Quando decidiu que queria ser médica veterinária?
Formei-me em 2002, mas confesso que desde pequena pensava que ia ser médica obstetra. Era o meu sonho. Nas candidaturas à faculdade, numa das opções coloquei Medicina Veterinária e entrei. Naquela altura ainda era relativamente fácil fazer a transição para o curso de Medicina, mas a verdade é que gostei tanto do primeiro ano que resolvi dar uma oportunidade à Veterinária. A meio do curso optei pelos grandes animais. Percebi que me despertava mais interesse do que a clínica de cães e gatos. A realidade é que, quando chegamos ao mercado de trabalho, tudo é diferente. E apesar de ainda ter estado alguns meses a fazer clínica de bovinos, o primeiro trabalho a sério surgiu numa clínica de pequenos animais, com uma colega que no seu percurso profissional fazia clínica de bovinos e ao fim do dia tinha a sua clínica de pequenos animais. Para mim foi uma transição muito fácil porque ela percebia a minha tendência para a clínica de bovinos e com muita facilidade me integrou na clínica de pequenos animais e me deu oportunidades de crescimento. A partir daí nunca mais voltei a ponderar a clínica de grandes animais.
Tinha alguma área pela qual tivesse um gosto especial?
No 3º ano de trabalho percebi que o meu interesse estava na cirurgia e daí para a frente quase todo o meu investimento foi na área da cirurgia. Em dois anos quase não saía da sala de cirurgia. Foi um grande desafio e era aí que me sentia confortável. Mas a vida vai abrindo portas e janelas e surgiu a oportunidade de ter a minha clínica. E se há algo que faz despertar um sino na cabeça dos veterinários é ter um negócio seu. Parece que ganhamos um determinado estatuto e qualidade de vida, que é totalmente mentira. Perdemos tudo isso quando adquirimos um negócio nosso.
A pessoa quando imagina que tem um negócio seu, que vai ser patrão de si próprio, que não vai receber ordens, que vai ter os seus horários e nunca mais vai ter de responder perante ninguém.
Exatamente. É isso tudo que imaginamos, mas na prática não tem nada a ver. Perdemos qualidade de vida, temos uma série de preocupações que muitas vezes não nos deixam dormir, temos equipas à nossa responsabilidade e é um peso em cima dos ombros que ninguém nos pode tirar. A história da qualidade de vida e das horas vagas para fazer outras coisas não existe.
Quando teve essa perceção da realidade?
Logo nos primeiros meses. Vinha de uma área muito técnica, não sabia nada sobre contabilidade e fiscalidade, sobre as minhas obrigações enquanto gestora de uma empresa, e tudo isso foi um balde de água fria. Perceber que tinha de abordar outras áreas que não a cirurgia. Tinha de prescindir daquilo que gostava de fazer e investir em áreas de gestão. Tive esse negócio durante três anos, na altura era uma sociedade, e correu muito bem, até que tivemos de nos separar. Eu era uma sócia minoritária por questões de logística e tive de fazer um caminho diferente. Saí da clínica e voltei para um hospital onde já tinha trabalhado anteriormente. Nessa altura foi-me colocado um desafio: tinha tido uma experiência de negócio, gostava de números e naquele momento precisavam de uma pessoa que gostasse de números.
Mas gostava de números?
Tive de passar a gostar. A minha paixão não são os números, mas temos de olhar para eles. São aqueles indicadores como temos no monitor do carro e que nos vão dando ideia de como tudo está a funcionar. Não os podemos desprezar e temos de os saber interpretar e escolher. Porque se quisermos há uma lista infindável de indicadores, podemos estar um dia a analisá-los, mas existem entre 6 a 10 que temos de ter sempre presentes e temos de ir olhando para eles.
Tirou algum curso ou especialização?
Sim, a primeira formação que fiz foi o curso de gestão para clinicas veterinárias na Universidade Católica. Foi a primeira vez que contactei com pessoas dessa área e de outras áreas de negócio. Percebi que eram problemas transversais, não apenas da veterinária. Que existiam outras empresas, outros negócios a fazer este percurso. A seguir veio a necessidade de estudar o comportamento, estudar pessoas, perceber porque muitas vezes as coisas não acontecem como achamos que deviam acontecer. Na altura trabalhava com uma equipa relativamente grande, em relação à média das equipas em Portugal, e muitas vezes há uma necessidade de gerir expectativas e necessidades que nós, quando fazemos um percurso muito técnico, não percebemos. Mas existem comportamentos que são consequência de realidades ou situações que não estamos a acompanhar. E algumas delas até criadas por nós.
Quando recebeu a proposta para trabalhar a gestão nesse hospital, foi aí que percebeu a necessidade de trabalhar o comportamento? Depois de ver problemas no dia-a-dia ao nível de gestão de equipas?
Sim. Quando começamos a olhar para os números, estes são um reflexo de qualquer coisa. E muitas vezes queremos fazer crescer os indicadores, mas estes estão totalmente dependentes das equipas e dos comportamentos, das ações e reações das equipas no dia-a-dia. Percebi que para conseguir fazer alguma coisa, para alterar o painel de controlo, tinha de entender o que está por detrás. Posso ter um painel fantástico de números, mas se não tiver mais nada, e for perder tempo a olhar para aqueles números não acontece nada. São o reflexo do que está a acontecer. Temos de andar muito para trás, num processo de autoconhecimento dos líderes e das próprias empresas. Saber o que quero para a minha empresa, porque faço isto, para onde quero caminhar. Tem de estar claro e é necessário comunicar de forma clara, sem equívocos, às equipas para que elas próprias saibam se o papel ou percurso delas pode incluir-se no percurso da empresa. Porque muitas vezes concorremos a um trabalho e o que queremos para para o nosso percurso e para a nossa vida não tem nada a ver com o que a empresa espera de nós. Isso tem de estar claro quando recrutamos pessoas. Depois se as pessoas acham que querem fazer parte daquele projeto tem de se deixar claro qual vai ser o papel delas no percurso da empresa. Como elas podem contribuir, criar valor dentro da empresa. Foi aqui que comecei a perceber que existiam os problemas: muitas vezes não está claro na cabeça de quem está no topo das organizações para onde querem ir. Até podem dizer que está muito claro, então peço: ‘escreva no papel para onde quer ir’. E este exercício é muito difícil porque muitas vezes não sabemos o que escrever. Enquanto isto não for claro também não se consegue transmitir de forma clara à equipa. Depois temos de transmitir às pessoas o que elas vão fazer, o que precisamos delas, qual o objetivo e o que ganham se fizerem bem o seu papel. Depois passa pela gestão no dia-a-dia destas pessoas, porque há uma flutuação motivacional, emocional e temos de andar sempre atentos. É um trabalho diário. Foi aí que senti que tinha de perceber de comportamentos, normalmente dizemos que é tudo bom senso, mas não é. Tenho de perceber o que está por detrás destas reações das pessoas e o que posso fazer para criar a reação que quero. Foi aí que surgiu a necessidade de fazer a formação na gestão de recursos humanos, mais comportamental.
Quais eram os principais problemas a nível de equipas que encontrava?
Normalmente quando recrutamos pessoas conseguimos perceber, pelo currículo ou pelas referências, o seu percurso técnico. Mas existe depois toda uma formação, que é quase transversal a todos os negócios, que não é própria do nosso negócio, e que tem a ver com comportamentos e atitudes. Isso é um grande calcanhar de Aquiles.
Estamos a falar da inteligência emocional?
Sim, é disso que estamos a falar. Hoje em dia já se coloca em cima da mesa, e com clareza, que pessoas de sucesso dentro das empresas têm uma inteligência emocional muito maior do que uma inteligência técnica e é isso que as faz alcançar patamares que pessoas tecnicamente muito boas não conseguem alcançar. E acho que em negócios como este, negócios de relações entre pessoas, isso é crítico. Quantas vezes não vemos situações, principalmente entre veterinários que por vezes ficam frustrados porque salvaram o animal com uma cirurgia muito complexa, mas o cliente não ficou satisfeito. O que se passou? Toda esta parte da inteligência emocional, de pensar ‘o que eu poderia ter feito de diferente, o que tenho de trabalhar’, tem de acontecer. Hoje em dia é crítico e temos de ajudar as pessoas a fazer essas transições. A inteligência emocional é algo que podemos ir aprendendo e treinando, não se nasce ou não com inteligência emocional.
Como podemos definir a inteligência emocional?
De forma muito simplista, cada um de nós tem uma maneira muito própria de ver a realidade, de ver o mundo. E há quem compare essa realidade a uns óculos. Tem a ver com as nossas vivências interiores, a nossa educação, as experiências que fomos vivendo ao longo do nosso crescimento e isso condiciona a forma como vemos as coisas. E muitas vezes essa forma nem sempre é a real. A inteligência emocional é a capacidade que cada um de nós pode desenvolver, no sentido de perceber ‘isto é o que estou a ver, mas é apenas a minha visão da situação. O que pode estar a acontecer que não estou a atingir?’ Ou que tipo de situações despoletam em mim reações que podem nem ser normais, podem ser exageradas, porque estou a interpretar à minha maneira. Esta sensibilidade de olhar para nós, de nos percebermos, de saber o que nos faz despoletar determinado tipo de reações e ter a consciência de que nem tudo o que vemos é o real. Por vezes, por interpretarmos a realidade de forma diferente, criam-se animosidades, ritmos diferentes e isto em equipas que vão tomando dimensão acaba por ser muito desgastante. Uma pessoa que entra de manhã e percebe que há um pequeno atrito entre duas pessoas, quando chegam a meio do dia a equipa está toda mal dispostos. É como uma doença infectocontagiosa.
Como foi a experiencia de gerir pessoas?
Foi difícil (risos). No primeiro ano há o empolgamento do desafio, no segundo ano caímos na realidade, há a frustração e pensamos ‘isto é muito difícil’. Foi quando percebi que tinha de me autoconhecer, perceber ‘eu sou assim e reajo desta maneira nestas circunstâncias’. Então passei por um processo que não foi fácil, em que temos de olhar para nós e identificar quais os nossos defeitos e como reagimos em determinadas. Foi nessa altura que procurei algum apoio de coaching pessoal, para descobrir estes meus triggers, e dar a volta à situação. Muitas vezes os triggers não desaparecem, mas passei a controlá-los. Passei a antecipá-los e a treinar. Se no início é com esforço e consciência que estamos a fazer esta transição de hábitos, depois começa a ser natural.
E isso melhorou o relacionamento com as equipas?
Melhorou o meu relacionamento com as equipas e o meu balanço ao final do dia. Porque saía ao fim do dia frustrada porque não chegava onde queria chegar. Se abordarmos as situações de um ângulo diferente, com esta abordagem de inteligência emocional, conseguimos atingir metas que queríamos e o fim do dia é compensador. Foi isto que me fez fazer esta transição para o projeto novo, foi o fim do dia. O que tenho de sentir quando chego ao fim do dia. Porque se chego cansada, frustrada e se vou disparatar com toda a gente, inclusive com o cão, algo não está bem. Então percebi: é aquilo que quero sentir ao fim do dia que me vai fazer dar este passo. E há um impacto brutal. Quando estou com pessoas e temos determinado tipo de conversas sinto que há um impacto no dia-a-dia, no seu trabalho. As pessoas estão mais adaptadas, menos stressadas, mas quero que as pessoas estejam nos seus lugares de trabalho relaxadas, criativas, produtivas. Não quero pessoas tensas, com medo, porque isso não vai levar a lado nenhum.
E esse medo é medo de falhar? Medo da reação do chefe? Medo dos clientes?
O medo é talvez a droga mais paralisante que alguma vez se conheceu. É o medo de muita coisa. Medo de defraudar expectativas, e muitas vezes tem a ver com as expectativas do patrão, da nossa família, dos amigos. Porque quando abraçamos determinados projetos temos uma imagem a manter e o peso de não defraudar as pessoas que nos apoiaram, ou suportaram esses passos, muitas vezes faz com que as pessoas fiquem paralisadas e não façam coisas que gostariam de fazer, ou que as tornariam mais criativas, mais felizes.
E quando surge a REVET – Rethink Vet Business?
Rethink Vet Business é exatamente aquilo que eu pensei. É o que quero fazer, não quero reinventar a roda, não há nada para reinventar. Quero que as pessoas tomem consciência que, se pararem um pouco para pensar nos seus negócios, podem atingir outro tipo de resultados. Ouvimos muitas vezes os colegas dizerem que não têm tempo para pensar nisso, para falar com as pessoas, que andam sempre a correr. Mentira. É uma questão de planeamento e organização. A pessoa, no mesmo dia em que me disse isso, está uma hora no Facebook a ver as cusquices sobre as eleições, por exemplo. É uma questão de prioridades. Se para mim é prioritário falar com a minha equipa, tenho de guardar aquela hora não para estar no Facebook, mas para falar com a minha equipa.
As pessoas têm demonstrado curiosidade pelo projeto?
Até há pouco tempo os veterinários nem tinham a preocupação com os números. Os negócios corriam bem, geravam dinheiro ao fim do mês, não havia a preocupação de fazer a gestão. Há três ou quatro anos surgiu esta preocupação e hoje já é uma realidade. As pessoas perceberam que têm um negócio tecnicamente fantástico, boas instalações e até controlam a parte de gestão, mas porque não conseguem dar o tal salto? E começo a perceber que há um fator que cria um teto: as pessoas. E perguntam: ‘mas porque tenho uma casa com instalações e equipamentos fantásticos, com remunerações até acima da média e as pessoas saem? Vão embora e vão procurar outro tipo de desafios?’ Acho que começa a colocar-se em cima da mesa que o fator a desenvolver é a equipa.
É aí que entra a REVET?
Sim, na palesta que fiz este ano no Vetbizz falei em quatro pilares que considero substanciais para as equipas se manterem equilibradas e felizes: a comunicação, o crescimento, o feedback e o reconhecimento/confiança. E há dois que posso ajudar a trabalhar: a comunicação e o crescimento. A comunicação porque muitas vezes esta questão da comunicação é fictícia. A pessoa diz ‘sim, eu transmito a informação e eles sabem perfeitamente o que têm de fazer’. Mentira. Muitas vezes as pessoas não sabem o que têm de fazer, o que se espera delas. Isso é o primeiro passo, identificar com a liderança o que querem fazer e que contributo querem de cada pessoa, para depois passarmos isso às pessoas e lhes dar a formação ajustada que necessitam. E isto tem a ver com o crescimento. A seguir a uma comunicação concreta e as pessoas perceberem que têm as ferramentas para serem produtivas e criativas, a confiança começa a crescer. Confiança dentro da empresa e autoconfiança, porque se as pessoas sentirem que não têm as ferramentas para fazer o trabalho, não têm formação, há uma falta de autoconfiança e adotam papéis submissos, muito pouco produtivos porque não têm as ferramentas adequadas.
E o que responde aos líderes mais tradicionais, que podem pensar que a sua equipa tem uma boa remuneração, mas que nunca estão satisfeitos. Que querem sempre mais?
Existe um paradigma gigante, não só na veterinária, que passa por dizer: a minha equipa tem de mudar! São os outros que têm de se ajustar para que as coisas corram bem. Mas não são só os outros que têm de mudar, eu também tenho de olhar para mim e perceber porque as pessoas que trabalham comigo me estão a dizer essas coisas. Pessoalmente já ouvi este desabafo em relação ao meu trabalho: ‘quando procurei a tua ajuda não estava à espera que me pedisses, a mim, para mudar’. Isto revela muito sobre o que se passa. As pessoas querem uma solução milagrosa, que eu vá com uma varinha mágica, toque nas pessoas e elas passem a fazer tudo lindamente. Mas estes processos de mudança e ajustamento, principalmente com as pessoas, não se fazem por decreto. Tenho um papel de bastidores, de fazer perguntas. As pessoas têm de perceber que não há só um lado a mudar, tem de haver um ajuste de ambos os lados.
Isso é o mais difícil?
Sim, porque obriga-nos a olhar para nós. É muito mais fácil dizer que as coisas não estão a correr bem com a equipa, os clientes reclamam, muitas vezes os veterinários passam uma hora na consulta com a sala de espera cheia. E eu pergunto: ‘O que está a fazer para que isso seja diferente?’ E oiço: ‘mas eu não tenho de fazer nada, eles é que têm de fazer diferente’. É verdade, eles têm de fazer algo diferente, mas qual é a parte em que o líder vai contribuir para que as coisas possam acontecer de forma diferente? E isto não é fácil, olhar para nós e perceber que temos de ajustar alguns comportamentos e o nosso mindset para que as coisas corram de outra forma.
Inteligência emocional é importante nas pessoas e nos líderes?
Sim, nas pessoas na sua generalidade. Hoje em dia, um líder que queira levar com ele as pessoas da sua equipa tem de ter inteligência emocional. A inteligência emocional é obrigatória, já não é um extra. As pessoas hoje em dia já não se motivam pelo vencimento ao fim do mês. Há uma serie de variáveis sobre o que motiva as pessoas. Nas gerações mais jovens, o fator monetário está a meio da tabela na lista do que faz as pessoas trocarem de trabalho. Digo isso por experiência, o dinheiro é importante e tem de assegurar a nossa qualidade de vida, no entanto fica para segundo plano quando não temos o crescimento e a confiança. Quando não sentimos que temos impacto naquilo que fazemos.
Quais as principais dificuldades que se tem deparado quando visita as clínicas? É essa falta de motivação?
É. Se não houver alguém que indique o percurso a seguir, que distribua funções claras. Primeiro de tudo o líder precisa de saber para onde quer ir e como vai lá chegar, qual o caminho que quer percorrer, e depois atribuir a cada pessoa da sua equipa a tarefa que deve cumprir para atingir o objetivo. Acho que isso não está a acontecer de forma clara, quando falo com as equipas as pessoas não sabem qual o papel que têm de desempenhar. Hoje em dia quando oiço donos dos negócios a dizer que as pessoas não se envolvem já não acredito. É claro que existe uma pequena fatia que não se envolverá em nenhum negócio nunca, mas diria que grande parte das pessoas que trabalham nas nossas equipas querem envolver-se, mas muitas vezes não sabem como participar, como fazer. E mais uma vez aquele medo de desiludir e desapontar paralisa.
O facto de ser veterinária ajuda nestas reuniões com as equipas?
Ajuda porque as pessoas sentem que também já senti o que elas estão a passar. Dificuldades ou stresses com clientes, a carga emocional que o trabalho deposita nos nossos ombros, o facto de já ter passado por papéis diferentes, já fui colaboradora de empresa, dona de negócio, agora estou noutra área, traz-me credibilidade e experiência que as pessoas reconhecem. Sinto que as pessoas querem colaborar, só precisam de saber como. E isso dá-me um alento para continuar.