Quantcast
Animais de Companhia

Leishmaniose: Os desafios de uma doença cada vez com maior incidência

Direitos reservados

O aumento do número de animais diagnosticados com leishmaniose e as diferentes manifestações clínicas da doença levantam crescentes desafios no acompanhamento clínico. Este foi o ponto de partida do debate que juntou o especialista europeu em Medicina Interna Xavi Roura aos médicos veterinários portugueses Tiago Lima e Ana Isabel Monteiro, que se dedicam às áreas da Dermatologia e da Oftalmologia respetivamente.

Uma sala do Jardim Botânico da Ajuda recebeu no passado dia 4 de junho o encontro “LETILEISH: O dia dos especialistas”, organizado pela LETI Pharma, no qual se procurou olhar para a leishmaniose canina com uma abordagem multidisciplinar, colhendo as perspetivas das especialidades de Dermatologia, Oftalmologia e Medicina Interna. Para esse efeito, o debate juntou os médicos veterinários Tiago Lima, que se dedica à área da Dermatologia, Ana Isabel Monteiro, que trabalha na especialidade de Oftalmologia, e o especialista europeu diplomado em Medicina Interna pelo European College of Veterinary Internal Medicine Xavi Roura, que olharam para a abordagem à leishmaniose de uma forma abrangente, desde o diagnóstico até ao tratamento da patologia.

 

Numa primeira instância, foi consensual entre os clínicos a observação empírica do aumento da incidência da infeção por Leishmania nos territórios onde trabalham. “Em Lisboa, como trabalho num sítio onde vemos muitos animais resgatados [por associações] noto, realmente, uma grande incidência de casos”, admitiu Tiago Lima, referindo-se ao trabalho que realiza no Hospital Veterinário Escolar da Universidade Lusófona. Todavia, sendo natural do Porto, cidade onde também presta serviço, o médico veterinário reconheceu que, também aqui, “está a aumentar” o número de casos observados, assim como em grande parte da região norte do País. Tiago Lima considera que um dos motivos para estes números a norte reside no facto de serem regiões onde “ainda não se aposta muito na prevenção” da infeção, sendo o mais habitual os tutores apostarem apenas na desparasitação externa com isoxazolinas e não usarem repelentes, nem apostarem na vacinação. Isto porque, acredita o médico veterinário, culturalmente, os tutores do norte de Portugal ainda consideram esta uma região livre da presença do flebótomo que transmite Leishmania. Não obstante, lembrou o orador, os dados têm demonstrado continuamente que a presença do agente transmissor já se estendeu a todo o território nacional. Além disso, acrescentou, é também cada vez mais frequente as pessoas levarem o cão da família em viagens pelo país, nomeadamente durante o período de férias, para regiões que sempre foram endémicas para a presença do flebótomo, por exemplo a área metropolitana de Lisboa e o Algarve, aumentando desta forma a probabilidade de os animais tomarem contacto com o agente transmissor do parasita.

“Apesar de a leishmaniose poder estar localizada [nos olhos], tratá-la não é um trabalho só da Oftalmologia, é um trabalho das várias especialidades” – Ana Isabel Monteiro, médica veterinária

Direitos reservados

 

Também Ana Isabel Monteiro admitiu: “A verdade é que ao longo dos anos se têm observado cada vez mais casos”. Com tutores cada vez mais atentos e preocupados com os cuidados de saúde a prestar aos animais de companhia, Ana Isabel Monteiro sugeriu até a possibilidade de, tal como já acontece com os testes de FIV e FELV para os felinos, a testagem rotineira da leishmaniose passe a ser incluída na prática clínica de rotina de forma que o diagnóstico seja realizado antes das primeiras manifestações da doença. Até porque, reforçou mais uma vez a médica veterinária, “é bastante óbvio e notório que está a existir um aumento [do número de casos]”.

Também o especialista europeu Xavi Roura considera que em Espanha o aumento do número de casos é visível e muito em consequência do trabalho dos médicos veterinários das zonas endémicas que acabam por estar muito atentos e testam os animais dessas regiões. Todavia, na opinião de Xavi Roura, é indiscutível “que tem aumentado [o número de diagnósticos] em zonas onde antes não havia Leishmania”, comprovando o alargamento das regiões endémicas para a presença do agente também no país vizinho e até por toda a Europa.

 

Tratamento: o desafio das recaídas

O tratamento atualmente recomendado para os animais sintomáticos passa pela opção entre antimoniato de meglumina ou miltefosina, durante 1 mês, juntamente com alopurinol, durante um ano, abordagens que são, de momento, consensuais entre a classe médico-veterinária. Xavi Roura lembrou que as taxas de sucesso de ambas as opções são significativas, ainda assim recordou que os antimoniais, por serem de via de administração injetável, encabeçam as recomendações das linhas de orientação internacionais para o tratamento destes cães. “Qualquer tratamento injetável é sempre mais eficaz do que um tratamento oral, já que o tratamento oral é influenciado por muitas mais variáveis do que o tratamento injetável”, sublinhou. O clínico espanhol deu como exemplo o tratamento dos cachorros, para os quais a  dose oral preconizada de miltefosina é a que os animais toleram e não a que seria a mais eficaz. Muito embora também tenha reconhecido que, para um tutor, pode ser difícil encarar a possibilidade de administrar uma terapêutica injetável num animal jovem por um período considerável e, por isso, prefira uma terapêutica oral. Daí que o especialista europeu tenha defendido que a abordagem terapêutica à leishmaniose deve ser “uma decisão tomada pelo clínico em frente a cada paciente e a cada tutor”, sempre numa perspetiva personalizada.

 

Contudo, Xavi Roura considera que a prática clínica apresenta hoje como principal desafio no tratamento da leishmaniose os animais que recaem, pois, ainda permanecem pouco claros os motivos “porque recaem ou se realmente recaem” deixando os médicos veterinários com dúvidas sobre qual o melhor caminho a seguir nestes casos.

Ana Isabel Monteiro deu a perspetiva da abordagem terapêutica ao animal com manifestações oftalmológicas da doença. Em primeiro lugar, reconheceu, por si só, que não costuma tratar os sinais clínicos da leishmaniose nos olhos do cão, “pois esse é um trabalho de equipa e, nesse sentido, trabalho muito com a Medicina Interna”. Além disso, refere, “não tenho nada localmente que vá eliminar as Leishmanias, porque o tratamento oftalmológico é um tratamento dos sintomas clínicos” na visão do animal. Nesse sentido, a abordagem da médica veterinária passa por controlar os sinais mais frequentes da doença – como a uveíte e o glaucoma – e, em casos de recidiva, ir repetindo os tratamentos “mediante os dados sistémicos apresentados pelo animal, tentando ajustar aquilo que fizer mais sentido na altura, obviamente, em conjunto com a equipa de Medicina Interna. Porque, apesar de a leishmaniose poder estar localizada [nos olhos], tratá-la não é um trabalho só da Oftalmologia, é um trabalho das várias especialidades”.

Se o animal testou positivamente, mas não apresenta sinais clínicos da doença, para Xavi Roura é claro que “tratar não faz sentido já que o tratamento é para a doença e não para a seropositividade”

Seropositivo assintomático: tratar ou não tratar?

Outra das questões abordadas no debate foi a postura do médico veterinário perante um cão com teste positivo para presença de Leishmania, mas sem nenhuma sintomatologia associada. Para Xavi Roura é fundamental ter presente algumas ponderações perante resultados positivos para a presença de infeção. Em primeiro lugar, deve ter-se em consideração o momento em que o animal faz o teste com resultados seropositivos, pois se for no momento de maior atividade do flebótomo, entre março e setembro, pode dar-se o caso de o cão, ao ter contacto com o agente transmissor do parasita, ativar uma resposta imunológica que produz um aumento dos níveis de anticorpos. Esse animal, se for testado fora desse período até pode ter um resultado negativo. Todavia, se o teste for realizado ao animal num período em que o flebótomo não está ativo e o resultado vier positivo, nesse caso está-se definitivamente perante um animal seropositivo para Leishmania.

E se o animal testou positivamente, mas não apresenta sinais clínicos da doença, para Xavi Roura é claro que “tratar não faz sentido já que o tratamento é para a doença e não para a seropositividade”. Eventualmente, defendeu, pode encarar-se a possibilidade de ser usada “imunoterapia para prevenir o desenvolvimento da doença, ou no caso de desenvolvimento da doença, que esta tenha uma apresentação com sinais clínicos mais leves”.

Além disso, acrescentou, a evidência publicada tem demonstrado um crescimento do número de casos de resistência ao alopurinol, daí que seja importante a utilização conscienciosa do fármaco, apenas e só em animais que necessitam mesmo de tratamento para as manifestações clínicas da doença.

Já Ana Isabel Monteiro perante um animal seropositivo assintomático “recomendaria uma consulta de Oftalmologia, numa abordagem um pouco mais pormenorizada, para fazermos alguns testes e termos a certeza de que o cão não tem sintomas”. Afinal, explicou a médica veterinária, “um olho seco pode não dar sintomas, mas pode estar lá. Daí que recomende uma consulta da Oftalmologia e controlos regulares [dos animais seropositivos] porque, mais tarde ou mais cedo, provavelmente, aquele animal vai desenvolver sintomatologia”.

Por seu lado, Tiago Lima explicou que, mesmo nos animais com leishmaniose cutânea tratados, depois de controladas essas manifestações, o animal mantém-se positivo, mas fica assintomático. Nesses casos, o médico veterinário suspende os tratamentos e recomenda a estimulação da imunidade celular: “Se não tem sinais clínicos na minha área e pela Medicina Interna também está operacional, acho que temos de equacionar não tratar e ir monitorizando”. Em suma, para qualquer animal com seropositividade confirmada, Tiago Lima aconselha a imunoterapia e a realização de exames de rotina ao animal – por exemplo, titulação do protozoário, hemograma e proteinograma – uma vez que “a qualquer momento podemos começar a ter o crescimento do agente, mas ainda sem sinais clínicos presentes”.

Ainda na abordagem aos cães seropositivos assintomáticos, o especialista espanhol sublinhou a importância da utilização de repelentes para evitar o contacto do flebótomo com o animal infetado e, desta forma, quebrar a cadeia de possível transmissão para outros animais.

“Se não tem sinais clínicos na minha área e pela Medicina Interna também está operacional, acho que temos de equacionar não tratar e ir monitorizando” – Tiago Lima, médico veterinário

Direitos reservados

Casos seropositivos para Leishmania: “Não faz sentido usar estes animais para procriação”

Durante o debate foi ainda discutido o papel de outras formas de transmissão do protozoário, nomeadamente a transmissão sexual, transplacentária ou por transfusão sanguínea.

Apesar de a evidência científica falar em riscos mínimos, nomeadamente de transmissão vertical entre fêmeas e crias, o certo é que, na opinião de Tiago Lima, “se há a mínima probabilidade, nem que seja 1%, de transmissão de Leishmania  então eu prefiro que não exista esse 1%”, defendendo, desta forma, a não utilização de animais seropositivos na procriação. Até porque, lembrou, durante o parto a fêmea vai ter alterações imunitárias que a deixam imunodeprimida, o que faz aumentar a probabilidade de reativação da doença na parturiente.

Ana Isabel Monteiro alinhou pelo mesmo princípio de forma perentória: “Não faz sentido usar esses animais para procriação”.

O melhor argumento para não utilizar animais seropositivos para Leishmania na procriação é, na perspetiva de Xavi Roura, a genética. Segundo o especialista europeu, “um dos fatores importantes para o desenvolvimento da leishmaniose é a genética. Ou seja, se um progenitor desenvolve a doença significa que geneticamente tem uma certa sensibilidade à leishmaniose”. Ao permitir que esse animal se reproduza, está-se potencialmente a transmitir essa sensibilidade genética à ninhada, o que aumenta a probabilidade de as crias poderem vir a desenvolver a doença no futuro.

Ainda assim, sublinhou o orador espanhol, “a percentagem de cães que se infetam sem ser por meio do vetor é muito baixa, seja por transfusão de sangue ou por transmissão vertical. A possibilidade existe, mas é muito baixa”.

Este site oferece conteúdo especializado. É profissional de saúde animal?