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Voluntariado

“O trabalho é árduo (e pouco glamoroso), mas os resultados falam por si”

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A experiência de voluntariado de Patrícia Branco no Sri-Lanka

No último verão, Patrícia Branco embarcou numa aventura única de voluntariado numa campanha de vacinação antirrábica de cães no Sri-Lanka. Graças a uma campanha de crowdfunding conseguiu financiar parte das despesas e não podia estar mais satisfeita com os resultados. Partilhamos o seu testemunho.

Apesar de Portugal ser um país oficialmente indemne de raiva desde 1961 – com o último caso registado num animal autóctone em 1956 – casos recentes importados de Raiva animal e humana, reportados em países indemnes da União Europeia (EU) (como um caso de Raiva humana fatal registado em Portugal em 2011) são suficientes para nos recordarem da importância da prevenção desta zoonose. A Raiva ainda é um problema global existente em todos os continentes exceto na Antártica, e com focos endémicos em África e na Ásia. Além de um número não quantificado de animais, globalmente mata, com a morbilidade associada a uma encefalite, de cerca de 190 pessoas por dia. Destas, a quase totalidade é habitante de zonas rurais e empobrecidas das áreas geográficas endémicas e metade são crianças.

 

Mais de 95% dos casos são transmitidos por mordedura de cães domésticos infetados, pela natureza da sua relação próxima com o Homem. Como consequência, muitas vezes os cães são temidos, negligenciados e mal tratados pelas populações locais. Os esforços das autoridades locais para travar a sua transmissão passam pela imunização da população humana pré e pós-exposição à mordedura de um animal, e/ou pelo controlo da população canina, que em alguns casos passa ainda por campanhas de abate massivo de cães errantes, através de envenenamento, electrocução, afogamento, fome ou violência física. Estima-se que anualmente 20 milhões de cães (55000 por dia) sejam exterminados por este motivo, o que resulta num impacto quase nulo na prevalência da doença.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) garante que a vacinação em massa dos cães em áreas endémicas é a medida mais eficaz para controlar a raiva, já que imunizar 70% da população é suficiente para a sua erradicação, e os países que adotaram estes programas comprovam-no. Os cães vacinados não só se tornam imunes à raiva como, pelo efeito de imunidade comunitária, conferem proteção à população humana com quem coabitam, melhorando assim a relação que as pessoas estabelecem com os cães.

 

Mission Rabies (MR)

Inspirada nestes dados, a MR dedica-se, desde Setembro de 2013, a organizar campanhas anuais de vacinação em massa em focos endémicos de raiva, com o objectivo de erradicar a doença até 2030. Os vários projetos MR (Índia, Sri-Lanka (SL), Malawi, etc.) são implementados de forma a garantir a uniformização e o cumprimento dos protocolos vacinais, a qualidade das vacinas administradas, o respeito pelo bem-estar animal, a educação das populações, o registo e a recolha de dados epidemiológicos. Como parte da estratégia de aceitação, execução, visibilidade e financiamento das campanhas procuram envolver as comunidades locais e internacionais, que contribuem com voluntários, patrocínios e parcerias de instituições. O objectivo final é único: para cada área geográfica escolhida imunizar anualmente uma percentagem igual ou superior a 70% da população canina e consequentemente eliminar a raiva daquela área.

 

O meu envolvimento

No último verão, conciliando uma invulgar disponibilidade e muita vontade de participar num projecto semelhante, embarquei na aventura de ser voluntária numa campanha de vacinação anti-rábica de cães organizada pela MR, em Negombo, cidade do Sri-Lanka (SL), entre 10 a 24 de Setembro. A decisão por esta causa em concreto foi bastante fácil, uma vez que reúne dois pontos que considero essenciais: a credibilidade das organizações envolvidas, não só a MR, mas também das suas reputadas parceiras internacionais (DogsTrust, MSD Animal Health, WVS, WSAVA, BSAVA, Davies Veterinary Specialists, Fitzpatrick Referrals, entre outros) e a oportunidade de, num contexto de voluntariado internacional, aliar a minha contribuição como médica veterinária de animais de companhia a um contributo para a saúde pública, saúde e bem-estar animal.

 

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Este foi um compromisso bastante exigente temporal e financeiramente, para o qual dispus de dias de férias e recorri a uma campanha de crowdfunding através da qual familiares, amigos e colegas me ajudaram a financiar parte das despesas associadas. O meu projecto, à semelhança da maior parte, oferecia aos voluntários o alojamento e alimentação durante os dias de voluntariado, sendo nosso encargo todos os requisitos de participação no projecto e entrada no país, a viagem de avião até ao destino, alojamento e alimentação durante os dois dias de descanso do programa e gastos pessoais. A própria preparação da viagem para um país asiático, particularmente num contexto de voluntariado internacional de elevado risco de acidente e de doença, exige bastante burocracia (documentação profissional, seguro de viagem e de acidentes pessoais, visto de entrada no país, etc.) e um plano profiláctico completo, que no meu caso se traduziu num protocolo vacinal muito intenso, incluindo o protocolo antirrábico pré-exposição.

A realidade no SL

A raiva é endémica no SL, com casos confirmados em cães (85,2%), gatos (7,9%) e humanos (3,8%), entre outros. Desde 1999, o número de casos em cães manteve-se relativamente inalterado, mas o número de casos em humanos diminuiu gradualmente devido à profilaxia pós-exposição (PEP) em vítimas de mordedura de animais. A PEP é gratuita e acessível nos hospitais públicos, o que custa ao Ministério da Saúde 177US dollars por paciente exposto. Não existe um plano nacional de vacinação de cães, mas algumas autoridades municipais, como é o caso da de Negombo – uma das cidades com maior número de casos de raiva canina registados e onde decorreu o projeto – têm levado a cabo esforços e parcerias com esse objectivo.

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A realidade da detenção de animais de companhia também é muito diferente da europeia. Existem muitos cães errantes nas zonas rurais e no centro das cidades, alguns são selvagens, mas muitos deles são cães comunitários ou têm um tutor que lhes presta alguns cuidados básicos, apesar de não estarem restritos a nenhum espaço físico. O mesmo se aplica à população de gatos, que é muito mais reduzida. Os casos de sarna e esgana são frequentes entre os cães errantes e não é infrequente ver animais moribundos ignorados na via pública.

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Este quadro contrasta com a detenção de cães de raça pura, utilizados para reprodução, e que são mantidos confinados em gaiolas exíguas ou acorrentados, pouco sociabilizados, condicionados com recurso à punição física e que apresentam muitas vezes sinais de distúrbios de comportamento e agressividade. Ou seja, os próprios conceitos de cuidados de saúde, de responsabilidade de um tutor e de bem-estar animal ficam muito aquém dos padrões ideais.

No terreno

Este foi o segundo ano que a MR, em conjunto com a instituição local de apoio aos animais – Dogstar Foundation (DF) – levou a cabo a campanha de vacinação anti-rábica de cães em Negombo. A DF, financiada por patrocínios e donativos, tem instalações e uma equipa local dedicada exclusivamente ao controlo cirúrgico da população canina (errante e tutorada) e resgate e de animais em situações de risco, durante todo o ano. Foi a esta equipa local de veterinários e auxiliares que nos juntámos seis voluntários internacionais provenientes do Canadá, Estados Unidos da América, Reino Unido e Portugal, três dos quais médicos veterinários e outros três com outras profissões relacionadas com saúde ou bem-estar animal, perfazendo um total de cerca de duas dezenas de pessoas.

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Organizámo-nos em três equipas multidisciplinares, cada uma com condutores locais, vacinadores (médicos ou enfermeiros veterinários), colectores de dados e “dog catchers” (literalmente apanhadores de cães). Estes últimos, essenciais para o programa, têm a habilidade de capturar os animais em fuga, errantes ou agressivos, com uma rede do tipo camaroeiro, o que permite contê-los de forma segura para a vacinação, causando-lhes o menor dano físico ou stresse possível. Nestas duas semanas, o nosso dia começou antes do nascer do sol com pequeno-almoço reforçado às 05h00 para começar a trabalhar às 06h00, tentando aproveitar as horas mais frescas do dia, que não deixavam de ser muito hostis para os voluntários internacionais. Estiveram sempre temperaturas entre 28º C e 32º C (mesmo de noite) com muita humidade relativa, e alguns dias de sol intenso. Durante as 8 horas seguintes, cada equipa percorria a área geográfica que lhe era atribuída diariamente, identificando, capturando e vacinando o maior número de cães possível.

O ato de vacinação nestas circunstâncias é necessariamente muito mais rápido do que na nossa rotina de clínicos de animais de companhia. Não são efectuados exames físicos extensos e são vacinados todos os animais (incluindo grávidas, cachorros com idade inferior a 3 meses ou moderadamente doentes) à excepção dos animais cujos donos não o permitam ou que estejam moribundos. Estes animais, que necessitavam de intervenção veterinária urgente, eram sinalizados e depois acompanhados pela instituição local. No entanto, de forma geral, a população de cães errantes tem uma boa condição corporal e estado geral de saúde.

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A afeção mais prevalente é, sem dúvida a dermatite por infestação de pulgas ou por sarna. Nos casos mais graves, por escassez de recursos, aplicávamos também spot-ons de imidacloprid e moxidectina no momento da vacina, fruto de um donativo particular. Menos frequentemente verificam-se claudicações, lacerações traumáticas e alguns casos com sintomatologia compatível com esgana, cujos sintomas neurológicos podem mimetizar a raiva. Por este motivo, outro donativo tornou também possível que nas zonas com mais cães errantes administrássemos também uma vacina pentavalente a todos os cães.

Apesar de o programa não incluir a imunização de gatos, por serem reservatórios muito menos frequentes de raiva, por motivos estratégicos, de educação e cooperação com a população local, estes também eram vacinados a pedido dos donos. Simultaneamente à vacinação, um voluntário responsável pela recolha de dados registava todos os animais identificados através de uma aplicação para smartphone da MR: posição de GPS, se são ou não tutorados, onde são mantidos, condição física geral, se previamente vacinados e castrados e se não, porque não.

O tratamento destes dados após o projeto é muito útil para a DF já que permite direccionar esforços e acções para o controlo da população canina e bem-estar animal, nomeadamente através da educação da população.

Após a administração da vacina, os cães são identificados com uma pinta de tinta temporária bem visível na testa, essencial para não revacinarmos animais que já tenham sido vacinados noutras áreas e também para os contabilizarmos. No dia seguinte a uma área ter sido coberta pelas equipas de vacinação, uma outra equipa percorria a mesma área contabilizando os animais visíveis que estavam ou não marcados como vacinados. Caso não se verificasse uma taxa de cobertura igual ou superior a 70%, as equipas de vacinação voltavam àquela área de forma a garantir uma nova sondagem positiva no dia seguinte. Este procedimento permitiu criar a evidência científica que a cobertura vacinal do programa é a aconselhada pela OMS.

Uma parte muito importante da campanha de vacinação é a educação da população, para a qual os voluntários locais são muito importantes, transmitindo a mensagem de forma credível e adequada. Revemos os cartões de vacinação de milhares de cães com dono, muitos dos quais tinham uma vacinação anti-rábica inadequada e precisaram de revacinação. Falámos aos tutores sobre a importância da vacinação anti-rábica, do controlo da população (através de cirurgia gratuita, efectuada pela DF), e de bem-estar animal, e encontrámos neste processo bastante resistência por motivos religiosos e culturais. Alguns exemplos desta realidade são o facto de, inicialmente, parte da população acreditar que a campanha tinha o objectivo não de vacinação, mas de exterminação dos cães; o facto de algumas pessoas ocultarem os seus cães para evitarem despesas ou serem chamadas à responsabilidade de serem tutores de um animal de companhia (apesar de as consequências serem inexistentes); ou o facto de a maior parte dos inquiridos que recusa o controlo reprodutivo cirúrgico invocar o pecado como fundamento.

A maior parte do tempo percorremos as ruas a pé, com pequenos percursos em tuk-tuk e carrinhas–ambulância, anunciando a campanha em altifalantes pelas ruas, batendo porta-a-porta à procura de cães e carregando todo o equipamento necessário (lancheira com vacinas, balde de tinta para marcações, leitores de microchip, redes, material educacional., etc.). Com alguma frequência, a dificuldade e a acção aumentavam porque tínhamos que apanhar cães errantes, saltar muros, persegui-los na praia ou no mercado de peixe. Vários foram os picos de adrenalina e oportunidades para provarmos o nosso trabalho de equipa. Em apenas alguns segundos consegue-se capturar um cão em fuga numa rede, verificar se possui microchip, vaciná-lo, marcá-lo com tinta e libertá-lo, enquanto uma pessoa está a registar a entrada na aplicação e mais à frente já está outro cão a ser apanhado. Tudo sempre com total segurança para quem lida directamente com os animais, já que se tratam de animais potencialmente raivosos.

Com tudo isto precisávamos de algumas pausas ao longo do dia para hidratar, comer, descansar, e para os voluntários internacionais se cobrirem de repelente e protector solar, para grande regozijo do resto da equipa. Apenas alguns dos elementos locais falavam inglês e, como culturalmente os cingaleses são reservados, inicialmente as relações eram muito cordiais. Com o convívio diário neste formato intenso, as relações tornaram-se muito descontraídas e alegres, e tivemos o privilégio de com eles conhecer a maravilhosa gastronomia, cultura e música local, e até de aprender cingalês suficiente para, a meio da campanha, já fazermos perguntas básicas sem intérprete (“Está alguém em casa?”, “Tem cães?”).

O trabalho é árduo (e muito pouco glamoroso), mas os resultados falam por si. Em duas semanas vacinámos 9239 animais (7821 cães e mais de 1400 gatos) contra a raiva, excedendo o objectivo de 70% de cobertura vacinal. Sabemos que estamos a diminuir significativamente a prevalência do vírus da raiva em Negombo porque o número registado de casos de raiva canina já diminuiu entre o primeiro e segundo ano de vacinação. E vai continuar a diminuir, assim como o risco para a população humana e o número de mortes. A luta está, claro, muito longe de terminar, mas projectos como este fazem parecer fácil erradicar a raiva do Mundo, cidade a cidade, país a país.

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Fontes:

Organização Mundial de Saúde (OMS)

Organização Mundial de Saúde Animal (OIE)

Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC) –

Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) –

Mission Rabies (MR)

Dogstar Foundation (DF)

Karunanayake, D., Matsumoto, T., Wimalaratne, O., Nanayakkara, S., Perera, D., Nishizono, A., & Ahmed, K. (2014). Twelve Years of Rabies Surveillance in Sri Lanka, 1999–2010. PLoS Neglected Tropical Diseases, 8(10), e3205. – https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4191952/

 

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