Filho de um médico veterinário apaixonado por cirurgia, Bruno Silva Santos cedo percebeu que esse era o caminho que gostaria de trilhar profissionalmente. O “muito” que aprendeu dessa área, com o pai, já enquanto veterinário, serviu de motivação para se candidatar a uma residência de cirurgia de pequenos animais, em Dublin, na Irlanda. Recentemente regressado a Portugal, já como a especialização pelo ECVS College of Small Animal Surgery concluída, integrou a equipa do Onevet Hospital Veterinário do Porto, onde exerce atualmente a sua atividade clínica. À VETERINÁRIA ATUAL, Bruno Silva Santos detalha os desafios enfrentados por quem opta por uma especialização em medicina veterinária e tece planos para um futuro em que a referência seja cada vez mais uma realidade a nível nacional.
No seu entender, porque é que a especialização ainda é uma opção pouco explorada pelos veterinários portugueses?
Os fatores são vários, mas desde logo por não existirem residências em Portugal e a especialização implicar ir sempre para fora durante alguns anos. Diria que, no panorama português, outra das maiores limitações à especialização é a ainda latente falta de preparação do tutor para reconhecer as opções de tratamento mais avançadas. A nível nacional, o mercado de referência ainda é muito reduzido e dominado por pessoas que avançam para tratamentos menos comuns e um pouco mais diferenciados para o seu animal, que não são, de todo, a maioria.
Ora, para se abrir uma residência é preciso um número mínimo de casos por ano, no seio de uma instituição certificada e com pelo menos um veterinário especializado. Além disso, é necessário todo um conjunto de credenciais e padrões que, em Portugal, ainda estão longe de serem atingidos. Importa salientar que, no País, há muitos colegas que já fazem alguns procedimentos considerados de referência ou de elevada complexidade. Contudo, estes não consistem na totalidade do seu dia a dia de trabalho e a sua prática ainda combina uma grande percentagem da chamada medicina geral ou medicina preventiva.
Há, portanto, uma maior facilidade em termos de casuística exclusivamente complexa e de referência fora de Portugal.
Quando e onde decorreu a sua residência em Small Animal Surgery?
Após um curto espaço de tempo – cerca de sete a oito meses – como veterinário “clínico geral”, saí de Portugal, por volta de 2017. Já tinha a minha cédula e trabalhava muito “atrás de portas” com o meu pai, que também é veterinário e que sempre me motivou para prosseguir com um percurso de especialização lá fora.
“Há uma falta de conhecimento do público em geral do que é um veterinário especialista e no que consiste todo o percurso de especialização. Mais do que reduzir custos, acho que o caminho passa por um trabalho de informação junto dos tutores, mas também dos veterinários, para o reconhecimento da possibilidade e respetivo objetivo da referência.”
O seu pai também é especialista?
Não, o meu pai é “só” veterinário, mas também é um apaixonado pela cirurgia e eu aprendi muito com ele. Aprendi as bases, que depois me fizeram avançar para este meu percurso. O meu pai sempre me incentivou a ir trabalhar para os melhores sítios em Portugal. Como tal, a especialização partiu de uma motivação intrínseca, mas também de uma motivação extrínseca, ou seja, do facto de o meu pai estar sempre a puxar pelo meu melhor.
E isso levou-o até onde?
Então, após esse curto período como veterinário em Portugal, parti para o Reino Unido, mais concretamente para a Escócia, onde fiz clínica geral durante seis meses, por forma a melhorar os meus conhecimentos na língua e no mercado. Só depois então fui para o sul de Londres onde comecei o meu percurso de internatos, com um internato de rotação numa instituição chamada North Downs Specialist Referrals. Concluído esse internato, voltei a ter um período de clínica geral novamente, enquanto esperava pelo próximo passo, que seria o internato apenas de cirurgia.
Assim, desde sensivelmente 2020 que me dedico exclusivamente à cirurgia, tendo começado pelo internato, a que se seguiu a residência, que me levou até Dublin, na Irlanda, onde estive quatro anos na universidade a fazer a especialização. Cerca de 90% dos programas de residência são de três anos, mas, devido à parte académica, na Universidade de Dublin, acresce mais um ano.
E depois da residência?
Concluída a residência, a vontade de regressar a Portugal era enorme. Por ter uma família, os meus dois filhos, já fazia sentido voltar e investir o meu tempo num projeto português.
Quais são, com base na sua experiência, os pontos comuns e os aspetos mais diferenciadores em termos de prática clínica e também de casuística entre Portugal e, neste caso, Inglaterra?
Eu acho que – e isto pode parecer ligeiramente controverso –, os casos em Portugal acabam por ser mais avançados e mais complexos do que alguns casos lá fora. É verdade que só estou a fazer clínica há cerca de duas semanas em Portugal, mas mesmo na minha casuística cirúrgica, noto que há uma facilidade maior em ter cirurgias mais complexas do que lá fora. Isto porque no estrangeiro, neste caso em Inglaterra, o mercado de referência já está bastante amadurecido, ou seja, o veterinário generalista já consegue entender os seus limites e aceita que a partir dali há algo melhor a oferecer ao animal. Em Portugal acabamos a ver casos muito mais complexos por não haver essa referência tão fácil ou tão normalizada. É por isso que os casos que chegam até nós, que aceitam estimativas maiores, que aceitam níveis de complexidade e às vezes de prognóstico piores, são mais raros e mais complexos também. Cá, a referência ainda é rara, ou o número de pessoas que aceita a referência ainda é raro.
“Cá, a referência ainda é rara, ou o número de pessoas que aceita a referência ainda é raro.”
No seu entender, porque é que isso acontece?
Acredito que, em parte, o custo/questão financeira possa ser uma das principais barreiras, porque todo o nível de complexidade de referência exige, claro, um investimento maior, quer da instituição, quer do próprio veterinário, que passou anos a estudar para chegar àquele grau de especialização. Há uma falta de conhecimento do público em geral do que é um veterinário especialista e no que consiste todo o percurso de especialização. Mais do que reduzir custos, acho que o caminho passa por um trabalho de informação junto dos tutores, mas também dos veterinários, para o reconhecimento da possibilidade e respetivo objetivo da referência.
Posso dar-lhe um exemplo muito prático: ainda há inúmeros colegas que não referenciam determinados casos por acharem que a amputação é a única solução para o animal. Mas, se os tutores estiverem preparados para um investimento grande em termos financeiros, é certo, mas também de tempo, aceitando uma recuperação que é longa, o animal pode ter uma boa taxa de sucesso com referenciação para cirurgia. Muitas vezes, a “desistência” do caso por parte do médico veterinário, numa fase bastante precoce, vem com a “desculpa” de que “os donos não vão aceitar” ou “não vão poder pagar.
A meu ver, estamos a retirar ao animal a possibilidade de recuperação, ao assumirmos que as únicas hipóteses são amputação ou eutanásia. A evolução da referência depende, então, desta difusão de conhecimento sobre estas opções, com informação concreta sobre prognóstico, percentagens/taxas de sucesso e de insucesso, com base em evidência, que melhor do que ninguém pode ser transmitida pelo veterinário especialista.
Além da “veia familiar” para a área da cirurgia de pequenos animais, que outros motivos o levaram a escolher este campo de especialização em detrimento de outros?
Acho que é mesmo por eu gostar de fazer coisas com as mãos, à falta de melhor termo. No fundo, trata-se de uma disciplina mecânica, em que ao fim ao cabo – e sem querer ter a síndrome de Deus – somos nós que intervimos e acabamos por fazer a diferença, colhendo os frutos e/ou os erros.
Por melhor que o cirurgião possa operar, vai haver sempre um x número de casos que não vão correr tão bem, independentemente das skills do cirurgião. E eu gosto um bocadinho dessa incerteza, porque me faz tentar perceber realmente o que preciso de fazer, enquanto cirurgião, para que tudo corra pelo melhor. Aprecio bastante este lado extremamente prático e de toque/contacto muito direto com o animal.
Atualmente encontra-se totalmente dedicado à cirurgia? Como é o seu dia a dia de trabalho?
Neste momento, só faço cirurgia de pequenos animais. Apesar de ter tido treino especializado em várias áreas da cirurgia (tecidos moles, ortopedia e neurocirurgia), como atualmente me encontro a trabalhar de forma muito próxima com uma colega neurologista, tenho-me focado mais nos casos de ortopedia e de tecidos moles.
O meu dia a dia passa muito pela rotina clínica e hospitalar. Atualmente, e porque só estou há duas semanas no Onevet Hospital Veterinário do Porto, ainda não tenho uma agenda muito cheia. Foco-me a 100% na cirurgia e tenho ajudado os colegas com casos cirúrgicos.
“Gostava de reforçar a ideia de que a medicina veterinária que se faz em Portugal é bastante boa para o panorama cultural que nós temos e até para os tempos em que vivemos.”
Há algum caso mais marcante e/ou insólito que recorde de forma especial ao longo deste seu percurso na veterinária?
Sim, tive alguns casos interessantes em que, habitualmente, é uma pata que se dá por perdida. Após um acidente traumático em que há perda de tecidos moles e que com muita preocupação dos tutores e com muita persistência e resiliência, mesmo do próprio animal, que não sofreu nenhuma consequência grave, nós conseguimos com cirurgia recuperar a mobilidade desse animal sem perder a pata.
Os casos mais marcantes são aqueles que parecem perdidos à partida, mas em que conseguimos atingir um outcome que, não sendo perfeito, é funcional. Isso é o que me dá mais gosto e mais me motiva nesses casos complicados.
Estamos a falar essencialmente de cães, gatos?
Cães e gatos no geral, sim. Em termos de espécie, essencialmente é isso.
O que é que sente que a especialização lhe acrescentou, na rotina da prática clínica?
A especialização trouxe-me conhecimento acrescido, experiência acumulada e maior capacidade/segurança na prática. Ao fim ao cabo, retirou-me um pouco algum do stress que envolve os casos mais complicados, porque já vi acontecer e/ou já vi o que correu mal e, como tal, tenho mais experiência que alguns colegas generalistas. Isto em casos mais avançados, em que procuro não desistir e continuar a tratar. Sempre, atenção, com a questão ética salvaguardada.
Quer desenvolver um bocadinho esse aspeto da ética?
Sim, prende-se com saber quando parar e perceber quando atingimos o limite, tanto físico como emocional daquela família, porque quando tratamos um animal, não é apenas o animal, mas uma envolvente familiar.
Habitualmente, a questão ética prende-se com criarmos barreiras para não levarmos as situações ao extremo, isto é, até um ponto em que os tutores não estão preparados nem emocional, nem financeiramente. Há que manter sempre “os pés bem assentes” na ética para não corrermos o risco de puxarmos até um limite que não seja razoável.
Acredita que, em Portugal, o desenvolvimento da medicina veterinária passa pela via da especialização?
Creio que sim, ainda que se calhar em Portugal não sejam necessários tantos especialistas quanto no Reino Unido. Isto é, o mercado de referência cá não terá que ser tão vasto, mas gosto de acreditar que há um certo caminho de especialização que deve ser percorrido a nível nacional. É desejável termos em Portugal alguns especialistas em cada área que possam dar algum suporte em bom português e que conheçam a cultura portuguesa.
Mas, a existência de residências de especialização médico-veterinária em Portugal ainda é uma realidade longínqua?
Eu acho que há condições para abrir, a título de exemplo temos no Hospital a primeira residência em Dermatologia, mas ainda há um longo caminho percorrer para essa realidade ser generalizada. Acho que tem de haver um trabalho de base, de mostrar às pessoas e aos colegas o que é ser diplomado e depois, se realmente houver interesse, avançar.
Falta, então, formalizar?
Falta formalizar, exatamente, e amadurecer o programa de residência, para não termos um programa de residência subótimo. No entanto, considero que ainda é um plano a médio e não a curto prazo.
Neste contexto da especialização, há alguma mensagem que gostasse de transmitir aos colegas veterinários?
Gostava de reforçar a ideia de que a medicina veterinária que se faz em Portugal é bastante boa para o panorama cultural que nós temos e até para os tempos em que vivemos. No entanto, lembrar também que haverá sempre cinco a 10% de tutores que procurarão um bocadinho mais para o seu animal. E que merecem ter uma resposta. E essa resposta passa pela referência. E essa referência faz-se em equipa. Nós, especialistas, não estamos num pedestal inatingível, nem queremos “roubar” os casos aos colegas generalistas. Queremos, isso sim, trabalhar em rede, em conjunto, para podermos chegar ao melhor outcome para o animal.
*Artigo publicado na edição 193, de maio, da VETERINÁRIA ATUAL