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Laurentina Pedroso: “A esterilização é o centro da solução para o problema do abandono animal”

Laurentina Pedroso provedora do animal Direitos Reservados

Laurentina Pedroso foi nomeada há pouco mais de dois anos, com a publicação do despacho em agosto de 2021, como provedora do animal e em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL faz um balanço da primeira metade do mandato. Até agora, o trabalho passou por fazer propostas à tutela – como a criação da rede de apoio a animais em risco e da rede de emergência nacional ou a alteração da legislação referente aos crimes de violência doméstica – e a provedora defende que está na hora de as fazer avançar no terreno, assim como considera ser o momento para colocar a proteção dos animais na Constituição.

Que balanço faz destes primeiros dois anos de mandato enquanto provedora do animal?

 

Tenho de enquadrar o balanço da minha atividade naquilo que é a entidade em que estou inserida. Não foi criada uma provedoria com a autonomia de meios humanos e materiais, foi criada só a figura do provedor. Tenho dependência de meios humanos e de gestão da Secretaria-Geral do Ambiente, sendo que as minhas tutelas diretas são o Ministério do Ambiente e o Ministério da Agricultura, que ambos têm animais de espécies distintas.

É diferente do cenário da Provedoria de Justiça, que é uma estrutura muito sólida, em que a provedora tem a sua autonomia de recursos – quer económicos, quer materiais – e pode apresentar um conjunto de ações mais sólido.

 

Outro enquadramento é que tomei posse na segunda metade de 2021, mas nesse ano o Governo caiu e estive sem dependência direta do ministro enquanto estivemos num governo de gestão. Só volto a ter uma tutela e um rosto que me pudesse ouvir praticamente em julho de 2022.

“Quando falei de uma rede nacional de apoio aos animais em risco foi muitas vezes entendido que queria criar um serviço nacional de saúde para animais, o que não tem sentido” – Laurentina Pedroso, provedora do animal

Bastonária da OMV presente no Vetbizz

Fotografia: Direitos Reservados

 

Nesta minha pouca existência enquanto provedora, já encontrei dois ministros [do Ambiente] e dois governos, o que não facilita a fluidez de ações, mas não impede que tenha as minhas ideias alicerçadas na experiência como médica veterinária, diretora de uma faculdade e bastonária que fui durante seis anos.

As propostas que fiz logo na minha tomada de posse passavam pela criação de uma rede nacional de apoio aos animais em risco e de uma rede de emergência nacional que funcionassem estrategicamente ligadas. Quando falei de uma rede nacional de apoio aos animais em risco foi muitas vezes entendido que queria criar um serviço nacional de saúde para animais, o que não tem sentido. Esta proposta já recebeu, há seis meses, o aval do ministro [do Ambiente] Duarte Cordeiro e está há seis meses na ministra da Agricultura.

 

Então se não é um serviço nacional de saúde para animais, em que consiste essa rede nacional de apoio?

Não se está a falar de um sistema de saúde para todos os animais, mas de uma rede para os animais em risco, entendendo-se como animais em risco os que estão aos cuidados de centros de recolha oficial (CRO), ou seja, canis e gatis municipais, os animais em associações zoófilas e os animais de famílias carenciadas.

Entendemos que não somos um País rico e não podemos começar a criar infraestruturas de apoio, quando podemos aproveitar as infraestruturas já existentes. Este sistema baseia-se em aproveitar as infraestruturas que já existem, estão dotadas de meios tecnológicos e equipamentos muito avançados e estão dotadas dos recursos humanos, ou seja, os hospitais universitários de medicina veterinária e as instalações [universitárias] de enfermagem veterinária.

Este sistema não iria, obviamente, resolver o problema de norte a sul do País, porque não temos este tipo de entidades em todo o País. Não temos no Algarve, por exemplo, mas existe em Évora que é relativamente perto.

Também temos noção que onde há o maior número de animais abandonados, recolhidos e a cargo de CRO, e também onde existem mais associações, é na zona norte, em Lisboa e Vale do Tejo e no centro e é também nestes locais que existem o maior número de entidades de ensino que podem ajudar.

Não podemos esquecer também que existe uma rede nacional de CAMV [centro de atendimento médico veterinário] na rede do cheque-veterinário da Ordem dos Médicos Veterinários, que foi iniciada por mim quando fui bastonária com um projeto-piloto com a Câmara de Municipal de Lisboa e com a Câmara de Municipal de Oeiras que veio, depois, a expandir-se.

“No primeiro ano [de mandato] propus alterar o crime de violência doméstica e maus-tratos para incluir os animais nestes crimes, porque a violência também pode ser psicológica e existem muitos agressores que usam os animais para manipular, coagir e chantagear as vítimas” – Laurentina Pedroso, provedora do animal

E o que propõe para a rede de emergência nacional?

Ia basear-se nas estruturas que já temos e que recebem os animais em situação de catástrofe e emergência e estão muito bem localizadas e referenciadas criando meios, por alteração legislativa, para termos clínicas móveis. Hoje não é possível a prática de atos médico-veterinários em unidades móveis, mas o diploma dos CAMV está a ser revisto e a minha proposta ao Governo é que sejam legislados os meios de socorro que seriam ambulâncias, que já existem associadas a CAMV, como clínicas móveis que serviriam de apoio em situações de emergência. Ou seja, seriam meios que se deslocavam em proximidade num incêndio, em cheias, em articulação com a Autoridade de Proteção Civil e estariam acoplados a hospitais de campanha, tal como já existe na medicina humana.

Mas essas clínicas móveis não serviriam só para as emergências. Seriam estruturas divididas por regiões, pelas CCDR [comissão de coordenação e desenvolvimento regional] por exemplo, e usadas de forma organizada para, durante todo o ano, promoverem campanhas de esterilização, tal como já se vai vacinar em proximidade contra a raiva há décadas. Estariam ao dispor das câmaras municipais para grandes campanhas de esterilização, obviamente de forma estruturada, planeada, em condições higieno-sanitárias garantidas e perfeitamente legalizadas em termos de bem-estar e saúde animal.

A principal forma de colmatar o abandono animal, de não termos matilhas a proliferar em todas as câmaras municipais é não os deixar nascer. A esterilização é o centro da solução para o problema do abandono animal.

Quais têm sido as maiores dificuldades em concretizar esses projetos? Ter uma estrutura própria, como a Provedoria de Justiça, ajudaria a executar mais facilmente as ideias no terreno?

Claro que seria mais fácil. Por exemplo, neste momento, o único recurso humano é a provedora do animal, não tenho secretariado ou administrativos a trabalhar comigo. Uma estrutura ajudaria muito, mas também entendo que o caminho faz-se caminhando e se calhar acontecerá no futuro.

Mas não é apenas por aí, o que temos é de trabalhar todos de uma forma mais afinada e eficaz. Tal como mencionei, depois de tomar posse, o Governo caiu e tudo isto parou, teve interregnos.

Espero que [a implementação das redes] esteja para breve, porque foram ideias avançadas pela provedora, mas já há partidos políticos a fazerem propostas semelhantes, a nível municipal já se agarraram nestas ideias e se calhar o atual ministro, que até poderia achar que era uma ideia de difícil execução, já começa a acreditar que é possível.

Também falou em 2022 da necessidade de alterar a Constituição Portuguesa para acabar com as dúvidas que têm sido levantadas pelo Tribunal Constitucional quanto à implementação da Lei que criminaliza os maus-tratos a animais…

Temos de colocar o animal na Constituição. Já está em vários países, na Alemanha há mais anos e a Itália foi país mais recente a fazer essa alteração.

“As pessoas que deixam os animais reproduzir-se [de forma descontrolada] têm de ser chamadas à atenção e devem ser obrigadas a esterilizar, acho mesmo que estão a cometer um crime de cidadania” – Laurentina Pedroso, provedora do animal

Ministra da Agricultura anuncia criação de Grupo de Trabalho para definir estratégia para animais errantes

Fotografia: iStock

Colocar o animal na Constituição é o reconhecimento de que as sociedades vão mudando e hoje é uma questão de responsabilidade para com as futuras gerações dizer que o animal tem importância suficiente para ser considerado na Constituição. Como está agora, caímos sempre nesta situação de que o animal não tem figura jurídica, não tem proteção, é sempre pertença de alguém que pode fazer dele o que quiser.

Como pessoa, médica veterinária e como provedora do animal considero que fazer o que os alemães fizeram há anos, dar verdadeira dignidade aos animais, é um avanço civilizacional para o qual estamos atrasados.

Uma revisão constitucional não se faz frequentemente e se estamos a preparar uma revisão constitucional, isto é um marco para a nossa geração e para a responsabilização daquilo que é o bem-estar e o respeito pelo animal para as próximas gerações. Pode ser feito de uma forma simples, como fizeram os alemães em que na parte da Constituição que falava da natureza colocaram apenas mais três palavras: e os animais. A partir daí, de acordo com a espécie animal, teríamos regulamentação própria, a que resulta da transposição de legislação europeia e a legislação nacional.

Para além da criação das duas redes, da alteração da Constituição, da redução do IVA da alimentação e dos serviços médico-veterinários, da recomendação para proibir o acorrentamento, outro grande tema que lancei em 2022 foi a relação entre a violência cometida sobre animais e a violência entre as pessoas, com ênfase na violência doméstica contra os seres mais vulneráveis: mulheres, idosos e crianças.

Nesse âmbito, que iniciativas tomou?

O dever de um Provedor é despertar consciência na sociedade para um tema que é fundamental e relevante. Já se deu um passo um passo em frente, com a organização quatro webinares antes da edição do segundo [encontro] The Link, que foram específicos para a relação entre a violência sobre animais e sobre pessoas. Foram dirigidos para as forças policiais, para médicos veterinários, para os procuradores da República – que são quem toma a decisão de levar a tribunal este tipo de crimes – e o outro para a ação social, nomeadamente para as casas abrigo de mulheres, no sentido de alertar sobre a importância de ter estruturas que possibilitem às mulheres levarem os seus animais. Temos reparado que uma grande parte das mulheres reconheceu que demorou tempo para sair de casa por não saber o que fazer ao animal e não querer deixá-lo junto do agressor.

No primeiro ano [de mandato] propus alterar o crime de violência doméstica e maus-tratos para incluir os animais nestes crimes, porque a violência também pode ser psicológica e existem muitos agressores que usam os animais para manipular, coagir e chantagear as vítimas.

É algo pioneiro, porque já há uma diretiva europeia que trabalha a violência doméstica, mas nessa diretiva esqueceram-se os animais e também recomendamos ao Governo que esta situação não seja esquecida a nível europeu.

Recomendamos também que nas medidas cautelares tenham em conta os animais. Dou um exemplo: uma criança que é vítima de violência na família, muitas vezes o seu único laço emocional é com o animal, ele é a estabilidade da criança, e é necessário, quando se retira a criança à família, ter o animal em conta. A minha proposta refere a necessidade de ter famílias e casas de acolhimento que estejam dispostas a acolher a criança e que o juiz não deixe o animal para trás.

Neste despertar de consciência da sociedade para o bem-estar animal, não deixa de ser paradoxal que, na sua audição em outubro na Assembleia da República tenha dados dos números dos animais a viver em CRO, perto de 80 mil animais, e que os casos de abandono não estejam a diminuir…

O abandono animal tem várias entradas e quando falei [na Assembleia da República] em animais recolhidos pelos CRO, esses também podem ser animais que se perdem, estão chipados e depois são entregues ao dono. Mas, obviamente, a grande maioria são animais que ninguém reclama.

Anteriormente, os números eram dados pela DGAV [Direção-Geral da Alimentação e Veterinária] e agora são pelo ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas], que recolhe os dados de todos os CRO dados pelos municípios, depois os somam e dá um panorama do País. É algo que só se faz de ano a ano e uma das primeiras recomendações que fiz ao ministro foi para criar um sistema informático que nos dê ao minuto os números dos animais que estão nos CRO e nas associações e ter o ICNF ligado a essas plataformas online para saber, ao momento, o que se passa no país.

Anualmente, temos então os números dos animais que entram nos CRO, os dados dos animais adotados, dos animais eutanasiados e dos que foram esterilizados. Para chegar aos números de que falei, subtraí o número de adotados e dos eutanasiados aos que entraram e deu o número total anual, que depois se vai somando aos que já vivem em CRO, daí resultou o tal valor de mais de 77 mil animais a viveram em CRO. Há animais que vão viver uma vida toda num canil. Estamos a aperceber-nos que há cada vez mais animais idosos nos canis, que têm problemas inerentes à idade.

“Como pessoa, médica veterinária e como provedora do animal considero que fazer o que os alemães fizeram há anos, dar verdadeira dignidade aos animais, é um avanço civilizacional para o qual estamos atrasados.” – Laurentina Pedroso, provedora do animal

Há também cada vez mais animais a serem esterilizados, o que é bom, mas para colmatarmos esta questão do abandono temos de apostar em fortes campanhas de esterilização de animais de particulares, porque nos CRO e nas associações já temos esta questão colmatada.

É preciso uma maior consciência, um trabalho das juntas de freguesia e até acho que se deve obrigar as pessoas a esterilizar os animais, ou a justificar por que não querem esterilizar. Esta situação de deixar os animais andarem a parir para depois as associações os irem ajudar não é sustentável.

Tal como há hoje a obrigatoriedade de chipar o animal, defende o mesmo para a esterilização?

Ninguém gosta de ser obrigado a nada, mas o que falo é de uma sensibilização por parte das juntas de freguesia, porque a via educativa é fundamental, e ter uma norma obrigatória, nem que fosse temporária, até conseguirmos reduzir estes números. E as verbas para a esterilização têm de aumentar cada vez mais.

As pessoas que deixam os animais reproduzir-se [de forma descontrolada] têm de ser chamadas à atenção e devem ser obrigadas a esterilizar, acho mesmo que estão a cometer um crime de cidadania.

Em 2022 disse que nunca tinha havido tanto dinheiro para a causa animal e foram 12 milhões de euros. Este ano a verba aprovada ultrapassa os 13 milhões de euros. O ano passado disse que não sabia se essa verba estava a ser bem aplicada, o que falhou?

Para ser bem aplicada, no meu entender, temos de criar estas duas redes de que falei. Porque são infraestruturas grandes que podem verdadeiramente ajudar com números grandes na esterilização.

E quais são as propostas da provedora para os outros animais, os de produção e os equinos, por exemplo?

Em relação à produção animal é uma área muito sensível. Essa é uma área da DGAV que, ao contrário do ICNF que viu as verbas para o bem-estar animal aumentar, continua com as mesmas verbas para esta questão. Se o Governo quer trabalhar de uma forma inovadora e pioneira tem de dar mais meios à DGAV.

Nesta matéria temos auditorias europeias que vêm ver o que os estados-membros fazem na área do bem-estar [do animal na produção] e, do que me tenho apercebido, a DGAV tem trabalhado bem no âmbito da produção das espécies pecuárias.

Nesta temática, reuni com a ministra da Agricultura sobre o transporte de animais vivos e estou a trabalhar com a DGAV num projeto de bem-estar animal relacionado com equinos.

É importante referir que quando falo de uma rede nacional de apoio aos animais em risco, essa rede será uma ajuda para o ICNF, mas também para a DGAV porque os animais recolhidos pelas câmaras também incluem cavalos e espécies pecuárias negligenciadas.

A rede de emergência em situação de catástrofe e a rede de apoio aos animais em risco não são só para animais de companhia, não esqueci nenhuma espécie e o grupo de trabalho para pensar estas redes que sugeri criar envolve a DGAV, o ICNF e a Proteção Civil.

O que tem planeado para os restantes dois anos de mandato?

Continuaremos a pensar o evento The Link, que continuará em grande desenvolvimento, e continuaremos a reforçar a necessidade de alterar a Constituição.

Continuarei a reforçar a necessidade de criar a rede para os animais em risco e a rede de emergência. O ministro do Ambiente já disse que sim, a ministra da Agricultura está a analisar, mas penso que vai acontecer.

“A sociedade não tem consciência do que é este trabalho extraordinário dos médicos veterinários”

Quando falamos em bem-estar animal não podemos esquecer o bem-estar dos profissionais de medicina veterinária, que são quem lida com os animais em situação de perigo, seja nos CRO, seja nos CAMV. Como médica veterinária, ex-bastonária e provedora qual a sua perspetiva sobre o cenário da saúde mental da classe veterinária?

Preocupa-me muito. É uma classe extraordinária que a sociedade já dá algum valor, mas não o que merecem. A sociedade não tem consciência do que é este trabalho extraordinário dos médicos veterinários.

A classe percebe que há burnout e um dos mecanismos de ajuda será trabalharmos em equipa – médicos veterinários, a sociedade e o poder político – no sentido de criar estruturas, como as redes de que falei, para onde se pode referenciar [os casos sociais]. Porque os hospitais veterinários não existem para concorrer com os CAMV, mas para os ajudar com estes animais e para a referenciação nos equipamentos diferenciados. O ensino deveria funcionar, sobretudo, com a ajuda social, a investigação e a referenciação e toda esta cadeia de burnout diminuía.

Quando eutanasiamos um animal por causa da [falta de] verba, depois não temos estrutura para ir ajudar os outros animais. Temos um sorriso para o cliente, para a nossa família, mas não aguentamos. É a classe que tem as mais altas taxas de suicídio, porque disfarçamos isto com o nosso espírito de dever e competência que nos diz que temos de aguentar para ajudar os outros animais.

médicos veterinários a avaliarem cão

Fotografia: iStock

 

*Entrevista publicada na edição 176, de novembro, da VETERINÁRIA ATUAL.

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