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Clínica Veterinária João XXI: “A medicina veterinária vive e trabalha com emoções”

Rodrigo Cabrita

Francisco D’Assis Costa orgulha-se de estar “ao leme” da “clínica mais antiga de Lisboa”. Comemorou recentemente 50 anos de carreira e é o primeiro a dar o exemplo à equipa da Clínica Veterinária João XXI. Entre a gestão e a prática clínica tem objetivos concretos que passam por manter ou melhorar a qualidade. E critica a realidade de um setor muito impactado pelos impostos, por uma concorrência desmedida e por vezes “desleal”.

Na receção da Clínica Veterinária João XXI, na rua com o mesmo nome, em Lisboa, a azáfama é notória. Médicos, enfermeiros e auxiliares multiplicam-se em tarefas e vivem mais uma manhã de grande procura. Nesta que é “a clínica mais antiga” da capital, pelas palavras do seu diretor clínico Francisco D’Assis Costa, com 75 anos de existência, já passaram animais de quatro gerações familiares. O médico veterinário, que celebrou meio século de carreira no passado mês de julho, continua com uma energia contagiante. Aos 74 anos, confessa que nunca tirou “mais do que quinze dias de férias seguidos” nem tem intenções de se reformar. “Quero continuar a exercer, desde que a saúde me permita. Parar não está nos meus planos”.

 

Confessa-se um workaholic, com grande sentido de responsabilidade e vocação para o empreendedorismo. Divide a semana entre a medicina veterinária, a medicina humana e a agricultura, em Mértola. O filho Filipe D’Assis Costa juntou-se ao negócio enquanto gestor e administrador, conferindo o apoio que o pai necessitava. Afinal, o crescimento tem sido contínuo.

“Somos pioneiros em algumas coisas. Por exemplo, trabalho com laserterapia médica e cirúrgica há 40 anos quando quase ninguém tinha cirurgia a laser e numa época em que se considerava que esta técnica era um placebo. Hoje, toda a gente a quer ter”, explica o diretor clínico, que adquiriu esta clínica em 1982. Mas foi em 1975 que terminou o curso e que começou a prática clínica. Desde então tem dedicado a sua vida “à ciência, à investigação e à área clínica”.

 

A história da Clínica Veterinária XXI deve-se a um grupo de três médicos veterinários, como conta Francisco D’Assis Costa: “O Dr. Vieira Lisboa, que também era coronel médico veterinário; o Dr. Marques de Almeida, um “papa” da medicina veterinária e foi o fundador da World Small Veterinary Association, com grande repercussão internacional [também oficial médico veterinário do exército], e o Dr. Pires Carrondo, que tinha uma clínica no Bairro das Colónias e mudou-se depois para Campo de Ourique”. Após a saída de Pires Carrondo e de Marques Almeida, Vieira Lisboa ficou a gerir a clínica sozinho. “Quando quis participar num congresso fora do país, pediu-me para o substituir uma semana e nunca mais me deixou sair. Fui seu assistente durante sete anos e, em julho de 1982, quando resolveu colocar a clínica à venda, resolvi comprar e continuar o projeto. Como já cá trabalhava fiquei eu a fazer história ao leme deste barco.”

“Sempre segui uma norma de gestão que consistia em utilizar 5% do resultado positivo em investimento. Isso fez com que todos os anos se comprassem aparelhos novos.” – Francisco D’Assis Costa, diretor clínico

Fotografia: Rodrigo Cabrita

 

O crescimento tem sido exponencial desde então, mas a concorrência em Lisboa “é hoje mais feroz”. Quando se licenciou, a capital contava com oito locais de atendimento. “Hoje tem mais de 300. Aliás, num raio de cinco quilómetros da clínica onde nos encontramos, existem 74 CAMV.” Esta realidade leva à perda de qualidade, defende. “A medicina deixa de ser uma arte para passar a ser um comércio. Claro que é preciso ter retorno financeiro para não se correr o risco de fechar, mas o excesso de oferta leva a uma concorrência desmedida e, muitas vezes, desleal.”

O facto de a medicina veterinária ser atualmente “muito mais exigente”, obriga a uma maior especialização e a uma oferta muito superior. “Mas quando começou, a Clínica João XXI trabalhava da mesma maneira, já tinha hematologia, Raio-X, ecografia e não era comparável com o que existia à volta. Fomos autossuficientes desde o início.”

 

Francisco D’Assis Costa denota diferenças na forma como estudava e o que existe hoje. “Antigamente queríamos fazer uma tese de investigação e tínhamos de nos fechar numa biblioteca durante duas ou três semanas a investigar livros, revistas, etc. Hoje basta ligar o tablet e fazer pesquisas no Google e no Chat GPT. Tudo está mais facilitado.” Também a internet e a Inteligência Artificial servem de “conselheiros” a alguns tutores que optam por fazer pesquisas e arranjar o que pensam ser “soluções” para os seus animais. Isto leva a que os casos surjam cada vez mais tarde à consulta e já com “grande cronicidade”. “Por vezes, andaram semanas a fazer o que encontraram na internet e o caso poder-se-ia resolver mais cedo, o que leva a que se tenha perdido, por vezes, o momento mais adequado para ter o melhor resultado.”

“Independentemente do conhecimento científico, o que interessa é olhar para um animal de companhia e ver nele um estatuto humano que lhe confere dignidade e dá satisfação e realização a quem o trata.” – Francisco D’Assis Costa, diretor clínico

Fotografia: Rodrigo Cabrita

Todos os dias do ano

A funcionar todos os dias do ano, incluindo fins de semana e feriados, das 08h00 às 20h00, é necessário ter uma equipa que assegure vários turnos. De quando em quando, a clínica recebe estagiários e, inclusive, opta por remunerar. “Já possibilitei para cima de 60 estágios profissionais a colegas.” É também frequente aceitar estágios particulares nesta que tem “sido uma escola para muita gente”. E conta uma experiência recente: “Ainda na semana passada recebemos uma rapariga que gostaria de seguir medicina veterinária, mas não sabia se iria gostar. Veio cá passar dez dias e ficou encantada e com a certeza de que é isto que quer fazer.” Assistiu a cirurgias, a consultas, acompanhou toda a atividade da clínica e conseguiu perceber que o seu futuro passará certamente pela medicina veterinária.

No que respeita às instalações, a clínica em Lisboa funcionava na cave do prédio onde o diretor clínico trabalhou mais de 40 anos. “Como tínhamos uma loja que quisemos anular quando criámos o petfood aqui ao lado, estávamos a perder dinheiro e apenas a pagar renda. O meu filho Filipe, como farmacêutico e gestor convenceu-me a mudar e a aproveitar o espaço onde hoje estamos.” A ideia passava por rentabilizar a área, tornando a clínica mais funcional e prática. “Tivemos a sorte de a obra estar concluída um ano antes da pandemia de Covid-19, o que foi uma grande vantagem.” A continuação de atendimento na cave teria dificuldade, pois as condições de segurança e de distância que eram exigidas à época porque “tinha menos visão de rua e menos arejamento”. Atualmente, esse andar funciona como “sala de reuniões e como biblioteca técnica com milhares de livros, uma receção e um vestiário. Tem ainda dois gabinetes de consulta e um bloco operatório”.

A clínica que a equipa da VETERINÁRIA ATUAL visitou funciona como a “clínica mãe”, pois houve um investimento de mais dois CAMV – a clínica de Algés / Miraflores, há 24 anos, e um consultório, em Alvalade, há oito. A primeira divide-se entre zona de cat friendly e dog friendly, em andares diferentes. “Na cave dessa clínica, temos zona para grooming, gabinete de gatos, bloco operatório e gabinete de consulta de gatos, com sala de espera respetiva. No R/C, o funcionamento é semelhante, mas para cães.” O facto de ter muitos clientes da zona do Estoril e em Cascais, precipitou a decisão. Eram pessoas que faziam 20 minutos de autoestrada, mas demoravam mais de uma hora a entrar em Lisboa, conta o médico veterinário.

No que respeita à clínica mais antiga “e com mais movimento de Lisboa”, a João XXI, tem à disposição todos os serviços, quer em clínica, quer em cirurgia. “Somos autossuficientes em diagnóstico e só em relação à anatomia patológica é que enviamos para dois laboratórios fora, consoante o tipo de análises que precisamos de fazer.” O diretor clínico explica que, se tivesse a ambição de transformar a clínica em hospital, bastaria passar a ter um horário de 24 horas, pois toda a estrutura atual poderia permitir essa mudança. “Mas não quero”, diz, determinado. Chegou a uma fase da vida profissional, com enorme experiência, e muitos anos no ativo, para desejar “não crescer mais”. Prefere dar passos sólidos e consistentes.

Apesar de já ter sido contactado, pelo menos sete vezes, por parte de grupos económicos, a resposta a uma potencial aquisição foi sempre negativa. “O que funciona bem não se muda. Grosso modo, tenho 21 famílias que dependem do ordenado e é evidente que há uma responsabilização profissional.” E foi a mesma postura que o levou a ter uma regra desde o começo: “Sempre segui uma norma de gestão que consistia em utilizar 5% do resultado positivo em investimento. Isso fez com que todos os anos se comprassem aparelhos novos. Para lhe dar um exemplo, eu estou na quinta geração de aparelhos de laser”, explica.

As consultas funcionam por marcação, à exceção das urgências que surjam. “Temos sempre um médico ou dois disponíveis para avançar e eu como diretor clínico não perco a oportunidade de ver tudo o que se passa aqui dentro.” Defende ainda o intercâmbio de casos, o diálogo entre todos e a toma de decisões em conjunto. “É saudável avaliar as situações em equipa e perceber qual a melhor solução. Por muita experiência que se tenha ninguém é detentor da verdade absoluta na medicina.” E acrescenta: “A medicina veterinária vive e trabalha com emoções. Independentemente do conhecimento científico, o que interessa é olhar para um animal de companhia e ver nele um estatuto humano que lhe confere dignidade e dá satisfação e realização a quem o trata”.

“Os 23% de IVA representam ¼ da faturação e temos de considerar ainda os outros impostos [como o IRS ou o IRC]. Esta é a atividade médica mais cara que existe.” – Francisco D’Assis Costa, diretor clínico

Fotografia: Rodrigo Cabrita

Impostos altos representam uma injustiça para o setor

Defendendo que tudo o que um médico veterinário faz é Saúde Pública, é crítico relativamente ao IVA a 23% cobrado ao setor, situação que “se vive desde o governo de Cavaco Silva e Manuela Ferreira Leite”. Se um animal tiver tuberculose, hidatidose, raiva, hepatite, uma vulgar febre da carraça, entre outras patologias, poderá transmiti-las para o ambiente familiar em que está inserido. “Não faz sentido algum a medicina humana ser isenta de IVA e a medicina veterinária não.” Ao longo dos anos de carreira, e também por ter sido fundador da Ordem dos Médicos Veterinários e da APMVEAC, tem falado com sucessivos bastonários e representantes, apresentando propostas concretas relativamente aos impostos exigidos ao setor. “A medicina veterinária deveria ser entendida em três áreas específicas: a agropecuária [produzindo aquilo que alimenta as pessoas] que devia ter um IVA de 6%, enquanto fonte produtiva, como acontece noutro tipo de produções; a transformação na indústria devia ter um IVA de 13%; e os animais de companhia, enquanto Saúde Pública, deveriam ser isentos de IVA.” Apesar dos sucessivos alertas e “de os bastonários já terem abordado esta questão com os políticos, ainda não foi possível reverter esta situação, que é injusta”.

Os impostos não acompanham a maior especialização e exigência que o setor envolve. “Os 23% de IVA representam ¼ da faturação e temos de considerar ainda os outros impostos [como o IRS ou o IRC]. Esta é a atividade médica mais cara que existe.” O diretor clínico faz o paralelismo comparativamente à medicina humana e refere situações incomparáveis: “Na medicina humana podemos ter um rececionista que pode gerir um consultório com quatro ou cinco médicos que lá trabalham, ao passo que na medicina veterinária, além do rececionista, precisamos ter um, dois ou três auxiliares ou enfermeiros em cada consulta. Os custos de funcionamento por hora de trabalho, em veterinária, são muito superiores, com encargos muito maiores e taxas muito menores no que respeita a honorários.”

A exigência dos clientes acompanha o crescimento do setor, o que obriga a uma gestão ainda mais cuidada. “Os custos são elevadíssimos, daí que a medicina veterinária tenha de ter um investimento grande em hardware e outros ligados à estrutura, para podermos prestar um serviço de qualidade”, adianta Francisco D’Assis Costa, que considera os recursos humanos a vertente mais desafiante. “Recrutar é hoje muito mais difícil.” E também o ‘burnout’ deve ser prevenido através da promoção de um ambiente familiar, com o respeito por todos, e da formação contínua. Uma das medidas que a clínica institui é a possibilidade de um funcionário ter vários períodos de férias por ano, desde que um colega assegure a função respetiva.

Ao defender esta atividade como cada vez mais emocional e humanizada, não esquece o alento que os tutores de animais precisam quando perdem um animal. “Enviamos um postal de condolências quando morre um animal e telefonamos no dia seguinte a perguntar como a pessoa está a lidar com o luto e em que é que podemos ajudar.” Ainda relativamente às dinâmicas familiares e sociais, o médico veterinário partilha uma realidade curiosa e que se distingue dos tempos em que começou a trabalhar. “Há 40 anos, divorciavam-se 15% das pessoas, hoje divorciam-se 60%. E quando há um divórcio e animais em casa, existe a guarda partilhada dos animais. E esta é uma realidade que não existia antigamente.” Conta que alguns casais separados vêm juntos às consultas para se sentirem informados relativamente ao seu animal de companhia.

Apesar de estar continuamente atento ao que se passa e assegurar a gestão, continua a operar e a dar consultas. “É algo do qual não abdico desde que tenha saúde e capacidade para o continuar a fazer. Não faz parte dos meus planos alterar esta forma de estar.”  O futuro? Não passa por crescer mais, como repetiu o diretor clínico, mas o objetivo de “manter ou melhorar a qualidade” é o que o move. “Quando se atinge determinado nível e se tem objetivos conscientes só pode ser assim.”

*Artigo publicado na edição 196, de setembro, da VETERINÁRIA ATUAL

 

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