O projeto europeu Planet4Health está a investigar o impacto das alterações climáticas na saúde humana, animal e ambiental através de uma abordagem One Health. Em Portugal, a APMVEAC – um dos parceiros deste consórcio – destaca-se no estudo da Leishmaniose canina para desenvolver sistemas de alerta precoce que possam apoiar políticas públicas e estratégias de prevenção em toda a Europa. Em entrevista, Filipe Gonçalves, enfermeiro veterinário e investigador, explica a relevância e os objetivos desta investigação.
Na sua perspetiva, qual é a importância de projetos interdisciplinares como o Planet4Health para a saúde planetária?
Através desta abordagem interdisciplinar, ou seja, com a colaboração de especialistas de diferentes áreas, o projeto visa fundamentalmente apoiar processos de policy making e sensibilizar os cidadãos para uma saúde planetária sustentável, mediante a criação de políticas climáticas e ambientais, assim como estratégias de adaptação e atenuação dos riscos naturais.
De que forma a colaboração entre diferentes áreas do conhecimento (ciências ambientais, medicina veterinária, saúde pública…) contribui para a eficácia do projeto?
A colaboração interdisciplinar realizada não só pelas entidades das áreas referidas, como também por especialistas nas áreas políticas, económicas, desenvolvimento tecnológico, direito, ética e outras, permite dar uma maior coesão a este tipo de projetos. O consórcio produz ciência por intermédio de investigação, inovação tecnológica, formações adaptadas e soluções políticas através desta colaboração polivalente em consonância com o carácter mundial da saúde planetária.
Como é que a APMVEAC se posiciona dentro do consórcio e que papel desempenha?
A APMVEAC é um dos 17 parceiros que fazem parte deste consórcio e, como entidade especialista na área de medicina veterinária de pequenos animais, tem um papel fundamental num dos quatro case studies desenvolvidos no Planet4Health, nomeadamente o case study 1, referente à distribuição do vetor transmissor da Leishmaniose na Península Ibérica e a ocorrência da doença em cães. Neste âmbito, gostaria de fazer referência a Lisa Mestrinho, Presidente da Comissão Científica da APMVEAC, e Carla Maia, líder do case study 1.
Por que razão a Leishmaniose canina foi escolhida como tema central deste case study?
A Leishmaniose canina tem um papel principal neste case study por ser uma zoonose e transmitida por vetores, neste caso o flebótomo. Estudos atuais têm revelado a presença de flebótomos em zonas livres destes agentes até aos dias de hoje. Este fenómeno, consequência das alterações climáticas, aumentou a necessidade de melhor prever e alertar estas ocorrências e o seu consequente risco de transmissão da doença em cães, gatos e humanos, já que se trata de uma zoonose. Esta é uma zoonose que, infelizmente, é pouco divulgada mas que traz graves consequências cutâneas e viscerais em indivíduos infetados. Esta infeção é muitas vezes silenciosa, manifestando-se apenas em fases mais avançadas.
Que fatores ambientais mais contribuem para a propagação da Leishmaniose em Portugal e noutros países envolvidos no estudo?
Sem dúvida que as alterações climáticas têm um papel preponderante na dispersão da doença. Com o aquecimento global verificou-se um aumento da atividade dos flebótomos. Este é o vetor da doença responsável pela sua disseminação. Ao picar animais doentes, o vetor consegue expandir a doença infetando outros animais. A evidência é alta, o número de casos duplicou nos últimos dez anos e a doença já não está restrita aos quatro ou cinco meses mais quentes do ano, no presente conseguimos identificar animais infetados por Leishmania praticamente durante todo o ano. Existem ainda outros fatores importantes tais como a acumulação de matéria orgânica, que potencia o ciclo de vida do flebótomo, a quantidade de animais errantes, que podem comportar-se como reservatórios, e de animais infetados assintomáticos não controlados. Gostaríamos de realçar que ainda existe muita desinformação, especialmente entre tutores, associada à transmissão e prevenção da doença, o que também contribui para um incremento do número de casos.
“A evidência é alta, o número de casos duplicou nos últimos dez anos e a doença já não está restrita aos quatro ou cinco meses mais quentes do ano, no presente conseguimos identificar animais infetados por Leishmania praticamente durante todo o ano.”
Que tipo de dados são necessários para prever a propagação da doença em diferentes cenários climáticos?
O papel da APMVEAC consiste na recolha de dados relacionados com a ocorrência de casos de Leishmaniose nos últimos 10 anos em Portugal, havendo a possibilidade de estender esta pesquisa para toda a área da Península Ibérica. Para tal acontecer envolvemos várias partes interessadas, mas sobretudo médicos veterinários, a partilharem connosco dados relacionados com os pacientes infetados, de forma totalmente anónima. O cruzamento destes dados com a informação proveniente de outros modelos que estão a ser desenvolvidos atualmente, como a monitorização da humidade dos solos, das temperaturas médias em Portugal nos últimos anos, permitirá criar um modelo de identificação precoce e consequentemente de mitigação da dispersão dos vetores da doença nos diferentes cenários climáticos.
De que forma os modelos de previsão podem apoiar políticas públicas e estratégias de saúde veterinária e humana?
Estes modelos de previsão, designados no projeto como sistemas de alerta precoce, serão a base da mudança na deteção e monitorização que se faz atualmente em doenças transmitidas por vetores. Esta mudança de paradigma poderá apoiar a criação de novas políticas públicas não só em Portugal como no resto da Europa.
Quais são os principais desafios na monitorização dos vetores (como os culicóides) e dos animais hospedeiros?
Começando pelos vetores, os principais desafios prendem-se com o facto de não haver mecanismos que permitam identificar, em tempo real, a presença de culicóides num determinado lugar e, consequentemente, de não se conseguir dar uma resposta eficaz no controlo da transmissão e na redução de riscos de surto. Relativamente aos hospedeiros, existem desafios na comunicação e informação a ser transmitida aos detentores de animais de companhia, na diferenciação entre a prevenção para a picada do vetor e a vacinação para a doença, que são mecanismos de mitigação diferentes. Por exemplo, uma coleira antiparasitária previne a picada do vetor e consequentemente evita a disseminação da doença a partir de um animal infetado, e uma vacina protege o cão da doença, mas não da sua transmissão, ou seja, a contaminação do vetor com o parasita sanguíneo ainda é possível. Além disso, ainda existem os fatores ambientais que influenciam a distribuição do vetor e que precisam de ser melhor identificados e relacionados com a ocorrência do agente, ou seja, o outro desafio consiste no cruzamento do máximo de informação possível.
Existem já indícios de novas áreas de risco emergentes em resultado das alterações climáticas?
Sem dúvida. Uma doença que anteriormente estava circunscrita a países como Portugal, Espanha, Itália, Grécia e Turquia, atualmente já é considerada endémica no sul da França e a tendência será para que a propagação dos culicóides atinja outros países no centro e norte da Europa.
“O cruzamento destes dados com a informação proveniente de outros modelos que estão a ser desenvolvidos atualmente, como a monitorização da humidade dos solos, das temperaturas médias em Portugal nos últimos anos, permitirá criar um modelo de identificação precoce e consequentemente de mitigação da dispersão dos vetores da doença nos diferentes cenários climáticos.”
Qual poderá ser o impacto prático deste case study na saúde pública veterinária e humana?
A criação de um sistema de alerta precoce, vai ter um forte impacto não só na saúde veterinária como também na saúde humana porque potenciará a deteção e resposta célere a um aumento do risco de contacto com o vetor, melhorando a supervisão sobre a transmissão, reduzindo os riscos de surto e, por fim, diminuindo o número de infetados: pessoas, cães, gatos e outros hospedeiros.
De que forma a informação recolhida pode contribuir para programas de prevenção e controlo da Leishmaniose?
Como já foi referido anteriormente, a informação que atualmente está a ser recolhida no âmbito deste projeto terá um papel fundamental para a criação de um sistema de alerta precoce, c0m os dados relativos às ocorrências de Leishmaniose nos últimos dez anos em Portugal e com a colaboração com outros modelos em desenvolvimento simultâneo, tais como como a monitorização de humidade nos solos ou a evolução das temperaturas. Desta forma, conseguiremos criar um modelo de alerta precoce para a redução do risco de ocorrência de Leishmaniose, ao mesmo tempo que será também um modelo de monitorização da ocorrência da doença através do registo da deteção de casos de Leishmaniose.
Que benefícios o projeto trará a nível europeu e quais podem ser adaptados à realidade portuguesa?
Conhecer e projetar os efeitos das alterações climáticas no futuro permitirá alertar para a adoção de políticas de prevenção destas alterações mas também políticas de mitigação para as suas ocorrências. Se o flebótomo dispersar-se para outras zonas da Europa atualmente livres do vetor, dever-se-á adotar políticas que reduzam essa dispersão, ambientais e de saúde pública, envolvendo todas as partes envolvidas como farmacêuticas, laboratórios de investigação, municípios, universidades, institutos de saúde pública e por fim, mas não com menor importância, a população em geral. Acreditamos que envolvendo todos os intervenientes na produção de informação permitirá divulgá-la de forma mais eficaz, contribuindo não só para reduzir o impacto das alterações climáticas, como para sua a desaceleração.
Considera que a metodologia usada no case study poderá ser replicada noutras doenças zoonóticas?
Esta metodologia já se encontra a ser desenvolvida e implementada noutros projetos que incluem a criação de sistemas de alerta precoce para outros vetores, como o vetor da malária ou para doenças associadas a um maior risco de contaminação das águas por exemplo. Conhecendo quais os fatores que impulsionam a atividade e o desenvolvimento do vetor responsável e se tivermos uma base sólida relacionada com a ocorrência de casos nos últimos anos da doença em determinada área, acreditamos que esta metodologia será um bom ponto de partida para replicar em outras zoonoses.

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