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Animais de Companhia

“O problema é a aplicação da legislação do direito e bem-estar animal e a falta de formação dos profissionais nestas matérias”

Marisa Quaresma dos Reis

Assume cargos que tratam de temas complexos, como o direito e o bem-estar animal. Marisa Quaresma dos Reis foi Provedora Municipal dos Animais de Lisboa durante quatro anos, cargo que conciliou com a docência. Continua a coordenar ações de formação e cursos de especialização e, apesar da evolução de décadas na proteção dos animais, considera que há ainda um longo caminho a percorrer.

Como foi a experiência do cargo de Provedora Municipal dos Animais de Lisboa?

 

O meu mandato como Provedora Municipal dos Animais de Lisboa [que decorreu entre 2017 e 2021] trouxe um acrescento inestimável às minhas valências académicas no campo do direito animal, uma vez que pude viver, na prática, a sua interpretação e aplicação. Ainda hoje usufruo desses ensinamentos colhidos e da experiência adquirida e procuro continuar a beneficiar, de alguma forma, a condição dos (outros) animais e das pessoas que os consideram detentores de valor moral e que anseiam por uma sociedade mais sensível a estes nossos companheiros de jornada.

O Provedor Municipal dos Animais é uma figura fulcral na promoção do bem-estar animal, pois atua como um observador zeloso e independente das práticas do município no tratamento das situações que envolvam os animais. Tem também uma função essencial no estabelecimento de pontes entre a sociedade civil e os organismos públicos competentes e na formação e sensibilização da sociedade e do poder político.

 

Por outro lado, tem estado envolvida na docência. Considera que a aposta em cursos ligados ao Direito e Bem-Estar Animal tem vindo a crescer no País?

Desde que tomei posse como Provedora dos Animais de Lisboa, em 2017, que fui convidada para ser co-coordenadora do curso de pós-graduação em Direito dos Animais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Esta pós-graduação é, até hoje, a única do género no País [embora já exista oferta a nível de LLMs  Master of Laws noutros países, como Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, entre outros]. Já vamos com quatro edições da pós-graduação, todas elas com elevadas taxas de inscrição. Continuei também a lecionar noutras áreas do direito no ISEG, onde já era docente.

 

“Gostaria, acima de tudo, que o legislador (…) olhasse com maior atenção e equidade para o bem-estar de outras espécies animais que o ser humano não utiliza para companhia”

 

Este ano, começou uma nova etapa profissional, muito interessante e promissora, que é a do surgimento de oferta na área da formação profissional e, por isso, mais acessível ao público em geral e orientada para a prática. No passado mês de setembro, decorreu uma ação de formação intensiva certificada, de 20 horas, que contou com duas edições, ministrada pela Associação Animais de Rua, em Direito Animal, da qual fui formadora.

Começam a surgir cada vez mais ofertas de formação no mercado na área de direito e bem-estar animal, como é o caso dos vários cursos de formação nestes domínios, que serão lançados pelo Instituto CRIAP, em 2024, e nos quais serei formadora. E, atrás do CRIAP, estou certa de que virão outras entidades que ampliarão os seus domínios a esta matéria, cada vez mais complexa e necessária.

Qual o balanço que faz na evolução do direito animal ao longo das últimas décadas?

A complexidade que estas matérias passaram a assumir no direito trouxe novos desafios aos profissionais e aos cidadãos em geral que lidam com animais de companhia. Em especial, desde 2014, com a criminalização dos maus-tratos e do abandono de animais de companhia e, logo depois, em 2017, quando o legislador reconheceu um novo estatuto jurídico aos animais, retirando-os da categoria de “coisas”, para lhes reconhecer um estatuto intermédio entre “coisas” e “pessoas”, a que chamou de “seres vivos dotados de sensibilidade”.

“Começam a surgir cada vez mais ofertas de formação no mercado na área de direito e bem-estar animal”

Atualmente, o valor dos animais para a nossa Constituição é um dos temas mais sensíveis e discutidos em sede de direito constitucional. É certo que este caminho começou muito antes, devendo destacar-se a nossa Lei Geral de Proteção Animal, que abrange todos os animais, de 1992, uma declaração de boas intenções, mas criada sem regime sancionatório, mas que, felizmente, quase 30 anos depois, passou a prever consequências para os seus prevaricadores. Mais tarde, em 2001, foi implementada a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia em Portugal, num decreto-lei que estabelece o regime contraordenacional (pouco conhecido e ainda menos aplicado) nestas matérias. Em 2016, passou a ser proibido o método de abate para controlo populacional dos animais errantes, devendo as entidades competentes dar preferência a campanhas de esterilização para esse efeito.

O ritmo de produção da legislação nestas áreas – e até a frequência com que a mesma é invocada perante entidades administrativas – aumentou exponencialmente, até porque a sociedade passou a ter uma maior consideração e respeito pelos animais, nas suas diferentes espécies, muito por mérito dos animais de companhia, pela demanda do legislador, das entidades públicas e da população em geral.

Prevejo que este caminho seja para continuar, em crescendo, pois o direito acompanha a moral e sentido de ética vigentes em cada momento histórico. E é por isso que muda e evolui.

Neste circuito, que áreas gostaria de ver mais desenvolvidas no futuro?

Gostaria, acima de tudo, que o legislador [mas, para isso, a sociedade também terá de o fazer e sempre primeiro que o legislador], olhasse com maior atenção e equidade para o bem-estar de outras espécies animais que o ser humano não utiliza para companhia. No caso dos animais de companhia, já existe uma extensa legislação e, na maior parte, adequada ao sentir da maioria da sociedade. O problema é a aplicação prática dessa legislação e a gritante falta de formação dos profissionais nestas matérias.

Que projetos tem o instituto CRIAP para o próximo ano que importe referir?

O Instituto CRIAP, enquanto entidade privada e não relacionada com a causa animal, demonstra ser pioneiro na formação profissional certificada nestas matérias. Foi com grande agrado e alguma surpresa que, na primeira reunião que tivemos a propósito de uma eventual colaboração minha, como docente, no Instituto, demonstraram grande interesse e vontade de desenvolver ações formativas orientadas para o direito e proteção animal. Presumo que, por ser um instituto com génese na formação em Psicologia e Ciências da Saúde, abrace uma visão One Health, que é cada vez mais popular nestes domínios. A saúde humana (física e emocional) está interligada à saúde animal e à preservação do ambiente. Parece sensato fazer-se uma abordagem integrada nestes domínios também a nível da formação e que este conceito também impregne o espírito do legislador.

“Atualmente, o valor dos animais para a nossa Constituição é um dos temas mais sensíveis e discutidos em sede de direito constitucional”

Estão já aprovadas quatro ações de formação ministradas por mim, certificadas pela DGERT. Neste momento, já estão disponíveis na oferta formativa para este domínio, um curso intensivo de 20 horas em Direito Animal, que decorrerá em janeiro de 2024, dois workshops, um em Gestão Urbana de Animais Errantes e outro sobre o Regime Jurídico dos Animais de Companhia. Uma novidade absoluta [que eu saiba, o primeiro no nosso País, mas já existente noutros países] será o curso intensivo de 20 horas em Legislação da Medicina Veterinária, em março de 2024, que se espera ser um grande sucesso e que se tornou numa evidente necessidade, devido à grande regulamentação e legislação que incide sobre a profissão e temas com ela relacionados.

Por último, está em preparação uma especialização avançada em Serviço Social Animal, e da qual sou coordenadora, em conjunto com o presidente da Animalife, Rodrigo Livreiro, associação parceira desta formação. Estou muito feliz e expectante com a abertura do CRIAP à criação de todas estas propostas formativas que resultam do levantamento das necessidades sentidas no terreno.

O que falta acautelar em Portugal na defesa do direito animal?

Há um enorme caminho a fazer no que respeita à proteção jurídica do bem-estar e dignidade de outros animais que o ser humano aprendeu a destinar na história da sua evolução, a nível do vestuário, da alimentação, da experimentação animal, da ornamentação, da diversão ou para realizar aquilo que entende por manifestações culturais. A tecnologia tende a tornar possível substituir todas estas formas de utilização de seres, sobre os quais, temos a certeza de que são dotados de sensibilidade, de inteligência, emoções e sujeitos a sofrimento, tal como nós.

No futuro, ainda longínquo, é bem provável que a forma como nos relacionamos com o planeta e os outros seres vivos em geral, seja radicalmente diferente. O direito irá ajudar a fazer esse caminho. E o ensino e a formação também.

PERFIL

Marisa Quaresma dos Reis

Foi Provedora Municipal dos Animais de Lisboa, entre 2017 e 2021. Atualmente, é docente de Direito no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ULisboa) e no Instituto CRIAP e investigadora no Lisbon Public Law da Faculdade de Direito da ULisboa. Assume ainda, o cargo de co-coordenadora da pós-graduação em Direito dos Animais do Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito na mesma universidade.

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