Através de uma visão jurídica, psicológica e sociológica o livro “Animais e Pessoas – Maus-tratos a Animais, Link para a Violência contra Pessoas e Intervenção Assistida” aborda temas como os laços entre animais e pessoas, a violência e crueldade contra animais, mas também o papel dos animais nas intervenções assistidas e no processo de ressocialização. Mauro Paulino, psicólogo clínico e forense, um dos autores – em conjunto com a advogada Sandra Horta e o especialista em comportamento canino Pedro Emanuel Paiva – fala com a VETERINÁRIA ATUAL sobre a obra e deixa o alerta: “a brutalidade contra animais é também um indicador para agressões contra humanos”.
Qual a pertinência da publicação do livro “Animais e Pessoas” neste momento, atendendo ao crescimento da exposição do tema bem-estar animal?
Sou suspeito, mas a pertinência é total. Trata-se de uma obra pioneira, de leitura indispensável para todo o cidadão e profissional com interesse no tema, nas mais diversas áreas, assim como para todos os que trabalham na defesa e promoção dos direitos dos animais. É um contributo valioso no desenvolvimento dos benefícios das interações positivas entre animais e pessoas.
É uma obra que, tendo como bússola o bem-estar animal, está desenvolvida ao longo de três eixos principais, nomeadamente os laços entre pessoas e animais, a violência e a crueldade animal, e as intervenções e atividades assistidas por animais, quer em contexto clínico, quer na Justiça.
É ainda de destacar o facto de esta publicação reunir um conjunto de vários profissionais com os seus diferentes enfoques, de modo a garantir uma abordagem jurídica, psicológica e sociológica, que facilite uma melhor compreensão dos três eixos referidos.
Médicos veterinários: maus-tratos a animais e burnout de mãos dadas
O que conhece sobre o impacto que os maus-tratos a animais podem ter na saúde mental dos médicos veterinários?
A saúde mental dos médicos veterinários deve ser uma preocupação, pois os impactos que enfrentam são vários. Aliás, investigações recentes, mostram que a taxa de suicídio entre médicos veterinários é 3,5 vezes mais alta do que o resto da população.
Não raras vezes, estes profissionais apresentam taxas elevadas de sintomatologia depressiva e ansiosa, associadas a um risco elevado de burnout. O cansaço emocional deve-se, entre outros fatores, ao contacto próximo e constante com o sofrimento do animal, por exemplo em situações de maus-tratos, mas não só, também a morte dos animais, que pode envolver a eutanásia, e o sofrimento dos tutores.
Na verdade, a raiva, a revolta, a tristeza e, por vezes, a responsabilização pela morte é direcionada para os médicos veterinários, os quais nem sempre dispõem de recursos emocionais, ou ajuda psicológica para gerir a sua própria dor. Por isso, é importante falar-se desta realidade para que seja mais fácil procurar ajuda.
Mesmo alunos e profissionais de enfermagem veterinária ou auxiliar de veterinária podem enfrentar sentimentos semelhantes.
Que ferramentas emocionais são necessárias garantir a estes profissionais que têm de tratar e resolver estes casos difíceis?
São necessárias várias ferramentas emocionais, que dependendo do caso concreto podem ser adquiridas através de formação ou então através de consulta de psicologia. E é importante que qualquer um dos passos possa ser dado preventivamente, ou perante os primeiros sintomas.
As ferramentas necessárias envolvem estratégias dinâmicas e práticas para uma intervenção precoce com os tutores de animais que se encontram próximos da morte ou que perderam a vida, como a comunicação de más notícias, permitindo que os médicos veterinários sintam nesse contexto maior segurança com claros benefícios para o cliente e para o profissional.
Conhecerem os sintomas precoces do luto e os tipos de lutos, tais como o luto inesperado, como um atropelamento, e o luto antecipado associado à morte por doença crónica, é também importante, pois o desconhecido acaba por gerar maior ansiedade.
Simultaneamente, o desenvolvimento de estratégias de autocuidado e gestão emocional é essencial, reduzindo o risco de burnout e promovendo o bem-estar individual dos médicos veterinários. Este autocuidado anda muitas vezes de mãos dadas com o desenvolvimento pessoal, permitindo o desenvolvimento de maior confiança nas relações consigo próprio e com os outros. Uma boa higiene do sol, exercício físico, atividades de relaxamento e uma alimentação saudável são também estratégias importantes de autocuidado para um enfrentar mais capaz e eficaz de casos difíceis.
Que evidência científica existe relativamente à possível ligação entre a violência sobre os animais e a violência entre pessoas? Alguém que inflija maus-tratos a animais será, invariavelmente, um agressor e um perigo para a sociedade em geral?
A evidência científica é bastante expressiva neste tópico. Quem estuda estas matérias, sabe que os maus-tratos contra animais devem ser vistos como um sinal de aviso, surgindo como a ponta do iceberg, atendendo à sua relação com outros fenómenos de violência em geral, conforme tem vindo a ser demonstrado de forma consistente e sistemática na investigação internacional. A violência doméstica, o abuso infantil e a crueldade animal estão intimamente conectadas e assim continuarão até que sejam interrompidas. Não é por acaso que a ficha de avaliação de risco de violência doméstica das nossas forças de segurança contempla a violência exercida contra animais de companhia para a ponderação do risco.
Por isso, a crueldade animal, os maus-tratos a animais devem ser vistos como uma bandeira vermelha pela sociedade, tendo em conta os perigos e outras realidades criminais ou desviantes que lhe estão associadas. Por exemplo, numa análise de 20 atiradores em massa, identificou-se que a maioria tinha sido cruel com animais durante a infância e aqueles que tinham uma história de abuso de animais tendiam a ser mais jovens no momento da sua ofensa, comparativamente aos que não registavam histórico.
Aliás, ainda sobre a infância, é importante referir que existe uma relação sólida entre a crueldade infantil aos animais e traços psicopáticos precoces, assim como uma maior relação entre atos de crueldade contra animais na infância e a agressividade e atividades antissociais mais persistentes quando adultos. Por isso, ao ter conhecimento de alguma criança ou adolescente que seja violento para com animais, este comportamento poderá ser encarado como sinal de alerta para que se proceda a uma avaliação e intervenção especializada o mais atempada possível.
E o que pode estar nas motivações de alguém que maltrate um animal?
As motivações são diversas. Por exemplo, os agressores de violência doméstica tendem a explorar o vínculo emocional que as vítimas têm com os seus animais de companhia como forma de chantagem emocional e coagir as vítimas a permanecer em silêncio ou a retornar ao relacionamento.
Outros há que exercem maus-tratos com a distorção de estar a corrigir um comportamento do animal ou para punir o erro praticado pelo animal.
Em fenómenos de grupo, pode ser pela motivação de impressionar outros em lutas de cães. Tais motivações são, frequentemente, sugestivas de défice emocional generalizado ou desapego emocional, de ausência de empatia ou de remorsos, por sinal visível na ausência de preocupação pelos sentimentos ou bem-estar dos animais. É por isso que estas agressões, sejam por ação ou omissão, deveriam justificar uma perícia rigorosa sobre a personalidade dos arguidos em investigação por este tipo de crime.
“No dia em que sociedade perceber que a brutalidade contra animais é também um indicador para agressões contra humanos irá prestar mais atenção a esta realidade.”
Na sequência destas evidências que a investigação científica traz à luz, a Justiça e os órgãos de polícia criminal têm que, cada vez mais, desenvolver a consciência de que um animal de companhia maltratado num ambiente familiar não é apenas o objeto material de um crime, mas um indicador de poderem existir outras vítimas em risco, ou de outras agressões no passado.
No dia em que sociedade perceber que a brutalidade contra animais é também um indicador para agressões contra humanos irá prestar mais atenção a esta realidade. Esperamos que este livro, a campanha criada em torno do livro com diversas figuras públicas e, agora, esta oportunidade de falar sobre o tema, sejam mais um passo.
Contudo, nos últimos anos tem-se assistido a um crescimento da consciencialização das pessoas sobre o bem-estar animal. Como psicólogo, que razões encontra para esta sensibilização por parte da sociedade?
Essa consciencialização sobre o bem-estar animal resulta, em grande parte, da maior noção que vamos tendo dos laços que unem as pessoas e os animais, em particular a forma como têm um impacto positivo na saúde física e mental. Com esta maior noção, os animais são reconhecidos como membros da família e deixam de ser vistos como posses ou objetos. A substituição do termo animal de estimação por animal de companhia reflete, exatamente, o papel dos animais, enquanto fonte de companhia e apoio social, assim como a importância do vínculo pessoa-animal.
Existem inclusive teorias explicativas para sistematizar a importância dos animais de companhia para o ser humano. Por exemplo, a teoria da vinculação que sugere que os humanos possuem a necessidade de cuidar e, neste sentido, cuidar dos animais de companhia pode preencher o desejo intrínseco de cuidar e proteger, ou a teoria da identidade social, em que os animais são percecionados como um veículo para a construção dessa identidade, sendo disso exemplo as atividades de lazer com os animais que permitem experiências positivas e gratificantes de afirmação.
Outra razão fundamental é o papel ímpar que os animais desempenham nas dinâmicas familiares, independentemente de ser um casal recém-casado, um casal com filhos pequenos ou uma família em fase de vida avançada.
Está, então, relacionado com um novo papel que os animais de companhia hoje desempenham nas famílias? Considera que houve uma alteração nos laços emocionais que ligam as pessoas aos animais?
Claramente. O vínculo emocional construído com um animal de companhia proporciona inúmeros benefícios para o desenvolvimento do ser humano, podendo mesmo ultrapassar uma relação humana. É por isto que, enquanto sociedade, devemos levantar questões importantes, tais como a autorização de manter os animais de companhia junto aos seus tutores, ou pelo menos visitá-los, em contexto de hospitalização prolongada.
Ao longo das várias etapas da vida o papel que os animais desempenham é relevante a vários níveis. Por exemplo, no domínio emocional e num casal com filhos pequenos, a relação estabelecida entre um animal de companhia e uma criança transmite uma sensação de valorização e de bem-estar e promove competências de sensibilidade social. Por sua vez, os animais podem proteger as crianças da solidão e do isolamento social.
“A violência doméstica, o abuso infantil e a crueldade animal estão intimamente conectadas e assim continuarão até que sejam interrompidas.”
Quando os filhos crescem e chegam à adolescência, os animais ajudam a fomentar uma sensação de segurança e de aceitação total do jovem, o que é particularmente importante nesta fase de incertezas relativas à identidade e às relações de proximidade.
Se estivermos a falar de pessoas idosas, os animais ajudam a adotar um estilo de vida mais ativo e saudável, promovendo a estimulação física e cognitiva. Por vezes, sucede até a pessoa perder o companheiro e a companheira de vida e o suporta emocional dos animais permite reduzir os sentimentos de solidão, diminuindo os efeitos negativos do luto.
Enquanto profissional, o que o levou a interessar-se por estas matérias do bem-estar animal e do relacionamento entre pessoas e animais?
Foram essencialmente dois motivos. Trabalhei durante vários anos numa casa de abrigo para vítimas de violência doméstica e fui ouvindo vários relatos de vítimas que contavam como os seus agressores eram também violentos para os animais de companhia, o que lhes causava um sofrimento intenso. Várias destas vítimas adiaram mesmo a saída da situação violenta porque não queriam deixar o seu animal de companhia. Isto mostrava o quanto o vínculo entre aquelas vítimas e os seus animais era intenso.
Outro motivo foi o número de pedidos crescente para consultas de apoio ao luto na sequência da perda de um animal de companhia. Continua a existir um enorme estigma social perante este necessário processo de luto e esta experiência de perda pode ser vista como duplamente solitária, dado que o suporte emocional que era providenciado pelo animal foi perdido e não é, de todo, reconhecido, substituído pelo apoio das pessoas mais próximas. Não raras vezes, apesar do sofrimento intenso, é exigido que a pessoa continue a trabalhar, como se nada tivesse acontecido.
Isto aliado ao facto de ter tido cães e gatos ao longo da vida, fizeram-me pesquisar sobre o tema para perceber se isto poderia ser um eventual enviesamento emocional ou se havia evidência científica sobre os laços entre pessoas e animais. E foi surpreendente pois, a nível internacional, já existem inúmeros estudos, inclusive sobre intervenções assistidas por animais e os seus benefícios, ou o recurso a cães facilitadores em contexto de tribunal.
*Entrevista publicada originalmente na edição n.º 165 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de novembro de 2022.