De espírito inovador e aguerrido, a médica veterinária Alexandra Seixas colocou a criatividade ao serviço da sua profissão e, em 2019, viu o projeto que tinha em mente − na área da fisioterapia veterinária − ganhar forma e ser patenteado na categoria de invenção. Estamos a falar de um dispositivo de ginásio para animais que além da componente terapêutica, pode ser utilizado em contexto lúdico. Em entrevista, a titular única da patente fala sobre o projeto que está a ganhar espaço internacional.
Fale-me um pouco do seu percurso como médica veterinária. O que fez até ao momento da criação deste projeto.
Formei-me em Medicina Veterinária pela Universidade de Estremadura – Faculdade de Medicina Veterinaria Cáceres, em Espanha. Exerço a atividade como diretora clínica desde o início da minha carreira, embora neste momento o exercício da minha profissão esteja alocado ao departamento de cirurgia e cuidados intensivos, assim como a consultas de segunda opinião.
Desde cedo, senti necessidade de estar mais próxima de um mindset inovador e criativo, porque acredito que se pode sempre fazer mais e melhor, muito na ótica do utilizador. Durante mais de duas décadas investi na minha formação profissional em medicina veterinária, tanto no espectro nacional como internacional – tinha necessidade de ir buscar a outros países o que sentia falta no meu. Assim países como a Suíça, a Inglaterra, a Espanha e o Brasil foram muitas vezes palco da minha formação nas mais diversas áreas: cirurgia de tecidos moles, cirurgia ortopédica, odontologia, cirurgia maxilo-facial, cardiologia, medicina interna, imagiologia, oftalmologia, neurologia, entre outros. Em 2012 enveredei pela área do empreendedorismo e criei o primeiro franchising de rede de CAMVs, o LowCost Veterinários, que atualmente conta com dez espaços desde o Norte até à península de Setúbal. A área da formação e da consultoria começava a ter cada vez mais peso no meu dia-a-dia. Assim, entendi a necessidade de alargar e melhorar as minhas competências de gestão e marketing.
Em 2019, o seu projeto na área da fisioterapia veterinária foi patenteado na categoria de invenção. Como surgiu a oportunidade de desenvolver esta técnica? O que a levou a criá-la?
Em 2019, obtive como titular única uma patente de invenção nacional e, posteriormente, decidi internacionalizá-la. Neste momento, embora seja um processo bastante demorado e dispendioso, já está reconhecida e obtida a patente também na Europa, Canadá, EUA, Brasil, China e Médio Oriente. Os restantes ainda estão em processo de avaliação pela respetiva comissão de cada um dos países. Sempre fui muito criativa e gosto de observar as minhas atitudes e atividades e perceber de que forma posso melhorá-las. Assim surgiram alguns processos de inovação − melhorar o que já existe ou dar utilização alargada −, algo que já fazia com regularidade. Muitos dos processos que existem na minha estrutura foram idealizados e criados por mim, junto com a minha equipa.
  “A criação desta invenção partiu da necessidade de desenvolver um produto que cumprisse com as necessidades de fisioterapia em animais, sejam idosos, pós cirúrgicos, pós trauma ou com patologia do sistema músculo-esquelético.”
Estava numa ação de empreendedorismo no Madan Parque – Parque de ciência e tecnologia, em Almada, quando um dos diretores me avisa que a minha ideia era genial e que não existia nada semelhante no mundo. Durante mais de cinco anos, não tive a coragem necessária para colocar no papel a minha ideia. Durante cerca de cinco anos, o Dr. José Damião, da direção do Madan Parque, insistia que colocasse em prática o que tinha em mente. Assim, em 2018, dei início a este processo que além de dispendioso também requer muito rigor. Para minha surpresa não foi considerada uma patente de inovação, mas sim de invenção − para ser uma patente de invenção o projeto tem de ter espaço no mercado para ser comercializado e não pode existir nada semelhante. Esta invenção vem de um olhar crítico, da vontade de tentar perceber o que mais se pode fazer para obter melhores resultados. No fundo, deixar o empírico e obter dados que realmente me digam o que está a acontecer em cada momento, adquirindo informações que me indicam como modifico esses resultados quando altero algum fator da equação, do sistema, do processo.
Referiu que a patente já chegou a toda a Europa, Brasil e China. Na prática o que é que isto significa? Esta técnica vai ser utilizada nestes países?
Como estava a dizer, quando submeti o meu projeto para uma patente não sabia que iria ter força para ser de invenção, pensava que seria algo ao nível da inovação, mas a comissão entendeu que a ideia tinha todos os requisitos para ser considerada de invenção. E, desta forma, quando a propus selecionei logo que fosse uma patente internacional, isto permite que durante 18 meses exista reserva total ao meu projeto a nível mundial, o tempo que se necessita para depois entrar em cada país e voltar a propor a patente para ser reconhecida. Assim, desde então, esses e outros países foram os que já a vincularam como patente de invenção, os outros têm processos mais demorados e levam mais tempo na parte burocrática. Quando se é titular de uma patente podemos optar por produzir o equipamento, ou entregar o licenciamento a um terceiro, negociando a parte comercial. A única certeza é que não podem fazer/produzir este equipamento sem a minha autorização pois está patenteado. Ainda assim, foi necessária uma grande ginástica mental para proteger este equipamento de todas as frentes. A defesa de uma patente é o que leva mais tempo a estruturar. Neste momento, já estou em condições de aceitar propostas de licenciamento de utilização em cada um destes países.
O projeto consiste num dispositivo de ginásio para animais, com componente terapêutica e lúdica. Em que situações se aplica?
A criação desta invenção partiu da necessidade de desenvolver um produto que cumprisse com as necessidades de fisioterapia em animais, sejam idosos, pós cirúrgicos, pós trauma ou com patologia do sistema músculo-esquelético. Esta patente tem em vista as necessidades de desenvolvimento de determinados grupos musculares em função do tipo e raça do animal, designadamente os grupos da cabeça, pescoço, tórax, abdómen e membros.
O dispositivo, está adaptado a diferentes pesos, raças, idades e tamanhos do animal, mediante a utilização de um conjunto modular de peças que permitam a adaptação a cada animal de forma individual, sendo as forças a aplicar adaptadas em resultado da anatomia do animal. Trata-se de um dispositivo completo consubstanciado numa solução integrativa e modular, totalmente personalizável e de tecnologia interativa, que coloca o animal num ambiente totalmente controlado e imersivo. Esse ambiente ajuda a monitorizar o progresso da reabilitação de um determinado animal, tendo em mente as suas necessidades específicas.
“O dispositivo pode ser utilizado em contextos clínicos ou recreativos, por médicos, terapeutas ou proprietários treinados.”
O equipamento está composto por três módulos distintos: uma passadeira, um colete de apoio com biossensores embutidos para registo de dados fisiológicos e biomecânicos e um par de óculos 3D de realidade virtual, capazes também de fornecer estímulos acústicos e olfativos. O sistema de monitorização, juntamente com o último módulo, é adicionado para registar os movimentos do próprio animal. Devido à natureza modular do dispositivo completo, é possível implantar somente os componentes necessários para uma tarefa a um animal em particular.
Como consequência do ambiente virtual imersivo produzido, é possível atender a motivação específica e os interesses ocupacionais de um determinado animal, bem como integrar metodologias de reabilitação convencionais e interativas num contexto mais lúdico, que envolva ainda mais o animal no processo. O dispositivo pode ser utilizado em contextos clínicos ou recreativos, por médicos, terapeutas ou proprietários treinados.
O equipamento prevê o recurso a equipamentos complementares, de modo a atingir os resultados pretendidos, em função da raça, peso, idade e estado clínico do animal, designadamente jogos, dispensador de alimento controlado à distância no local, controlador de temperatura, com libertação de calor ou frio, sistema de som e imagem e jogos de força e recompensa.
Este equipamento permite o suporte e contenção real do animal no seu estado mais anatómico, pois toda a estrutura é adaptada aos diferentes pesos e raças, contemplando colete, mangas, perneiras com sensores de recolha de dados fisiológicos para ajuste de exercício e colheita de dados biomédicos para abordagem terapêutica.
Como se processa do ponto de vista mecânico e o que pretende trabalhar nos animais?
A utilização de passadeiras rolantes encontra-se há muito difundida, ainda que seja indicada apenas para estímulo da marcha do animal. Designadamente, são utilizadas em situações de obesidade e consequente necessidade de estimular a marcha mais ou menos prolongada do animal. No estado atual da técnica, não existe nenhum dispositivo do tipo passadeira rolante, exclusivamente concebido para animais, e que se não limita a promover a marcha. No entanto, este ginásio apresenta uma solução dedicada e articulada de equipamentos e funções destinada ao tratamento, recuperação ou recreação dos animais.
O objetivo? “Ficar disponível para todos os médicos veterinários que se dediquem a uma medicina de rigor, assim como para todos os tutores que queiram proporcionar experiências diferentes aos seus animais de companhia.”
Designadamente, no estado atual, não existe nenhum dispositivo do tipo passadeira rolante com a configuração e funcionalidade deste ginásio que, simultaneamente, se adapte a variadas espécies, tamanhos, idades e condição física dos animais e, ao mesmo tempo, monitorize os mais variados parâmetros físicos e psicológicos, ao mesmo tempo que o estimula de diversas formas.
Que papel assume o médico veterinário em todo o processo?
O profissional pode vir a ter ao seu dispor um equipamento que realmente possa trabalhar determinados grupos músculo-esqueléticos, não só dando as indicações precisas do que pretende fazer, como recolher os dados exatos dessa atuação. Defendo um trabalho que possa ser controlado durante todo o processo, não só para um maior ajuste na terapêutica como também para delinear um prognóstico mais assertivo.
Em que estado se encontra o projeto? Quais são os próximos passos até à sua materialização?
Estou a aguardar que a patente esteja disponível para todos os países e, desta forma, suscite interesse por parte de investidores, sejam ou não da área médico-veterinária, uma vez que este equipamento poderá traduzir-se numa oportunidade de rentabilização e transmutação da forma como se aborda a saúde animal seja aguda, crónica ou paliativa. Nos países onde a patente já está em vigor, é possível o licenciamento de uso, para produzir o equipamento e comercializar.
O que falta para este ser um projeto de sucesso?
Ficar disponível para todos os médicos veterinários que se dediquem a uma medicina de rigor, assim como para todos os tutores que queiram proporcionar experiências diferentes aos seus animais de companhia. Por exemplo, mesmo que encontrem em condições domésticas e em grandes cidades, poderão ter a experiência de estar num campo a correr, numa praia ou numa matilha.
Proporcionar um ambiente controlado e imersivo: Da realidade virtual à aromaterapia
Com um objetivo mais recreativo e com a intenção de motivar e estimular o animal a realizar os movimentos desejados, o equipamento também incluirá um módulo de realidade virtual. “O principal alvo do módulo passa por definir o animal num ambiente imersivo e completamente controlado. O dispositivo incluirá um conjunto de óculos de realidade virtual 3D para estimulação visual, bem como a possibilidade de incluir estímulos acústicos e olfativos, como um dispensador de aromaterapia. Integrando os estímulos de realidade virtual com a medição dos movimentos do animal, como descrito supra, a perceção imersiva deve ser potencializada”, refere Alexandra Seixas. De acordo com a titular única da patente, esta aplicação pode ser realizada no processo de tratamento e recuperação e no processo de treino, durante a caminhada/corrida no tapete rolante, através da colocação de óculos de realidade virtual onde é acoplado um dispensador de aromaterapia. “Serão colocados sensores no colete utilizado pelo animal, utilizados para monitorizar os seus parâmetros fisiológicos e os pesos calibrados serão aplicados em locais específicos, como perneiras.”
Para monitorizar a condição física do animal sob observação, os sensores fisiológicos do equipamento podem incluir:
-Elétrodos de eletrocardiograma, para registar a frequência cardíaca do animal durante as sessões de treino, diagnóstico e intervenção médica;
-Elétrodos eletromiograma, para registar a atividade muscular. As análises de tais sinais fornecerão informações cruciais sobre o desempenho de grupos musculares específicos;
-Um oxímetro, para avaliar os níveis de oxigénio no sangue do animal. Indiretamente, informações sobre a variabilidade da frequência;
-Vários sensores com foco na atividade motora do animal, como um número de acelerómetros, um giroscópio e um medidor de força. Todos eles devem fornecer informações suficientes sobre o alcance do animal e a velocidade dos movimentos, bem como a força aplicada por uma variedade de conjuntos musculares;
-Um termómetro, uma vez que a temperatura do corpo continua a ser o indicador mais utilizado da condição médica do animal;
-Um medidor de pressão arterial. Juntamente com a temperatura, a pressão arterial é um dos parâmetros de rotina utilizados por um veterinário para avaliar o estado geral de saúde do animal.
Os sensores fisiológicos, acima descritos, serão de modo indicativo, mas não limitativo, colocados no colete de apoio ou na plataforma móvel. Os sinais medidos, ressalva Alexandra Seixas, “permitirão uma avaliação completa do estado de saúde do animal, por um lado, mas também para um acompanhamento objetivo e sistemático da evolução da condição do animal ao longo de uma série de sessões”.
*Artigo publicado originalmente na edição n.º 155 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de dezembro de 2021.