A profissão veterinária, tal como todas as outras, necessita de se adaptar constantemente à sociedade onde se insere. Isto é válido globalmente e mais que nunca importante, dada a velocidade em que as mudanças ocorrem no século XXI. Mais importante, a Classe necessita perceber a sua importância na mesma sociedade e tomar conta do seu futuro. Por agora, ela continua a ser um peão no jogo político em Portugal, na Europa e no mundo. Por agora, os veterinários continuam a não ter consciência de Classe. Por onde começar? Os líderes da Classe precisam liderar. Primeiro, precisam entender a profissão. Depois, orientar a mesma para um futuro em que sejamos vistos pela sociedade e pelos políticos como a solução e não o problema.
Caso se concretize a realização de um estudo apropriado sobre as condições socioeconómicas dos veterinários portugueses podemos dizer que estaremos próximo da possibilidade de elaborar uma estratégia para a profissão em Portugal.
Dessa estratégia deve sair um plano, com medidas objetivas e mensuráveis para que a Classe lidere a tomada de decisões que afetam o seu próprio destino. A própria FVE prepara já o segundo FVE Survey da profissão veterinária da Europa. Planeou-o antecipadamente, tendo os orçamentos dos anos desde o anterior contemplado um fundo de reserva específico para esse efeito.
Mas partamos das possíveis conclusões do (ansiosamente) esperado Inquérito OMV/SNMV. Tal como a Prof. Laurentina Pedroso (a anterior Bastonária da OMV) já afirmara anteriormente, a generalidade das pessoas que analisam a demografia concorda que a profissão apresenta demasiados profissionais para aquilo que o sector consegue absorver razoavelmente. Isso já fora apresentado em artigo na Veterinária Atual, que escrevi em colaboração com o colega Emir Chaher, tomando diversas fontes nacionais e europeias. Em artigo subsequente analisámos o problema com base no FVE Survey.
Além do país apresentar um absurdo número de cursos de veterinária, os números de alunos a entrar nos mesmos fazem projetar o problema para um patamar muito apreciado em Portugal – o dos recordes. Seremos os recordistas europeus do número de veterinários por habitante. Se isso, por si, não é inédito entre as profissões liberais em Portugal, representa um risco óbvio para a profissão em si.
No FVE Survey já se demonstrou uma percentagem alarmante dos índices de desemprego e subemprego em Portugal. O subemprego tem sido demonstrado repetidamente por descrições de precariedade e de falta respeito pelos profissionais, frequentemente sob a alçada dos Estágios Profissionais ou Estágios Emprego. A emigração dos recém-formados parece começar a ser bastante prevalente. Muitos afirmam que o próprio número de CAMV começa a ser exagerado.
Admitindo então que o Estudo demonstra o excesso de veterinários, qualquer plano que vise reduzir o número de alunos admitidos aos cursos de veterinária vai colidir com uma barreira, o status quo. Essa barreira vai afirmar ser impossível forçar mudanças nas escolas privadas, pelo facto de serem privadas e isso ir afetar a sua rentabilidade. Vai afirmar que não é possível reduzir as vagas nos cursos públicos porque o seu financiamento depende diretamente do número de alunos. Vai afirmar que barreiras à entrada de graduados na OMV por exame pode ser ilegal. A proposta da OMV anterior de reduzir essas vagas careceu de todo e qualquer apoio e caiu por terra, talvez por não ter procurado criar consensos e aparentemente não se ter baseado em estudo concreto da situação da classe. A própria AEEE, agência incumbida de monitorizar o ensino veterinário em Portugal, parece ser incapaz de decidir ou forçar decisões nesta situação. Se procurarmos encontrar quem decide este assunto vamos ser direcionados para um labirinto burocrático onde quem tem poder não o quer exercer e o delega.
Em Itália, onde o excesso de veterinários existe há mais tempo, o Governo forçou a redução dos alunos a entrar no ensino superior veterinário. Nos próximos anos, além disso, os cursos terão de demonstrar a Qualidade do seu ensino ou fechar portas. Em Espanha, o movimento #VeterinariaDigna procura impedir a abertura de novos cursos e reduzir também as vagas. Isto porque o tal estudo e o plano estratégico já aconteceram há alguns anos.
Cabe aqui acrescentar algo de crítica à minha geração (a que espero muitos Colegas adiram visto ser muito abrangente), a qual deve uma desculpa à seguinte. A minha geração assistiu impávida e serena ao desenvolvimento do número absurdo de escolas e vagas para entrada na profissão, sem se certificar se seria sustentável. O problema vai ficar para muito tempo. Mesmo que fizéssemos como em Itália e restringíssemos HOJE as vagas de acesso a todos os cursos universitários, o excesso dos profissionais vai existir pela expectável duração da carreira dos mesmos. Isso hipoteticamente aconteceria quando eu mesmo já me terei retirado. Limitar o acesso à profissão é assim uma emergência indolente que pede à indolência crónica de uma profissão a atuar num país em que a indolência tem créditos firmados. Como clínicos, sabemos que por vezes as feridas indolentes precisam de cirurgia… Mas a minha geração é a que tem menos a ganhar com a mudança exigida. À nova geração pede-se o interesse e a entrada precoce no caminho da liderança da Classe.
Olhando apenas para dentro da profissão, outros desafios pedem abordagem específicas do sector (e não apenas da OMV):
– A Saúde Mental carece de um plano específico dentro da profissão. Pode dizer-se que o tema teve direito a um ou outro estudo concreto, que existe um grupo no Facebook de origem informal que discute o tema e permite alguma partilha de experiências (Apoio Psicológico para Veterinários) e pouco mais. O facto de ser uma profissão com salários que se depreciaram nas últimas décadas e que a rentabilidade dos CAMVs se reduziu, acrescenta um stresse socioeconómico à Classe.
– A demografia dentro da profissão mudou imenso nas últimas décadas. A profissão deixou de ser primordialmente constituída por homens oriundos do meio rural e com propensão para uma atuação muito variada para ser essencialmente uma profissão dominada pela presença de mulheres, de origem urbana, dedicando-se exclusivamente a Clínica de Animais de Companhia. Isto tem um impacto muito importante no sector. As entidades públicas e privadas devem entender esta mudança e promover o apoio à profissão fora dos grandes centros urbanos. A geração atual também deverá começar a moldar a profissão e prepará-la para os novos desafios tecnológicos e sociológicos.
– A fragmentação do mercado e a evolução da ciência veterinária têm sido o motor para uma maior diferenciação das empresas e dos profissionais; o sector deve ser capaz de regular esta especialização. A Academia Veterinária deve dedicar uma boa porção do seu esforço em Pesquisa e Desenvolvimento, podendo a mesma ser um novo motor de financiamento para o sector universitário.
– A Deontologia Veterinária reflete também a Sociedade em que se insere, não pode ser imutável. O Código Deontológico deve prever revisões e permitir inputs que permitam a Classe manter-se a par da evolução da Sociedade.
1 – Optar pela profundidade no estudo da situação socioprofissional dos veterinários em Portugal.
2 – Planear e antecipar a repetição regular do mesmo.
3 – Tomar medidas para combater o subemprego e as situações de desrespeito para com os profissionais.
4 – Mostrar coragem na abordagem do excesso de veterinários. Tal implica as escolas, a OMV, o SNMV e as entidades políticas reguladoras, mas também precisa que a generalidade da Classe saia da apatia instalada e exerça pressão sobre as entidades anteriores.
5 – Optar pela Qualidade nos cursos de Medicina Veterinária como uma ferramenta para garantir a Qualidade dos profissionais; se a acreditação pela AEEE apenas limita a mesma por baixo, encontre-se um limite mínimo de Qualidade, eventualmente uma acreditação diferente; a maioria dos cursos em Portugal não é acreditada pela EAEVE, por exemplo, e no futuro os profissionais formados nos mesmos podem deixar de ter acesso, entre outras coisas, a trabalhar no Reino Unido, uma vez concretizado o Brexit; A Itália também vai forçar o encerramento dos cursos que não demonstrem essa Qualidade.
5 – Colocar em marcha um Plano de Saúde Mental para a profissão.
6 – Rever o Código Profissional e Deontológico e prever a sua revisão periódica.
Outras atividades que possam ser necessárias para a Classe olhar para o futuro provêm de ameaças e oportunidades exteriores à mesma e podem não carecer de decisões imediatas. Planear o seu estudo, isso sim, deve ser iniciado quanto antes.
Sobre o autor: licenciado em Medicina Veterinária pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa, em 1996. Paulo Gomes Pereira exerce funções em Clínica de Animais de Companhia, em Portugal e no Reino Unido. Pós-Graduação e experiência em Gestão de CAMV