As recentes eleições para o Comité Executivo da Associação Mundial de Veterinária de Pequenos Animais (WSAVA, sigla em inglês) voltou a destacar a presença portuguesa nos organismos internacionais da medicina veterinária. Depois de já ter cumprido dois mandatos, entre 2019 e 2023, Felisbina Queiroga regressa agora ao órgão de decisão mundial, eleita com 56% dos votos num processo que reuniu 115 associações de mais de 90 países.
O regresso representa não só o reconhecimento da sua experiência acumulada, mas também a oportunidade de reforçar a ligação entre a WSAVA e os seus membros, garantindo uma comunicação eficaz e promovendo o desenvolvimento de guidelines que orientam a prática clínica em todo o mundo.
Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, Felisbina Queiroga aborda a nova posição no Comité, a estratégia a desenvolver e as prioridades para este mandato. A conversa aborda ainda o papel do conceito One Health, os desafios associados ao uso de antimicrobianos e as principais dificuldades que a medicina veterinária enfrenta atualmente.
O que a levou a recandidatar-se ao comité executivo da WSAVA?
Integrei o comité executivo da WSAVA entre 2019 e 2023, tendo cumprido o máximo de mandatos permitidos pelos estatutos (dois mandatos seguidos). Este ano, após um dos colegas que representava a região da Europa, América do Norte e Australásia ter cessado prematuramente o mandato, surgiu uma vaga e eu decidi voltar a candidatar-me.
Éramos seis candidatos e tive a felicidade de ser eleita logo na primeira volta, reunindo 56% dos votos. De salientar que, para a votação, participam todas as Associações membros – 115 associações de mais de 90 países – o que mostra bem a diversidade de culturas e realidades representadas, o que torna esta eleição particularmente desafiante e enriquecedora.
Qual é a importância desta eleição para a sua carreira académica e profissional?
Diria que o mais importante para mim não é aquilo que posso receber, mas sim aquilo que posso dar. O meu objetivo é contribuir para aproximar esta associação mundial dos seus membros, melhorando a qualidade do exercício da medicina veterinária tanto quanto possível a nível global.
Naturalmente, este tipo de responsabilidade também fortalece a minha experiência internacional e abre novas oportunidades de colaboração científica e institucional, mas o foco está sempre no impacto coletivo.
O meu objetivo é contribuir para aproximar esta associação mundial dos seus membros, melhorando a qualidade do exercício da medicina veterinária tanto quanto possível a nível global.
Que papel desempenha o comité executivo na definição de estratégias e decisões da WSAVA?
O comité executivo é parte integrante de todas as discussões. Embora historicamente as decisões estratégicas sejam desenhadas no seu “draft de proposta” pelo presidente, todos os membros do Comité Executivo contribuem ativamente. Duas vezes por ano ocorrem reuniões estratégicas com essa finalidade, uma delas sempre antes do congresso mundial que, este ano, se realiza no Rio de Janeiro, Brasil, entre 25 a 27 de setembro. Entre reuniões presenciais e virtuais, o trabalho é contínuo, porque as decisões tomadas afetam diretamente milhares de veterinários em todo o mundo.
Que prioridades pretende defender ao longo deste novo mandato?
Quero garantir que todos os membros são ouvidos e que têm uma via direta de comunicação comigo para tratar de qualquer assunto que diga respeito à sua associação profissional.
Pretendo ainda assegurar uma boa estratégia de comunicação entre os comités técnicos e o Comité Executivo. Tenho bastante experiência nesta área, uma vez que nos quatro anos em que o integrei previamente fui o membro responsável pela interação com vários comités (One Health; Hereditary Diseases Committee; Therapeutic Guidelines Group; Oncology Committee; Scientific Committee). Nos dois últimos, exerci também funções como membro, sendo que mantenho a posição de membro do Comité de Oncologia.
Parece que só pretendo focar-me na comunicação, mas na verdade esse aspeto é de extrema relevância para o bom funcionamento de uma organização tão complexa como a WSAVA. Sendo este mandato de apenas um ano, estes são os meus objetivos a curto prazo.
Além disso, irei também dar muita atenção aos países da América Latina, visto que sou fluente em espanhol e a língua inglesa ainda constitui uma barreira para essa região do mundo. Além disso, quero reforçar a ligação com associações de países africanos de língua portuguesa, que muitas vezes ficam menos representados nestes fóruns internacionais.
Quero garantir que todos os membros são ouvidos e que têm uma via direta de comunicação comigo para tratar de qualquer assunto que diga respeito à sua associação profissional.
Como vê a evolução da participação portuguesa em organismos internacionais de medicina veterinária?
Vejo com alegria, naturalmente. Somos muito capazes, por isso, será apenas uma questão de nos propormos e deixarmos que os outros nos conheçam. O resto vem em consequência. Portugal tem vindo a ganhar reconhecimento pela qualidade da sua investigação científica, mas também pela capacidade de liderança em diferentes comités.
Qual considera ser o impacto da WSAVA na promoção do bem-estar animal a nível mundial?
Através dos comités técnicos que referi anteriormente, a WSAVA produz guidelines importantíssimas que ajudam os veterinários em todo o mundo a melhorar a forma como tratam os animais de companhia. Essas normas estão publicadas em jornais da especialidade, mas também se encontram de livre acesso na página da WSAVA e traduzidas em inúmeras línguas. Eu própria traduzi várias delas para português, até porque não queremos que a linguagem seja uma barreira à aprendizagem.
Dou o exemplo do Glossário de Oncologia, desenvolvido pelo Comité de Oncologia, em que participei e que está traduzido em 16 línguas diferentes e disponível em acesso aberto. Outro importante documento em que participei diretamente foi a lista de medicamentos essenciais para uso em medicina veterinária, publicada e de livre acesso no JSAP. Este documento tem dupla função: por um lado, indicar as melhores opções farmacológicas em determinado grupo de medicamentos e, por outro, cumprir uma função de advocacia, sensibilizando as entidades reguladoras dos diferentes países para que reconheçam que aqueles medicamentos são de uso necessário em medicina veterinária.
Em muitos grupos farmacológicos, o acesso aos fármacos está condicionado — como os antineoplásicos, entre muitos outros. Nestes casos, a WSAVA tem desempenhado um papel fundamental na defesa do acesso equitativo, contribuindo para reduzir desigualdades entre países e melhorar os cuidados de saúde animal a nível global.
Que conselhos deixaria a jovens veterinários portugueses que ambicionam integrar estruturas internacionais como a WSAVA?
O primeiro conselho que deixaria é que começassem por se tornar sócios da APMVEAC – Associação Portuguesa de Médicos Veterinários especialistas em Animais de Companhia, cujo Presidente atual é o Dr. Emir Chaher e que é um forte entusiasta e impulsionador de todas as formas de colaboração nacionais e internacionais.
A APMVEAC é membro da WSAVA e, desta forma, os seus associados recebem todas as notícias relativas à WSAVA, além de beneficiarem das formações oferecidas tanto pela APMVEAC como pela própria WSAVA.
Na minha visão, participar ativamente nas atividades locais é muitas vezes o primeiro passo para ganhar visibilidade e ser convidado para colaborações internacionais.
Participar ativamente nas atividades locais é muitas vezes o primeiro passo para ganhar visibilidade e ser convidado para colaborações internacionais.
Como presidente da secção regional do Norte da APMVEAC, que trabalho têm vindo a desenvolver?
Exerço este cargo há já vários anos e uma das principais atividades tem a ver com as formações que a APMVEAC oferece no Norte do país, sendo responsável por ajudar a definir os temas, bem como a organizar toda a logística relativa aos palestrantes.
Por outro lado, cabe-me incentivar os colegas a estarem presentes e a cativar para sócios da APMVEAC aqueles que ainda não o são, algo que faço constantemente. Também temos procurado criar uma rede de apoio entre colegas da região, partilhando experiências e recursos para fortalecer a prática veterinária no Norte.
Quais são, na sua ótica, os maiores desafios que a medicina veterinária enfrenta atualmente a nível global?
Os desafios são muito diferentes e dependem da região do mundo. O único desafio global que afeta todos de igual forma é uma situação pandémica. Desde cedo, compreendi que a WSAVA teria de pensar globalmente, mas atuar localmente e de forma diferenciada.
Na Europa e na América do Norte, arrisco a dizer que um dos principais desafios é o burnout profissional, com consequências no abandono da profissão ou, muito lamentavelmente, no suicídio. Em outras partes do mundo, os desafios passam pelo difícil acesso a medicamentos e também pela realização de atos médico-veterinários por não profissionais, com todas as consequências nefastas que isso acarreta para a saúde dos animais.
Varia muito de região para região, mesmo dentro delas, assim como de país para país. Por isso, costumo dizer que há que pensar globalmente e atuar localmente. Outro desafio crescente é a necessidade de integrar inovação tecnológica (como telemedicina, inteligência artificial e diagnóstico molecular), sem perder de vista a acessibilidade e a ética.
Na Europa e na América do Norte, arrisco a dizer que um dos principais desafios é o burnout profissional.
O uso de antimicrobianos em animais de companhia continua a ser um tema sensível. Que medidas considera mais eficazes para promover boas práticas?
A informação é a principal medida e a melhor de todas. Quando temos profissionais informados e bem formados tecnicamente, o risco de mau uso de antibióticos é muito reduzido.
O acesso condicionado, sempre com receita médica, também é uma medida importante. Esclarecer os colegas é fundamental. Adicionalmente, é necessário promover campanhas de sensibilização junto dos tutores, para que compreendam a importância de cumprir corretamente as prescrições e não pressionarem os veterinários para o uso inadequado de antibióticos.
Em outras partes do mundo, os desafios passam pelo difícil acesso a medicamentos e também pela realização de atos médico-veterinários por não profissionais, com todas as consequências nefastas que isso acarreta para a saúde dos animais.
O conceito One Health tem ganhado relevância. Como avalia o papel dos veterinários nesta abordagem integrada da saúde humana, animal e ambiental?
Começo por dizer que, sem médicos veterinários, o conceito One Health simplesmente não existe. De facto, a saúde humana, animal e ambiental estão profundamente interligadas, veja-se a recente pandemia do COVID-19 e como teve origem.
Nós, médicos-veterinários, somos os profissionais que atuam precisamente na interface entre animais, humanos e ambiente, identificando e controlando riscos de zoonoses, assegurando a segurança alimentar e monitorizando doenças emergentes.
O nosso contributo é absolutamente central e indispensável para que a abordagem seja verdadeiramente integrada e eficaz, em estreita colaboração com médicos, biólogos, ecologistas e outros profissionais da saúde.
Acresce ainda o nosso papel na vigilância da resistência antimicrobiana e na monitorização de contaminantes ambientais, aspetos críticos para garantir a saúde e a sustentabilidade no futuro.

