O Tribunal Constitucional já se pronunciou: não considerou desrespeitados quaisquer princípios ou normas constitucionais na Lei das Ordens Profissionais. O bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários Jorge Cid reage em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL reconhecendo o “desagrado” pela decisão e teme pela ingerência política na vida das ordens profissionais. O médico veterinário avança ainda que não se recandidatará ao cargo de bastonário e fala dos objetivos que pretende alcançar até fim do mandato.
O regime jurídico das ordens profissionais foi aprovado a 23 de dezembro no Parlamento e enviado pelo Presidente da República para o Tribunal Constitucional. Depois destes meses de discussão e de audições, que ideias a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) não viu acolhidas no articulado?
Fomos, desde o princípio, frontalmente contra este articulado e na audição na respetiva comissão da Assembleia da República fiz questão de demonstrar que este não fazia qualquer tipo de sentido.
Aliás, notei [da parte dos deputados] um pouco falta de conhecimento real do que se passa nas ordens, nomeadamente na OMV, porque as alterações pensadas e as críticas que se faziam, nomeadamente sobre as dificuldades de acesso à profissão, não acontecem na nossa Ordem. Fiz questão de explicar aos senhores deputados que na nossa Ordem não há qualquer entrave ao exercício da profissão. Quando o médico veterinário acaba o curso apresenta o diploma passado pela universidade é imediatamente inscrito [na Ordem] e começa logo a trabalhar.
E sublinhei igualmente que a OMV não foi sequer mencionada num relatório da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico] e da Autoridade da Concorrência no qual se dizia que havia, em muitas ordens, entraves ao livre exercício da profissão, e que foi o motivo que suscitou esta revisão [do enquadramento legal das ordens profissionais].
Só que o decreto que sairá serve para tudo, mesmo tendo as ordens estatutos, âmbitos e práticas bastante diferentes. Foram todas liminarmente tratadas com a mesma conta e medida, o que não faz sentido.
Isto é uma decisão política com a qual o Governo tenta calar as ordens, que por vezes tornam-se um pouco incómodas por – dada a sua isenção, sem ligação a qualquer partido político ou sindicato – chamarem a atenção para os problemas reais que existem na profissão e nos serviços prestados aos respetivos utentes.
E no penúltimo dia do mês de fevereiro o Tribunal Constitucional pronunciou-se declarando a constitucionalidade do articulado aprovado na Assembleia da República. Qual é a sua reação e quais serão os próximos passos da OMV?
A minha reação é de total desagrado, embora respeite, como é obvio, a decisão do Tribunal Constitucional. Continuo a achar que é uma Lei completamente desajustada, altamente lesiva para as ordens profissionais e uma ingerência política no funcionamento das mesmas.
Iremos tomar todas as iniciativas que pudermos e estiverem ao nosso alcance para tentar negociar o [novo] estatuto o melhor possível, dentro do que nos deixarem fazer.
Penso que, agora, seremos contactados pelo Governo para a elaboração e aprovação do novo estatuto e iremos tentar alterar o melhor possível para o adaptar à nova realidade. Mas sob protesto.
Aceitamos a decisão sem nos darmos completamente por vencidos.
“Isto é uma decisão política com a qual o Governo tenta calar as ordens, que por vezes tornam-se um pouco incómodas por – dada a sua isenção, sem ligação a qualquer partido político ou sindicato – chamarem a atenção para os problemas reais que existem na profissão e nos serviços prestados aos respetivos utentes.”
De que forma o novo articulado é uma ingerência do poder político na vida interna das ordens profissionais?
Porque é imposto às ordens a inclusão de membros nos seus órgãos de gestão que não pertencem a essa Ordem numa proporção de 60/40, ou seja 60% de pessoas que não fazem parte da Ordem, eventualmente até com outras profissões, e que irão condicionar completamente a atividade das ordens. Isto é, uma Ordem passará a fazer só aquilo que essas entidades, o chamado órgão de supervisão, irão determinar e inclusivamente irão condicionar a participação pública do bastonário. Em suma, irá calar as ordens que, de repente, se veem submetidas ao poder político, porque haverá nomeações políticas nos órgãos diretivos das ordens.
O que é mais escandaloso na OMV, e que realcei muito na comunicação que fiz na Assembleia da República e à Provedora de Justiça, é que nenhum dos cargos até hoje tem sido remunerado, nem o do bastonário, nem no Conselho Diretivo, nem no Conselho Profissional e Deontológico. Ninguém recebe qualquer tipo de remuneração, direta ou indireta, nem sequer ajudas de custo.
Pela nova Lei é imposto um cargo obrigatoriamente remunerado que é o do provedor do cliente. Ainda tentámos que dissesse [no articulado] que poderia ou não ser remunerado, mas o que saiu é que teria de ser remunerado.
Ora não estando nada explícito que tipo de remuneração é essa, que pode até ser bastante alta, esse valor pode até pôr em causa a viabilidade de uma Ordem pequena, pois na OMV a única receita passa pelas quotas dos seus membros.
E o aumento dessas quotas está fora de questão?
Recuso-me, para já, aumentar as quotas. Ainda para mais numa altura em que há muitas dificuldades em muitos setores da medicina veterinária, não só na área dos pequenos animais, como também nos animais de produção.
É uma altura difícil para aumentar as quotas para pagar cargos políticos que nos são impostos. Parece-me um contrassenso.
Isto é, no mínimo, uma medida antidemocrática que impõe pessoas exteriores à Ordem para dentro da própria Ordem.
Nesses cargos de que falou – o órgão de supervisão, o do provedor do cliente – existirão, então, nomes propostos pelo Governo?
Poderão ser indicados. Há coisas que não se tem bem a certeza. Em princípio, o provedor do cliente seria nomeado mediante três nomes propostos pelo Governo.
É evidente que a Ordem não pode nomear pessoas que não pertencem à Ordem profissional. Esses nomes vão-nos ser impostos. Penso que terá sempre uma carga política e partidária, como é obvio, e não faz qualquer sentido.
As ordens funcionam muito bem, não têm qualquer contributo do Estado, que não mete um tostão nas ordens, e a que propósito é que as ordens vão ter de se submeter a um regime que acham que não deve ser assim [o funcionamento]?
É só uma decisão política e é lamentável.
É lamentável que tenhamos chegado a este ponto e o Governo tenha feito isto contra a opinião das ordens em uníssono. É lamentável que o poder político queira mandar em tudo e, neste momento, só faltavam as ordens.
Esta Lei também altera o Conselho Profissional e Deontológico passando a ser um órgão de jurisdição. Ora se 90% das queixas na Ordem são de origem ética e profissional, nomeadamente clínica, não vislumbramos como é que pessoas que possam não ser médicos veterinários podem avaliar casos clínicos, ver se o processo foi bem conduzido, se houve negligência ou não.
Vai ser um caos e as coisas vão correr mal. Há ordens em que as coisas são mais específicas, como os médicos, em que tem de haver alguém com capacidade técnica e científica para avaliar se houve ou não negligencia. Não estou a ver como é que pessoas externas à Ordem podem avaliar isso com alguma isenção e capacidade.
“Não me vou recandidatar e já anunciei a toda a equipa que não aceitarei qualquer tipo de cargo, seja executivo ou não executivo.”
Sobre a vida interna da OMV. As novas instalações da sede em Lisboa foram inauguradas em outubro passado. Que necessidades foram asseguradas com o novo espaço?
Neste mandato, que vai terminar no fim deste ano, é deixado à OMV o património das três sedes: a de Lisboa, a de Braga e a de Coimbra. Deixamos para o futuro uma situação confortável e sem sobressaltos. Nomeadamente em Lisboa estavam sempre a tentar subir a renda, era um problema todos os anos e, como o contrato ia acabar, teria de ser renegociado. Em Coimbra a proprietária queria vender o imóvel e o leasing estava a terminar em Braga.
Enfim, havia uma certa insegurança.
Em Coimbra conseguimos chegar a acordo com a proprietária, penso que em condições ligeiramente abaixo da avaliação, e conseguimos adquirir a sede.
A sede de Lisboa também foi adquirida em situação bastante vantajosa, com valores bastante razoáveis, tem condições que a outra sede não tinha e não tivemos de gastar dinheiro em obras, estava pronta a iniciar o trabalho.
Fizemos um estudo económico de quanto se gastava de rendas e agora pouco mais se paga de amortização ao banco e é um património que fica para a Ordem.
A OMV era das poucas ordens que não tinha uma sede própria e agora há uma perspetiva de um futuro mais tranquilo, com ótima localização e condições.
E já ponderou se volta a recandidatar-se no final do ano, quando acabar este mandato?
Não me vou recandidatar e já anunciei a toda a equipa que não aceitarei qualquer tipo de cargo, seja executivo ou não executivo. É um processo desgastante para quem ainda tem uma vida profissional ativa e já não me queria candidatar ao segundo mandato.
Também não tive sorte e não tive uma boa conjuntura política e económica, com a pandemia e a revisão da legislação da Ordem. Foi uma conjuntura difícil.
Tivemos também uma constituição difícil da Assembleia da República e até hoje, com muita pena minha, ainda não consegui aprovar o ato médico-veterinário.
Neste momento, apenas temos um médico veterinário no Parlamento e os médicos veterinários não têm peso político.
Mas temos alcançado muitas vitórias. Houve uma boa receção em vários âmbitos, nomeadamente na saúde médica humana, fomos convidados para o núcleo fundador da Comissão de Saúde e Ambiente.
Na altura mais difícil da pandemia por Covid-19 também fizemos parte das reuniões no Infarmed com as outras ordens da medicina e temos tido uma ótima convivência com a Ordem dos Médicos
Mas, muitas vezes, sentimos que não conseguimos ultrapassar a burocracia, há pouca vontade em decidir, apesar de nos darem razão. Por exemplo, é o que acontece com o IVA nos centros médicos veterinários. Fomos recebidos pelo secretário de Estado do Tesouro, que até compreendeu o nosso ponto de vista e considerou a medida pertinente, mas a resposta foi que o Governo não tem condições para baixar impostos e por isso não pode atender à nossa pretensão de descida do IVA. Uma pessoa sente-se um pouco frustrada.
“A minha reação é de total desagrado, embora respeite, como é obvio, a decisão do Tribunal Constitucional. Continuo a achar que é uma Lei completamente desajustada, altamente lesiva para as ordens profissionais e uma ingerência política no funcionamento das mesmas.”
E o que planeia ainda realizar nos meses que restam de mandato?
Estamos muito empenhados com duas situações: a legislação das ordens profissionais e a organização, de 14 a 16 de abril, do EFOMV [Encontro de Formação da Ordem dos Médicos Veterinários]. É o maior encontro de medicina veterinária no País e abrangerá todas as áreas da medicina veterinária, desde animais de companhia, animais de produção, espécies exóticas, One Health, laboratório e gestão e problemas sociais, nomeadamente a medicina de abrigos e tudo o que tenha a ver com o bem-estar animal.
Serão dezenas de palestras e de oradores convidados que vão focar todas estas áreas de interesse. Creio que todos os médicos veterinários, qualquer que seja a atividade a que se dedicam, terão no EFOMV várias palestras do seu interesse profissional.
Recentemente na VETERINÁRIA ATUAL fizemos um artigo sobre a especialização pelo EBVS [European Board of Veterinary Specialisation] e demos nota pelo representante da OMV, George Stilwell, que na revisão dos estatutos em curso está a ser pensado o regulamento geral das especialidades, que passa pela criação de colégios de especialidade e pela criação da figura do médico certificado. Em que ponto está todo este processo?
Todos os médicos veterinários diplomados pelos colégios europeus são imediatamente acreditados pela OMV.
Sobre este processo, posso dizer que praticamente está feito e não está posto em prática devido à revisão do estatuto das ordens, que já se anda a arrastar há uns anos.
Achamos por bem não mexer no assunto numa altura extremamente sensível, em que não se sabia o que se passaria nas audições na Assembleia da República.
Tínhamos já uma proposta de estatutos nova, mas como se estavam a ouvir as ordens profissionais todas, sendo que os estatutos têm de ser aprovados pela Assembleia da República, não se achou oportuno estar naquele momento a mexer em mais outro assunto. Era uma questão de sensatez.
Entretanto veio o terramoto deste novo estatuto [das ordens profissionais], que foi uma bomba que caiu, ao arrepio de todas as reuniões que aconteceram no Parlamento com as ordens.
Agora vamos ter, necessariamente, de fazer um novo estatuto. Esse das especialidades da OMV está pronto e iremos juntar-lhe aquilo que seremos obrigados a fazer mediante a aprovação desta nova Lei.
Era um assunto que queríamos ter deixado pronto este ano, mas relegou-se um pouco para segundo plano dado este tumulto da nova legislação e só sairá juntamente com as alterações impostas pelo Governo.
Nesta questão das especialidades a OMV considera que é importante haver algum paralelismo com o que acontece com as outras ordens ligadas à medicina, com a existência de colégios de especialidade?
Exatamente. É extremamente importante e, atualmente, cada vez mais. Irá ser uma prioridade no novo estatuto a inclusão do regime das especialidades
Mas consegue garantir que é uma questão que estará concluída até ao final do seu mandato?
Tudo depende do que formos obrigados a fazer [na nova legislação]. Se formos obrigados a apresentar já um novo estatuto iremos fazê-lo e estão incluídas as especialidades. Mas se vierem pedidos de revisão por parte do Tribunal Constitucional, então pode demorar mais um pouco. Mas tenho esperança que, de uma maneira ou de outra, até ao fim do ano este assunto esteja resolvido e que até ao fim do mandato estará cá fora.
Outro assunto que noticiámos foi a criação de um gabinete de apoio psicológico na OMV, como forma de responder às estatísticas que colocam os veterinários sempre no top 3 dos profissionais com maior risco de burnout e com as taxas de suicídio mais elevadas. Em que ponto está a criação desta estrutura?
As ordens estão sujeitas à contratação pública e à burocracia. Neste processo estamos na fase de ultimar pormenores e penso que ficará decidido em março qual será a proposta a ser adotada. Diria que antes do EFOMV será comunicado a todos os médicos veterinários a existência desse gabinete e como este vai funcionar.
Esta questão da saúde mental é determinante e tem um peso cada vez maior na vida profissional do médico veterinário?
É importante. O que temos mais dificuldade em avaliar é qual será o número [de profissionais] a procurar ajuda. Qualquer valor da proposta será indexado ao trabalho que esse gabinete de psicólogos irá ter. Vamos avançar agora, mas depois será revisto no fim do ano porque não temos a noção de qual a percentagem de médicos veterinários que ira recorrer ao apoio psicológico.
Todas estas despesas que a Ordem assume saem sempre das quotas dos membros, tem de ser uma coisa abrangente em que todos os membros se revejam no benefício.
“Os médicos veterinários têm de refletir todos os custos nos preços dos seus serviços”
Relativamente ao tema dos gastos nos CAMV, do preço dos atos veterinários e dos custos que têm vindo a crescer face à inflação, como é que a Ordem olha para esta escalada de preços?
Vemos com alguma preocupação. Achamos que os médicos veterinários têm de refletir todos os custos nos preços dos seus serviços. Bem sei que hoje há muitas dificuldades por parte dos utentes em pagar os custos e daí termos implementado o Cheque Veterinário, que queremos alargar mais, que é um trabalho desenvolvido pro bono por mais de 300 clínicas que aderiram a este programa da OMV para famílias carenciadas e animais abandonados.
Agora, também tem de haver uma mensagem clara para as pessoas de que ter um animal de companhia implica custos e não se pode simplesmente comprar ou adotar um animal e achar que isso não tem custos.
A medicina em Portugal é muito cara, pagamos os materiais mais caros que noutros países da Europa e, ainda por cima, a situação é agravada com a questão do IVA a 23%.
Temos de passar a mensagem à população que a medicina é cara e que os médicos veterinários não levam preços especulativos. As pessoas acham sempre muito caro porque na medicina humana não costumam pagar – por terem seguros, ADSE ou irem ao Serviço Nacional de Saúde – e não têm noção de quanto custa um procedimento médico.
Na medicina veterinária é tudo privado e não temos ajuda de ninguém. O Estado não dá qualquer tipo de ajuda e cada vez mais a medicina de excelência é mais cara porque todos os materiais e aparelhos têm um preço exorbitante e todo esse dinheiro têm de sair da atividade.
Diria até, de uma forma abrangente, que há preços muito baixo em Portugal em muitos setores da medicina veterinária.
Portugal ainda tem um mercado muito incipiente em termos de seguros de saúde animal. Considera que o alargamento desse mercado seria uma forma de colmatar este problema? Ou pensa que um hospital médico veterinário público, como é pedido por alguns políticos, seria a solução?
Sou completamente a favor dos seguros de reembolso, era bom que houvesse mais, com maior cobertura à semelhança do que acontece no Reino Unido, e seria saudável para a profissão. Mas também se fala muito em seguros que não são mais do que cartões de desconto e, nesse caso, sou contra.
Quanto à criação do hospital público médico-veterinário – esta não é uma opinião da Ordem porque não foi discutido internamente – à partida sou contra. Como funcionaria esse hospital? Quem pagaria?
E se fosse em Lisboa, ou mesmo que se criasse um também no Porto, mais uma vez seria esquecido o interior do País que, se calhar, é onde há mais dificuldades.
Seria uma medida desajustada quando temos a hipóteses de fazer acordos com o nosso Cheque Veterinário com estruturas já feitas, com faculdades, com instituições de ensino que podem prestar serviços a preços mais económicos para pessoas em mais dificuldades.
Criar um hospital de raiz até, eventualmente, seria o mais barato, o mais caro era seria, depois, ter as pessoas a trabalharem lá para ter qualidade. Seria caríssimo e esse dinheiro todo pode ser aplicado de outra maneira, criando vários programas de assistência a pessoas com dificuldades que não passem por um hospital público.
Todos sabemos dos défices que existem nos hospitais públicos de medicina humana e como funcionam. Estar a replicar isso para a medicina veterinária não me parece, para um País pobre como o nosso, que seja a solução.
Temos é de criar soluções de abrangência nacional e não esquecer o Portugal profundo, onde as pessoas têm os seus animais, e não se pode pensar só em Lisboa e Porto.
É mais um elemento de propaganda política que outra coisa.
*Artigo de opinião publicado na edição 169 da VETERINÁRIA ATUAL, de março de 2023.