Três estudantes da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa estiveram em Cabo Verde, em abril, com a Veterinários Sem Fronteiras. Em conversa com a VETERINÁRIA ATUAL, contam o que viram, o que aprenderam e exprimem um desejo: regressar.
Pagaram a sua própria viagem e estada, trabalharam em condições precárias e, por vezes, não souberam o desfecho dos seus casos – ainda assim, a vontade que ficou foi de voltar, e em breve. “Esta missão abriu-nos horizontes e mudou a nossa perspetiva relativamente ao trabalho do médico veterinário”, garantiu Alice Matos, uma das três voluntárias da organização não-governamental para o desenvolvimento (ONGD) Veterinários Sem Fronteiras – Portugal, que esteve na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, durante o mês de abril.
À estudante de 21 anos, juntaram-se ainda duas colegas: Carolina Brandão, de 26 anos, e Teresa Araújo, de 20. As alunas do terceiro ano do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa trabalharam no arquipélago africano em colaboração com a equipa veterinária da Associação Bons Amigos, uma organização local, fundada em 2000.
A parceria dos Veterinários Sem Fronteiras – Portugal com associações como a Bons Amigos tem a missão de prestar apoio veterinário às populações mais necessitadas dos países em vias de desenvolvimento. Apesar de não ter sido a estreia da delegação portuguesa em Cabo Verde, esta foi a primeira vez que os voluntários envolvidos eram estudantes de medicina veterinária.
A viagem durou 14 dias, de 12 a 26 de abril, período durante o qual as três portuguesas ajudaram a equipa da Bons Amigos em diversas tarefas, não só em clínica, mas também em campanhas de desparasitação pelas ruas de Praia, capital de Cabo Verde. A associação local presta serviços veterinários maioritariamente a cães e gatos, tanto na sua clínica, como em campanhas nos bairros de Santiago ou mesmo noutras ilhas do arquipélago.
Segundo as voluntárias, as ações de rua centram-se principalmente no controlo populacional, através da castração e esterilização, e no controlo de parasitoses. “As condições de trabalho não foram aquelas a que estamos habituadas e isso dificultou a nossa ajuda tendo em conta que, em muitos casos, não se dispunha dos meios para efetuar os exames complementares indicados, e às vezes, nem a medicação necessária para executar os tratamentos”, disse Alice Matos.
“Percebemos que a obtenção de um diagnóstico naquelas condições passa principalmente e quase unicamente pela anamnese e exame físico. Além das condições da clínica, há ainda o facto de a população com a qual contactamos estar muito mal informada e muitas vezes desatenta aos sinais, o que dificulta bastante a obtenção da história pregressa. Assim, uma anamnese pouco explícita, aliada à falta de meios de diagnóstico, mostrou-nos como pode ser difícil ter casos de sucesso, mas que isso não é motivo para não tentar dar aos animais a melhor qualidade de vida possível”, acrescentou a voluntária.
A clínica da Bons Amigos, onde as estudantes realizaram grande parte do seu trabalho, divide-se em cinco setores: consultas, cirurgia, internamento, isolamento e sala de banhos e tosquias. O motivo mais comum de consulta, recordam as voluntárias, foi a desparasitação, mas apareciam animais com diversas sintomatologias, muitas vezes relacionadas com doenças virais decorrentes da falta de vacinação preventiva.
“A falta de confirmação de diagnósticos obriga a que maioria das terapêuticas sejam instituídas de forma empírica, com base em alguns sinais e conhecimento teórico sobre as afeções mais frequentes”, disse Carolina Brandão. Para a voluntária e estudante, uma das principais dificuldades era perceber se havia ocorrido falha terapêutica ou se a suspeita inicial estava simplesmente errada quando não verificava “melhoria do estado de saúde”.
Este problema agravava-se ainda mais, garantiu a aluna da Universidade de Lisboa, no caso de doenças infetocontagiosas. Mas, no limite, a impossibilidade de diagnóstico tornou-se especialmente complicada quando era necessário recorrer à eutanásia. “Num contexto de recursos limitados, em situações em que a eutanásia poderia ser a medida mais humana a tomar, a ausência de diagnóstico definitivo dificulta ou impossibilita a tomada desta decisão por não existirem bases científicas que a suportem”, afirmou.
Casos memoráveis
Do ponto de vista cirúrgico, a maioria dos procedimentos realizados pelas estudantes de medicina veterinária foram as orquiectomias, ovariohisterectomias e resolução de casos de atropelamento e luta entre cães. “A reprodução descontrolada da população canina na Ilha de Santiago é notória. São inúmeros os cães que se veem soltos pelas ruas, embora a maioria tenha dono. Estas circunstâncias afetam tanto o bem-estar animal como o das pessoas. Os casos de atropelamentos e brigas são recorrentes e os problemas sanitários decorrentes de parasitoses e possíveis zoonoses ainda mais”, disse Teresa Araújo.
Perante este cenário, as voluntárias assistiram a cirurgias de amputação, drenagem de abcessos e várias suturas de lacerações, mas houve um caso em particular que ficou na memória: “Talvez o paciente mais memorável tenha sido uma cadela, com sinais óbvios de patologia cardíaca e suspeita de fluido intra-abdominal, que provavelmente requeria terapêutica de doença cardiovascular avançada. A clínica tinha alguns fármacos, mas nenhum meio de diagnóstico que permitisse confirmar as suspeitas, e o dono não tinha condições financeiras para suportar uma terapêutica continuada. A cadela foi para casa com alguns medicamentos oferecidos pela associação e, até ao final da nossa estadia, não tivemos novas informações sobre o seu estado de saúde. Casos destes são frustrantes, mas reveladores da quantidade de trabalho que ainda há por fazer e da necessidade de mão-de-obra qualificada”, sublinhou Carolina Brandão.
As alunas participaram também em campanhas de rua: os membros da Bons Amigos contam com a ajuda de ‘mensageiros’, que sinalizam animais em necessidade, em função dos quais são organizadas as ações. Todos os animais manipulados são registados, e os acabados de esterilizar são identificados com um brinco na orelha, uma tatuagem na barriga ou uma coleira de corda entrançada.
“Apercebemo-nos do enorme impacto que têm os médicos veterinários nos países em vias de desenvolvimento, não só no que diz respeito à clínica de pequenos animais, como também na sensibilização e educação da população para a importância da saúde animal”, admitiu Alice Matos.
Para Teresa Araújo, a mais jovem do grupo, a vontade de voltar a participar num projeto destes é inegável: “Foram duas semanas de muita aprendizagem e aperfeiçoamento de algumas técnicas. Mas, mais do que isso, uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Por enquanto, não temos planos feitos para um futuro breve, até porque são os voluntários que se encarregam dos custos da viagem e estadia. O maior sentimento que fica depois duma experiência destas é esse desejo de voltar mais tarde, principalmente quando a nossa formação estiver concluída e pudermos prestar cuidados de forma mais completa e eficiente.”