventos e as comunidades do Facebook alertam para acontecimentos! Há um maior cuidado com o bem-estar das pessoas e fazem o possível para que tenham um equilíbrio de vida pessoal para que o trabalho possa ser mais atrativo e livre de stresse.
Como é que está a situação de pandemia covid-19 neste momento e como é que isso afeta o seu trabalho?
Desde o início das restrições, fomos classificados como essential workers uma vez que trabalho com produtores de animais. Regra geral, a maioria das visitas de rotina foram canceladas e só as visitas de diagnóstico e bem-estar foram efetuadas. O conjunto de medidas foi discutido com os integradores e auditores. Houve situações em que visitas foram feitas “via skype/ zoom/ teams” para satisfazer o requesito da auditoria. Os produtores recebem várias visitas ao ano de auditoria (interna, supermercado, RSCPA, APHA, etc) e há uma boa relação dos produtores com os veterinários. A maioria dos nossos clientes aderiu às medidas, porque praticam biossegurança diariamente nas explorações e, acima de tudo, percebem a importância do coronavírus, uma vez que existem em aves (bronquite infeciosa).
Regra geral, foi bom para nós, porque permitiu fazermos um maior acompanhamento clínico (follow-up) livres de trânsito automóvel.
Ao mesmo tempo, o Brexit aconteceu, portanto alguns dos testes de diagnóstico deixaram de poder ser enviados para a Europa e a minha empresa decidiu proceder a trabalhos de certificação e trabalho de exportação − na minha clínica não fazemos diariamente esse trabalho − para o qual surgiu uma nova oportunidade para médicos veterinários.
Do que mais tem saudades de Portugal?
Da família.
Quais os seus planos para o futuro? Equaciona voltar a Portugal?
Estou numa área de trabalho muito interessante, há possibilidade de projetos clínicos, de investigação e de cooperação (com a Irlanda do Norte, Itália, França e Brasil) na empresa para a qual trabalho. Há também possibilidade de progressão para um título de especialista. Tenho muitas opções, mas ainda não apostei em nenhuma em concreto.
Em 2016, quando o voto do Brexit surpreendeu, considerei fortemente voltar a Portugal. Esta opção não está fechada, se a oferta de trabalho for do meu interesse. Nunca sofri discriminação e até fez com que fosse valorizado e apreciado no meu trabalho.
Se sim qual o trabalho/projeto gostaria de desenvolver?
Seria bom poder abrir uma empresa semelhante ao local onde trabalho − trabalho clínico, de consultadoria, patologia, laboratorial e diagnóstico especializado. Há imensas oportunidades comerciais.
Que conselhos dá aos recém-licenciados em medicina veterinária que estão a ter dificuldades em ingressar no mercado de trabalho?
Há imensas oportunidades em aves! A minha empresa recruta praticamente todo o ano. Somos dois portugueses na equipa, mas há várias nações representadas (Nova Zelândia, Espanha, Polónia, Itália e Reino Unido).
Acima de tudo é importante desenvolver capacidades interpessoais e ter uma relação com uma audiência que tenha conhecimento científico e clínico variado. Há que ser feliz!
Como vê o estado atual da medicina veterinária em Portugal e no mundo?
Temos imensos conhecimentos de Saude Pública, de lidar com situações infectocontagiosas e pandemias. A minha experiência com aves fez-me apreciar ainda mais o papel do médico veterinário na prevenção de zoonoses e de pandemias. Temos um papel na seleção de antibióticos e na redução no seu uso.
A legislação em bem-estar animal implica a presença de médicos veterinários oficiais e, acima de tudo, a prestação de serviços veterinários permanentes. Somos uma peça essencial na sociedade.
*Entrevista publicada originalmente na edição n.º 154 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de novembro de 2021.