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Opinião

Vet Futuro – o passado não conta

veterinários ilustração Veterinária Atual
O futuro da Medicina Veterinária discute-se talvez mais actualmente que em outras fases da sua história, um pouco por todo o mundo. Os melhores exemplos? Os projetos Vet Futures, pelo Royal College of Veterinary Surgeons – RCVS – e British Veterinary Association – BVA, o Vet Futures FVE da Federação dos Veterinários da Europa (FVE) e mesmo diversas ações da American Veterinary Medical Association (AVMA).

Porque surgem estes projectos?

  • Vivemos num mundo em que a incerteza aumenta e a profissão veterinária compreendeu que tem de ser capaz de se ajustar a alterações da sociedade e mesmo antecipá-las
  • As pressões que a sociedade traz para o sector veterinário são diferentes, muito mais focadas em Bem-Estar Animal e Saúde Pública e a Deontologia Veterinária precisa adaptar-se
  • A profissão veterinária sofre pressões políticas e económicas para se ajustar a um mundo em que a comoditização dos serviços de saúde é uma realidade
  • A profissão entendeu que o seu destino frequentemente lhe escapa e que necessita ter uma palavra essencial quando decisões que a afectam são tomadas em instâncias políticas nacionais e internacionais
  • Os perfis da profissão, do mercado e do próprio médico veterinário têm vindo a evoluir

Como se estabelecem estes projectos?

Em primeiro lugar há que existir a vontade e reconhecer a necessidade de os iniciar. Os decisores, estrategicamente, precisam olhar para a profissão e concluir que a mesma tem o seu futuro penhorado caso a mesma mantenha uma posição passiva. Podem existir movimentos emanados da sociedade civil, como se verificou com o movimento Veterinária Digna, em Espanha. Mas mesmo este movimento foi o reconhecimento da profissão dos problemas levantados por decisores preocupados e que iniciaram o passo fundamental para estes projectos: entender o presente da profissão.

Aparece, pois, o segundo passo: estudar o presente da profissão. Foi isso que se passou no previamente a qualquer discussão no Vet Futures, no Vet Futures FVE ou em Espanha e nos EUA: houve lugar a estudos profundos das condições socioeconómicas da profissão veterinária. Sem este passo, aplique-se uma regra fundamental empresarial: não se pode gerir o que não se pode medir. Uma chamada de atenção, no entanto: a qualidade destes estudos determina a qualidade e profundidade do planeamento estratégico para a profissão a jusante. Se se realizar um estudo muito superficial, como pode a profissão beneficiar de um projecto com poucos dados ou com perguntas pouco relevantes? Cabe, por isso, a equipa que precocemente desenha o estudo a capacidade prévia de entender o enquadramento actual da profissão na sociedade, de ter já o pulso da profissão e de conhecer os desafios mais óbvios que a mesma enfrenta.

Como se têm desenvolvido os projectos?

Casos há em que o projecto tomou um formato mais rígido, tendo os elementos das instituições inseridas nos projectos realizado a análise e criado recomendações baseadas nos dados. Parece ter sido esse o que se fez no caso espanhol, a AVMA também parece seguir maioritariamente esse modelo. No Reino Unido, o projecto foi aberto a todos os Colegas que mostraram interesse em participar, independentemente de representarem instituições do sector ou sendo provenientes do mercado de trabalho mais independente. Dos candidatos, selecionou-se uma equipa de acordo com o seu currículo, tentando que a mesma fosse representativa da totalidade da profissão. No caso da FVE, existiu um modelo híbrido: foi constituída uma equipa, de acordo com candidaturas, mas a equipa acaba por ser proveniente das instituições que são membros da FVE. Na última Assembleia Geral, em Novembro de 2016, houve lugar a workshops para alargar a participação a todos os membros e possibilitar a realização de brainstormings mais profícuos.

O que sai destes projectos?

Bem, uma vez mais isso varia com o modelo e o objectivo do mesmo. O caso mais ambicioso foi o Vet Futures no Reino Unido. O RCVS, um dos participantes, utilizou as recomendações do Vet Futures e integrou-as na sua estratégia. Pode mesmo afirmar-se que o actual Plano Estratégico do RCVS (e provavelmente os futuros) tem por base o Vet Futures e as respectivas conclusões.

A FVE, por seu lado, pretende incorporar as conclusões do seu Vet Futures FVE na sua Estratégia actual. A FVE, sendo uma federação de instituições veterinárias de países da EU e de outros países europeus, apresentava já uma actuação a um nível mais estratégico, ao nível dos decisores mundiais sobre a actuação dos veterinários, nomeadamente as instituições da EU, mas também da ONU, OIE, FAO e outras. Baseou o seu projeto no FVE Survey, que estudou a profissão a fundo nos seus países membros. Articula-se de forma próxima com o Vet Futures do Reino Unido e pretende que o projecto sirva para conhecer melhor a profissão e delinear estratégias ou acrescentar as existentes a ações que entenda serão benéficas para a profissão como um todo.

Em Espanha existe alguma dificuldade para transitar o que o Plano Estratégico criado em 2008 recomendou para um conjunto de actividades ou estratégias que são posteriormente aplicadas na prática. Isso deve-se à natureza federativa das instituições que regulam a profissão, a par da própria estrutura política do país. Como exemplo refiro que todas as conclusões de todos os estudos recomendam veementemente a suspensão da criação de novos cursos e a redução da oferta formativa veterinária a nível dos graduados, mas não tem havido total aderência a essas recomendações. Isto acontece mesmo que nos estudos e nas recomendações se tenham definido numerus clausus recomendados para os cursos de veterinária. Isto deve ser tomado como um bom exemplo das dificuldades da profissão para se autorregular.

E Portugal? Há necessidade de um projecto destes em Portugal?

Recentemente, no X Congresso da OMV tive a oportunidade de abordar este tema numa palestra. Faltando o tal estudo socioeconómico em Portugal, baseei–me nos dados do FVE Survey, como apresentado num artigo escrito com o Colega Emir Chaher na VA. Fiquei surpreendido e agradado que um estudo da profissão já se encontrava em estado avançado de planeamento e quase em execução, por iniciativa do Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários (SNMV). O SNMV convidou a OMV a participar no estudo e, como resposta, a OMV pareceu interessada em colaborar nesse estudo ou, eventualmente, desenvolver um estudo paralelo. Esperamos os desenvolvimentos, agora que já passaram mais de quatro meses.

Depois há que juntar um grupo de trabalho que reflita a dispersão de funções da profissão (e não apenas a diversidade de papéis dos membros da OMV) e discutir criticamente para, com pragmatismo, delinear acções que a profissão veterinária, no seu todo, deve apoiar. O pragmatismo é essencial para manter a equipa focada e produzir resultados passiveis de ser aplicados e medidos. A Medicina Veterinária em Portugal não necessita de mais exercícios vazios de discutir a profissão.

Os problemas da profissão veterinária em Portugal não são muito diferentes dos de países com cultura semelhante, nomeadamente os do Sul da Europa. A diversos níveis, Espanha e Itália, em especial, debatem-se com questões semelhantes a Portugal, como foi evidente em conversas, discursos e palestras na última reunião da FVE, duas semanas antes do X Congresso da OMV. O que parece faltar em Portugal será a abordagem estratégica aos mesmos problemas. Itália já avançou para limitar o acesso aos cursos de veterinária. Nos Planos Estratégicos de diferentes instituições espanholas, baseadas nos estudos da profissão, a menção a essa redução é prevalente. Em Portugal espera-se que o tema da empregabilidade e do excesso de veterinários no mercado de trabalho seja abordado e que se aja por mais que simples declarações de intenções, o que talvez seja mais fácil depois de realizados e analisados os estudos.

Infelizmente, a amostra portuguesa no FVE Survey não foi tão representativa quanto o necessário para se usar o mesmo como base para outros estudos, talvez tenha sido uma oportunidade perdida por isso mesmo. Deste modo continuamos a carecer desse estudo. Quanto a um projeto formal “Vet Futuro”, a minha opinião passa por dizer que é essencial. Devemos acabar as discussões baseadas em percepções ou em dados fragmentados. Devemos, tal como referido, abordar frontalmente o número de veterinários e de vagas no ensino superior (e a qualidade do mesmo) como essenciais para o futuro da profissão. Devemos ser pró-activos e não apenas reactivos quanto aos desafios da profissão. A OMV tem, historicamente, sido uma instituição que tapa os buracos que vão surgindo e nunca o mentor da adaptação da profissão à evolução da sociedade. Temos que passar a influenciar as decisões políticas, antes das mesmas serem tomadas, demonstrando sermos necessários aos processos decisivos. Algo parece estar a ser realizado neste campo. Temos de saber que muitas decisões que afetam a profissão em Portugal são tomadas em instâncias superiores e, portanto, manter a representação junto das mesmas.

Sim, a minha opinião é que Portugal necessita desesperadamente de um “Vet Futuro”. Simplesmente não existe um conhecimento consolidado da profissão em Portugal. E isso seria a única coisa em que o passado importa: o presente e a sua imagem. Mais que isso, devemos preferir olhar em frente a olhar para trás e passar demasiado tempo a encontrar erros e distribuir culpas.

Paulo Pereira - médico veterinário - Veterinária Atual
Paulo Pereira é Licenciado em Medicina Veterinária pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa, em 1996. Exerce funções em Clínica de Animais de Companhia, em Portugal e no Reino Unido. Pós-Graduação e experiência em Gestão de CAMV. Delegado português na FVE. Consultor de Recrutamento Veterinário.
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