As questões de bem-estar animal têm ganho protagonismo nas últimas décadas, mas a verdade é que preocupam filósofos, políticos, religiosos e, claro, profissionais da medicina veterinária há milénios. George Stilwell foi orador das Conferências Vida Rural | Bem-estar animal e fez um apanhado do que já se percorreu neste caminho de melhorar o bem-estar dos animais.
A conferência “Como garantir uma transição ‘suave’ para as novas obrigações?” contou com a palestra do médico veterinário George Stilwell, que fez um enquadramento histórico do que tem sido o conceito de bem-estar animal.
O professor da Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa e diplomado pelo European College of Bovine Health Management contou como já existem registos da preocupação pelo bem-estar animal 500 anos antes de Cristo, com filósofos gregos, alguns deles vegetarianos, a demonstrarem algumas preocupações e alertas para os abusos que existiam naquela altura.
Mas os tempos foram de avanços e recuos ao longo dos séculos. Na idade das Trevas esta não foi uma temática abordada, mas com o Iluminismo as discussões filosóficas voltaram a ganhar força. Se a celebre frase “penso, logo existo” de Descartes remetia os animais para uma condição acessória na sociedade, com Voltaire cresceu uma nova ética que olhava para os animais mais como semelhantes aos humanos.
E foi com Jeremy Bentham, considerado o pai do início do pensamento do bem-estar animal, que se alavancaram as preocupações sobre a forma como os animais são tratados. “Ele disse que não importa se os animais conseguem raciocinar ou falar, mas sim se conseguem sofrer. Nesta altura a visão sobre bem-estar estava muito relacionada com a dor, com a crueldade [imposta aos animais]”, explicou o médico veterinário.
Começaram a surgir as primeiras regras de bem-estar animal na sociedade ocidental, nomeadamente no que diz respeito ao abate e transporte – sendo que a primeira legislação neste enquadramento tem cerca de 200 anos.
Este movimento começou na Europa, especialmente no Reino Unido, atravessou o Atlântico com Henry Bergh a ser a primeira voz nos Estados unidos da América a fazer-se ouvir contra a forma como eram eliminados os cães vadios na cidade de Nova Iorque.
Curiosamente, notou George Stilwell, “a sociedade na altura revoltou-se um pouco [contra quem defendia o bem-estar dos animais] e é interessante verificar como agora o movimento é diferente”.
Como o movimento ganhou força
Foi com o fim da II Guerra Mundial que as questões de bem-estar animal ganharam maior força. Verificou-se nessa altura uma alteração da forma como a produção pecuária e agrícola era viabilizada. Se anteriormente eram as pequenas explorações, na maioria dos casos quintas familiares, que garantiam o abastecimento dos mercados, com a migração para as cidades, a produção animal “intensificou-se de uma forma extraordinária e começou a produzir-se de uma maneira muito diferente da que se produzia até aquele momento”.
Em 1964, o livro Animal Machines, de Ruth Harrison, levantou o véu sobre a face negra da intensificação da pecuária em termos de bem-estar animal e na década seguinte o filósofo Peter Singer fala pela primeira vez do conceito de especismo.
Até Walt Disney contribuiu para o movimento, lembrou o especialista, pois “os desenhos animados com animais a terem sentimentos e a relevarem dor e emoções não foram indiferentes na visão que a sociedade construiu” sobre a forma como os animais devem ser tratados.
“A certificação deve ser imparcial, credível e transparente” de forma a evitar que aconteça o animal welfare-washing – George Stilwell
Entretanto, na Europa, sempre na dianteira destas matérias, o primeiro enquadramento legislativo sobre o bem-estar animal surgiu nos Tratado de Amesterdão, em 1997, que reconhece os animais enquanto seres sencientes, e o Tratado de Lisboa, dez anos depois, refere que o reconhecimento do “bem-estar dos animais enquanto seres sencientes tem de ser uma exigência dos estados-membros”, referiu o orador, ao falar do caminho até ao atual Green Deal – From Farm to Fork
E hoje, o que é isto do bem-estar animal?
“O bem-estar animal não é só encarado como era no século XIX, a ausência de crueldade e de dor, bem-estar animal é também mental, é também a possibilidade de exibir comportamentos e hoje fala-se também na possibilidade de exibir sinais positivos, não apenas negativos”, sublinhou Gorge Stilwell. Isto é, passou-se das clássicas ausência de dor, ausência de doença, ausência de fome e “neste momento pensa-se muito que temos de proporcionar condições para que haja a presença de indicadores positivos de bem-estar animal e não apenas a ausência de indicadores negativos” e que os “animais tenham uma vida que vale a pena ser vivida e não seja uma vida de constante sofrimento e penar até morrer”.
E quando se fala cada vez mais na certificação em bem-estar animal, George Stilwell defende que “os grandes objetivos da certificação, que obviamente tem benefícios para o animal, tem também benefícios para o produtor pois sabemos que o bem-estar animal se equipara a melhores produções, a melhores produtos, a melhor satisfação da própria produção porque os produtores que trabalham em explorações em que há boas condições são pessoas com melhor satisfação no emprego”.
No entanto, o especialista deixou uma advertência aos presentes: “Não podemos olhar para o bem-estar animal como qualquer coisa para vender mais. Se a avaliação do bem-estar animal é apenas feita com esse propósito, um dia aparece alguém que fotografa ou filma alguma situação e então todo o processo de certificação de bem-estar animal vai abaixo, como um baralho de cartas”.
Nessa medida, George Stilwell frisou que “a certificação deve ser imparcial, credível e transparente” de forma a evitar que aconteça o animal welfare-washing, à semelhança do greenwashing, em que os as empresas empenham-se mais no marketing sobre as políticas de bem-estar do que realmente em aumentar a qualidade de vida dos animais.