“É um fenómeno social”, afirma Assis Costa, médico veterinário, relembrando que a busca de tratamentos e soluções por iniciativa própria e sem recurso a um médico não é específica da medicina veterinária, sendo também recorrente na saúde humana. “Hoje é muito habitual que as pessoas se informem, primeiro, pelos meios de comunicação (que são muito acessíveis) e que depois venham saber uma outra opinião já depois de ter a sua formada, para confirmar ou anular a sua porque às vezes não chegaram a qualquer resultado”, ilustra. Uma opção que coloca alguns desafios à prática clínica diária. Francisco Assis Costa e Adriana Estrela, médicos veterinários, revelam que impacto tem esta problemática nas suas consultas e apontam algumas estratégias para superar as barreiras que possam surgir no contacto com os clientes.
Cliente informado
Acesso livre a uma informação vasta, como acontece online, é encarado como uma vantagem nos dias que correm. O fenómeno tem sido alvo de estudo nos últimos anos, sobretudo nos Estados Unidos, onde os termos e-patient e Dr. Google se tornaram comuns. Um estudo realizado em 2012, pelo Pew Research Center, concluiu que 69% dos norte-americanos procura informação online sobre questões de saúde (pessoais ou relativas a outros). Quando o tema é a saúde, o problema não está na pesquisa de dados, mas na interpretação e uso que é feito dessa informação, nomeadamente a tentativa de chegar a um diagnóstico, tarefa da competência exclusiva do médico. Em Veterinária o risco é idêntico. “Os nossos pacientes não se queixam, como tal a informação chega-nos sempre pelo dono que, sem conhecimentos médicos na maioria dos casos, não tem sensibilidade para ver determinadas patologias como a piorreia, cáries dentárias, otites, insuficiências cardíacas, entre outras”, afirma Assis Costa.
Dos vários obstáculos que a oferta online pode criar, “os piores problemas são o atraso na consulta de um médico veterinário e a compra de medicamentos via Internet, porque não se sabe até que ponto é seguro “ destaca Adriana Estrela, que já se deparou com o interesse de clientes em adquirir medicamentos online, sobretudo em casos de animais de companhia com doenças crónicas.
A demora na marcação de consulta verifica-se, segundo a experiência de Assis Costa, “sobretudo com doenças do foro infetocontagioso, em que pessoas que têm um cão com leishmaniose adiam e quando chegam à clínica já tem problemas gravíssimos ou, por exemplo, nos casos de gastrenterite hemorrágica.” Outra consequência deste comportamento “informado” dos clientes é o aumento da medicação sem supervisão médica, problema que já existia anteriormente. Adriana Estrela recorda um dos erros mais comuns e graves que cometem os donos: “O caso típico do gato medicado com paracetamol. Vemos muitas situações em que o animal parece estar constipado e o dono medica-o. Muitas pessoas têm este tipo de fármacos em casa e muitos pensam que, se não faz mal dar a um bebé, não fará mal ao gato. Mas é extremamente tóxico porque a nível hepático os gatos não conseguem metabolizá-lo.” Na opinião da médica veterinária, este tipo de iniciativa não está relacionada com a influência da Internet, até porque “se as pessoas procurassem online veriam logo que não deve dar-se. Aqui trata-se de um caso de automedicação, é de fácil acesso, toda a gente tem em casa.”
A génese do problema
Médico veterinário há 40 anos, Assis Costa admite não existir “qualquer semelhança entre o que acontecia há uma ou duas décadas e o que vê agora. As pessoas fazem pesquisa online e recorrem a automedicação por ausência de desafogo económico ou até por comodidade”. O contexto socioeconómico é a principal explicação para este cenário, defendem os entrevistados. “Na maioria das situações, a medicina veterinária não é uma área profissional de primeira necessidade para as famílias. À frente estão as necessidades básicas familiares, o bem-estar, educação , o meio de transporte familiar e até as férias. Só depois é que vem o cão e o gato”, lamenta Assis Costa. “Estas condicionantes conduziram as pessoas a perguntar a amigos, leigos ou entendidos o que deveriam fazer e consultam meios como a Internet com vista a efetuarem automedicação.”
Uma situação que já se tornou comum para Adriana Estrela. Em exercício desde 2001, a médica veterinária desde o início que se habitou a encontrar clientes que recorriam à Internet, contudo aponta o fator económico como determinante: “Noto que as pessoas vêm mais tarde. Acabam por vir porque não conseguem resolver o problema e muitas vezes trazem o animal numa situação clínica mais complicada, pois tentaram medicar em casa.” Recentemente, na sua clínica deparou-se com um caso deste tipo: “O animal não defecava há alguns dias e quando comecei a examiná-lo, nomeadamente em raio X, vi que apresentava um quadro de obstrução intestinal marcado. Esteve a um passo de ter de ser submetido a uma intervenção cirúrgica.” Exemplos como este ilustram como o facto de adiar a consulta pode, além de dificultar o tratamento e aumentar o sofrimento do animal, ter o efeito inverso ao pretendido pelos donos, ou seja, custos mais elevados. Importa alertar os clientes e fazê-los compreender as consequências da redução ou ausência de acompanhamento médico.
“Quanto mais precocemente se tratar uma patologia melhor e mais fácil será a resposta terapêutica ou cirúrgica”, recorda Assis Costa. A vacinação pode funcionar como uma janela de oportunidade para (re)estabelecer a ligação com o cliente, uma vez que será um dos cuidados médicos regulares que os donos continuam a seguir (ainda que, por vezes, de forma menos rigorosa). Como realça Assis Costa, “uma vacinação é um ato médico nobre se for exercido com consciência e competência. É uma oportunidade de fazer uma avaliação clínica, sem mais custos.”
Saber comunicar
Cuidados preventivos, tratamentos de rotina como as vacinas e recomendações específicas para cada caso são algumas das informações de que podem beneficiar os clientes em consulta, desde que recorram ao médico veterinário. Perante uma procura menos regular, cada consulta é uma oportunidade importante para passar esta informação. O primeiro contacto é determinante para garantir uma relação de confiança entre a equipa médica e o cliente e o sucesso depende, em grande medida, da abordagem adotada pelo próprio médico. “Se são clientes antigos, quando chegam à consulta sentem-se em casa e podemos conduzir a conversa como bem entendemos, mas se nos conhecem menos bem temos de dar provas da nossa qualidade e eficácia para sermos reconhecidos como aquilo que estão à espera e que é a confiança”, descreve Assis Costa, frisando que “quem vem pela primeira vez ou é cliente há pouco tempo muitas vezes já correu vários sítios sem resultados. Vem mais cético e traz já quatro ou cinco pistas de diagnóstico. São os casos que temos de conduzir com muita prudência e apoio em meios de diagnóstico – análises, ecografias.”
A linguagem utilizada deve igualmente ser ajustada caso a caso. Por um lado, o médico veterinário “tem de ser suficientemente hábil para falar linguagem técnica com quem a percebe e mais acessível com quem não percebe. Não podemos exigir que os pacientes entendam terminologia médica”, alerta Assis Costa. Por outro lado deverá evitar “ferir suscetibilidades e manter uma saudável relação futura, pelo que não devemos entrar em discordância com os clientes e muito menos em quebra de deontologia com respostas do tipo “eu é que sei, o médico sou eu” que, além de desagradáveis, faz com que as pessoas se sintam desconfortáveis”.
Contrariar a tendência?
Em consulta é fácil identificar um cliente que já se informou previamente, assegura Adriana Estrela: “Percebe-se bem pelo tipo de questão que colocam, os termos que usam e que revelam que houve pesquisas prévias. Mas, muitas vezes, dizem logo diretamente que consultaram a Internet”. Para a médica veterinária, a Internet não deve ser vista como uma ameaça, nem interferir com a atitude em consulta. “A minha postura não se altera perante um cliente que esteja mais informado acerca de uma ou outra doença. Faço tábua rasa, começo do início, porque na Internet há muita informação, mas eles não sabem filtrar. Tenho o hábito de explicar tudo, adaptando a linguagem, e à medida que colocam perguntas concretas respondo. Faço questão de os informar, tento esclarecer as dúvidas para que não tenham necessidade de procurar de outra forma”, defende.
Ao responder às expectativas do cliente e demonstrar o valor e especificidade do serviço prestado, a equipa clínica é vista pelo cliente como uma aliada nos cuidados de saúde do animal de estimação, distinguindo-se da resposta demasiado extensa, vaga ou pouco adaptada que encontra online. Mas isso não significa que a Internet seja colocada de parte. Por vezes é o próprio veterinário a recomendar a pesquisa online ou até a usá-la em consulta, como admite Adriana Estrela: “Em algumas situações sugiro ao cliente consultar a internet para saber mais sobre uma determinada doença. Noutras eu própria uso a Internet em consulta. Por exemplo, para detetar uma situação fisiológica designada ‘reverse sneezing’, frequente em certos cães e que assusta os donos, mas que precisamos de diferenciar da tosse. Apesar de ser um processo oposto – o espirro dá-se na inspiração e a tosse na expiração – não é fácil para os donos distinguirem os sintomas. Nestes casos, visualizar um vídeo online permite-lhes identificarem o problema. É uma boa ferramenta para explicar e tirar dúvidas.”
O uso das novas tecnologias é inevitável e para garantir o uso mais responsável, os médicos veterinários devem “convencer os clientes a recorrer à internet somente para esclarecer dúvidas e não para efetuar diagnósticos ou decidir pistas terapêuticas, sempre sem ferir suscetibilidades”, recomenda Assis Costa.
Comprovar “O diálogo entre o cliente e o médico veterinário nem sempre está facilitado e só poderá ser aceitável se se basear na confiança mútua e na fidelidade adquirida ao longo dos anos, com as provas demonstradas pela eficácia clínica” Assis Costa
Acompanhar “Mostrar disponibilidade para que os clientes se sintam à vontade para entrar em contacto e tirar qualquer tipo de dúvida, seja vindo à clínica, seja por telefone. Acho importante para esclarecer dúvidas mesmo por telefone, porque conseguimos encaminhar, orientar. Com este tipo de apoio na clinica as pessoas sentem confiança e já não irá recorrer tanto à Internet.” Adriana Estrela
Agendar “É fundamental ir ao médico veterinário duas vezes por ano e que o faça com um intervalo de seis meses. Se um ano de cão, em média, equivale a sete de humano é o mesmo que uma pessoa ir ao médico a cada 3,5 anos. Uma vacinação, por exemplo, é uma observação clinica importantíssima que permite fazer um check-up do animal sem custos acrescidos.” Assis Costa
Comunicar online “Utilizo o facebook, a página da clínica, para apresentar situações que surgem em consulta e alertar as pessoas, divulgar iniciativas que realizamos, animais que temos para a adoção. Conheço clínicas que usam as newsletters e é uma forma muito interessante que permite aprofundar mais os assuntos.” Adriana Estrela