Quando começou a trabalhar na Clínica Veterinária João XXI?
Em 2015 a clínica comemora 70 anos de existência e estou neste projeto há 40 anos. Foi fundada por três médicos veterinários: Marques de Almeida, Vieira Lisboa e Pires Carrondo, que na altura se juntaram e formaram esta clínica quando Lisboa só tinha três clinicas veterinárias. Havia a João XXI nas Avenidas Novas, uma próxima da Igreja dos Anjos e outra junto à Assembleia da República. Até que fizeram uma cisão entre eles e primeiro saiu Pires Carrondo para abrir uma clínica em Campo de Ourique, depois Marques de Almeida saiu para a Marquês de Tomar e ficou Vieira Lisboa, que um dia quis ir a um congresso na Rússia, em 1975, e convidou-me para substituí-lo na sua ausência. Fui seu assistente durante cinco anos, até que resolveu que deveria trespassar a João XXI e foi assim que cheguei aqui. Adquiri a clínica em 1982 e sempre fui o seu diretor clínico. Dei-lhe a relevância e o prestígio que tem tido ao longo de 40 anos e que mantem.
Quando chegou à clínica qual a situação que encontrou?
A concorrência era muito pouca. Há 40 anos, Lisboa e arredores tinham oito clínicas veterinárias, neste momento são mais de 400. Os tempos eram diferentes. Trabalhávamos intensamente, com um movimento grande. Cheguei a trabalhar com o Dr. Vieira Lisboa em que ele assegurava o dia até às 17h00 e eu, depois de sair do Hospital Militar Veterinário, assegurava até às 23h00, todos os dias, sábados inclusive. Funcionava bem. Claro que nessa altura havia uma fidelização muito grande dos clientes, talvez por serem poucas as clinicas veterinárias em Lisboa. Ainda hoje conservo clientes dessa altura.
Essa fidelização continua a verificar-se na vossa clinica?
Nesta sim, mas a concorrência é cada vez maior. Os tempos em que a fidelização dos clientes era de quase de pais para filhos perdeu-se muito.
Como fomentam essa fidelização dos clientes?
Hoje em dia as pessoas procuram aquilo que é mais eficaz e o que lhes inspira mais confiança. Segundo os estudos de mercado, e confirmo isso, a primeira coisa que as pessoas procuram é a confiança nos serviços prestados, a segunda é a facilidade de acesso e parqueamento e a terceira os preços. Mas entendo que a Medicina Veterinária, como qualquer profissão liberal, é um misto de competência e agradabilidade. Temos de ter no nosso dia-a-dia 70 a 80% de competência e 20 a 30% de agradabilidade. Não se pode ser simpático sem se ser competente, mas também não se pode ser competente com antipatia. A medicina veterinária é muito mais complexa que a Medicina Humana, tendo a mesma dificuldade científica ou técnica. Obriga a que um médico veterinário competente domine muitas áreas de especialidade. Por isso trabalhar com uma equipa de oito a dez médicos veterinários, como é o nosso caso, cada um tem a sua área de acordo com as suas valências e o seu gosto pessoal, mas que se completam e interagem. Porque a especialização em Portugal, que vai ser uma realidade a curto prazo, tem de se basear na realidade do País: na última Assembleia Geral da OMV houve um colega que trabalha em Inglaterra que disse: cuidado com as especialidades em Portugal porque em Inglaterra há cerca de 40 especialistas em Medicina Veterinária de todas as especialidades. Como é que a OMV quer ter dentro de dois anos 150 especialistas? Um especialista não é o individuo que tem o título, mas tem de ter uma casuística de dez a 15 casos por dia porque passados seis meses está desatualizado por não ter casuística. Assim é um estudioso, não um especialista. Há muitos veterinários em Portugal que dizem ou que querem ser especialistas e que não têm nem dez casos por mês. Posso ter um título, mas se não exercer, ao fim de algum tempo tenho o título, não sou especialista. É esta realidade nacional que temos de ter consciência. Fui convidado pela OMV para pertencer ao Comité de Avaliação dos títulos de especialidades, e faço-o com boa vontade participando na classe porque acho que é por aí que é o caminho. Mas temos de ter uma realidade: a dimensão que temos, a dividir pelas especialidades que querem ser criadas, se não houver casuística para elas.
Na sua opinião como classifica a Medicina Veterinária em Portugal?
Comparativamente com o resto da Europa estamos abaixo da qualidade dos outros países por falta de casuística. Vou dar um exemplo: Inglaterra cobra por uma OVH 1.500 a 2.000 euros. Em Portugal utilizando a mesma anestesia, os mesmos fios de sutura, os mesmos materiais, o mesmo tempo de trabalho, a mesma cirurgia custa 250 a 300€. É evidente que os equipamentos custam muito dinheiro todos os dias, temos a profissão mais cara de toda a área da saúde, temos de ter instalações, pessoal, ou seja, para exercer medicina veterinária temos de ter enfermeiros e auxiliares de consultório. Na medicina humana os cinco ou seis consultórios médicos podem partilhar o salário de uma rececionista, por exemplo. Em medicina veterinária, se quiser funcionar bem, temos de ter um auxiliar ou enfermeiro por médico veterinário, sendo que o ideal é de 1,5 por cada médico veterinário que esteja a trabalhar, senão estamos a dar ao médico tarefas que não são deontologicamente adaptáveis à sua classificação profissional, e estamos a pagar uma mão-de-obra mais cara que acaba por ter um rendimento menor. Na prática para termos uma assistência veterinária em condições temos de ter custos mais altos, além de que já temos os impostos mais altos da saúde. Há 30 ou 40 anos, 90% da atividade de um veterinário era a pecuária e 10% eram animais de companhia. Hoje em dia, por vários motivos como a entrada para a União Europeia ou outras áreas profissionais a tratar dos animais de explorações pecuárias, e menor efetivo de animais de espécies pecuárias, a medicina veterinária tem 80 a 90% de animais de companhia e 10 a 20% de espécies pecuárias. Se aquilo que um médico veterinário hoje faz é tratar animais de companhia, que coabitam com as pessoas, se o que faz é Saúde Pública, então não faz sentido que a classe veterinária pertença ao Ministério da Agricultura e devia pertencer ao Ministério da Saúde e ter taxa de IVA de zero, como na Medicina Humana.
Não há um lobby forte na Medicina Veterinária?
Não, nenhum. Quando esta questão foi legislada, na altura em que Cavaco Silva era Primeiro-ministro, lembro-me que a Assembleia da República tinha nessa legislatura 38 deputados médicos de Medicina Humana e não tinha nenhum médico veterinário.
É importante para defender os interesses da classe?
Claro, onde é que se defendem as leis? Onde é que elas se fazem? Dentro do Parlamento. Se uma classe forte, como a Medicina Humana, tiver quem a defenda está sempre numa situação de vantagem em relação à medicina veterinária. Estamos a dizer que, se igualmente na medicina humana e na medicina veterinária se faz Saúde Pública, mas os custos e as tabelas são diferentes, estamos sempre em pé de desigualdade tendo uma licenciatura e um curso que é igual ou até mais difícil que a medicina humana, pois tem de abarcar várias especialidades.
Já equacionou candidatar-se a deputado?
Não tenho vida para isso. Nem vida, nem idade. Além disso não sou político. Seria um político muito inconveniente porque digo demasiadas verdades.
Mas quando um veterinário vê que a sua carreira já atingiu um certo patamar pode pensar em desempenhar funções noutras áreas, como na política?
Por exemplo. Mas se fosse um vulgar funcionário do Estado e estivesse reformado poderia pensar nisso. Tendo uma empresa chamada Grupo Veterinário João XXI, com quase 30 pessoas a trabalhar e que dependem da nossa eficácia, não vou abandonar estas pessoas para me dedicar a outra atividade. Não vivo de mão-de-obra barata tirada das Faculdades e que em muitos sítios pagam a 3€ por hora. Tenho funcionários a ganhar talvez os melhores ordenados do país e estão comigo há mais de 30 anos.
Como surgiu a oportunidade de abrir outras clinicas?
Sempre tivemos muitos clientes da Linha do Estoril porque gostam dos nossos serviços. Acho que o verdadeiro caminho da medicina sem publicidade é gostar do serviço prestado e passar a palavra à família e amigos. Aqui na clinica temos clientes de Faro ou Castelo Branco, que fazem 700 a 800 km para vir a uma consulta. O meu paciente mais longínquo é um casal que vive no Panamá e como tem grandes condições financeiras, cada vez que um dos seus dois cães adoece vem à João XXI. Portanto, como tínhamos muitos clientes na linha do Estoril acabámos por abrir há 17 anos uma clinica em Miraflores. Hoje à volta tenho seis CAMV, para não falar de quantas tenho à volta da João XXI. Se considerar o centro de um círculo a João XXI, num raio de 5km há 68 CAMV. Não há esta média em país nenhum do mundo. É catastrófico. Se me perguntar se a João XXI está mal, digo que não está e uso como metáfora que a falência de um homem rico ainda é uma boa fortuna. Sempre tivemos muito movimento, e embora esteja mais fraco do que aquilo que era, continuamos com bom movimento. A concorrência é muito elevada atendendo ao número de Faculdades ou Escolas Veterinárias existentes e ao número de licenciados. Num País em que o nível de vida não aumenta, mas o número de desempregados sobe, e onde o número de animais de companhia também não tem aumentado, a dividir por dez vezes mais locais de atendimento tem de haver uma diminuição para todos. A oferta hoje em dia é muito superior a partir do momento em que os resultados das Faculdades abertas de há oito anos para cá conduziram a profissão aquilo que ela é hoje.
Como classifica o estado atual da profissão em relação à abertura de mais faculdades?
Claro, naturalmente. Dei aulas na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa durante dez anos, na década de 80. Quando se começaram a abrir mais Faculdades achei que o meu caminho não era a docência. Fui assistente da cadeira de Propedêutica Médica a convite do Prof. Cardoso Pessoa e estive dez anos a colaborar com essa cadeira. Deixei de dar aulas porque não quis mentir à juventude, quando começaram a abrir Faculdades e a licenciar pessoas à maluca estávamos a prometer à juventude um futuro que eles não iam ter. E se não houver a coragem de encerrar cursos ou reduzir Faculdades, cada vez esta situação se agravará mais. Já em 2004 tinha falado sobre isto numa análise que fiz da medicina veterinária, em que expunha a situação de França, Inglaterra, Itália e Espanha, que nessa altura começou com dez Faculdades. Chegaram a uma situação de crise de tal maneira que tinham 18 mil médicos veterinários desempregados, a desempenhar funções de taxistas ou caixas de supermercado. A nossa profissão, que era equilibrada e estruturada há oito anos, transformou-se num caos só porque determinadas entidades quiseram abrir Faculdades.
Hoje em dia, se não houver essa vontade politica, essa coragem, o que vai acontecer?
Um estrangulamento. Ainda não houve essa vontade porque não há coragem para dizer que estão a estragar uma profissão e um País com prejuízo da qualidade. Se não tiver um bom movimento clínico que me permita uma saúde financeira não posso investir em meios de diagnóstico de ponta, ou então faço leasings. Uma clínica para funcionar tem de ter movimento. Quem vai sobreviver no futuro? Os que tiverem menos custos de funcionamento e não há hipótese de ser outra maneira. Quem tem nome na praça e qualidade vai continuar a ter, por isso é que há sítios de referência que são mais procurados pelas pessoas.
Como vê o futuro da profissão? Não faz sentido ter especialidades?
Na minha ótica não porque não temos mercado. Podemos fazer especialistas para enviar para o estrangeiro, mas para o mercado nacional não.
Porque queremos ter então especialistas?
Para mostrar à União Europeia que somos um país intelectual e profissionalmente muito válido, da mesma maneira que fomos para os mestrados. Recebo pessoas de todas as Faculdades para estagiar connosco e devo dizer que os jovens saem da faculdade sem terem visto um parto, e embora tenham conhecimentos teóricos, a prática é zero. Agora saem mestres, quer dizer que estão acima dos licenciados. A profissão sofreu muitas alterações ao longo dos tempos, mas na prática tem de haver a coragem de planear o País, crescer de acordo com as necessidades e não o contrário. Formarmos 650 ou 700 veterinários por ano e mesmo que metade saia do país, ainda ficam 300 para substituir 55 ou 60 que se reformam. Qual é a solução?
O que acha da solução que algumas clínicas encontraram ao apostar no low cost? A solução é baixar os preços?
Isso só significa piorar em qualidade, pelas razões já referidas. A economia está para a saúde de uma empresa como o sangue para a saúde corporal. Se uma empresa não tiver economia, se um corpo não tiver sangue, não vive. O low cost é uma maneira de enganar as pessoas, que vão atraídas pelo low cost e fazem uma vacina a 15€, mas depois todos os outros serviços são o triplo do preço. Por norma há um ou dois serviços a servir de chamariz e os restantes são todos mais caros. Assisti a uma conferência do Dr. Pere Mercader em que ele referiu que quem entrar no sistema low cost nunca mais levantaria a cabeça porque habituando as pessoas a um preço de miséria nunca mais se podem adaptar a um preço que pague os custos de funcionamento. Quem deveria estabelecer os preços da classe deveria ser a OMV, como acontece com os médicos.
E isso é possível?
Penso que sim. O que não é possível nem dignificante para a classe é termos recém-licenciados a trabalhar em determinados locais de atendimento, inclusive ficar a fazer urgências noturnas, a ganhar 3€ por hora. É indigno.
Já referiu que não passa pelos seus planos concorrer a cargos políticos, mas se fosse convidado para um cargo para defender a classe estaria disponível?
Marques de Almeida foi um dos fundadores da World Small Veterinary Association e, depois do 25 de abril, a organização congénere portuguesa deixou de pagar quota e fomos expulsos. Um dia fui com ele a uma reunião a Inglaterra para recuperar a nossa imagem, em que ele pagou as quotas em atraso, pediu desculpa pelo sucedido, justificou a situação como fruto de uma revolução que tinha acontecido em Portugal, e pediu para voltarmos a fazer parte da associação. Os ingleses impuseram uma condição: criar uma nova associação. Então, juntamente com Marques de Almeida e outros quatro colegas criamos a APMVEAC. Fui o primeiro presidente da assembleia geral durante seis anos, fiz os seus estatutos e coloquei tudo em funcionamento. Não há duvida que já dei o meu contributo à sociedade e à classe. Cargos políticos não quero pelas razões que já referi, até porque não tenho tempo livre. Não recuso pertencer a qualquer organismo da Ordem, desde que concorde com o caminho que a Ordem segue, não como tribunal da classe, embora seja importante a parte deontológica, mas em defesa da classe e é algo que não tenho visto. Se a medicina veterinária não tiver deontologia, qualidade, prestigio e consideração social não representará a sua função e não a desempenha.