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Médicos veterinários

Ricardo Pires Aleixo: “Os médicos veterinários portugueses têm cada vez mais interesse em incorporar a MIS na sua prática clínica”

Ricardo P Aleixo site

Assumindo-se como um dos rostos da liderança bicéfala da recém-criada Associação Ibérica de Mínima Invasão Veterinária (MINIMAL), é com satisfação que Ricardo Pires Aleixo regista o crescente número de CAMV portugueses que já incluem nos seus serviços a cirurgia minimamente invasiva (MIS, na sigla em inglês), assim como o interesse florescente por parte dos tutores nestas técnicas, que considera constituírem uma mais-valia para o bem-estar animal. Defensor da necessidade de ampliar os recursos de formação nesta área e de combater o desconhecimento e o ceticismo que ainda persistem, o também médico veterinário na VetEndoMIS sublinha ainda que é preciso ter em conta que “mínima incisão não é igual a mínima invasão”.

De que modo é que o seu percurso profissional o conduziu até à MIS?

 

A minha verdadeira paixão é a cirurgia. Soube desde os tempos de faculdade que queria enveredar pela clínica de pequenos animais, sempre com enfoque na vertente cirúrgica. A minha entrada na MIS resultou de um misto de querer aprender mais e complementar a minha experiência cirúrgica com uma nova valência que ainda não dominava, aliada à certeza de que a MIS é uma mais-valia para o bem-estar dos nossos pacientes. Recordo-me também que, em 2002, na qualidade de estagiário, assisti a uma esterilização laparoscópica realizada, nos Estados Unidos, por alguns dos mestres que ainda hoje são referências internacionais em medicina veterinária e esse episódio marcou-me bastante: soube, nessa altura, que um dia gostaria de aprender a executar aquelas técnicas.

Mais tarde, já no exercício da profissão, de há uns sete ou oito anos a esta parte, eu e o meu amigo e colega médico veterinário, Mauro Moura, começámos por adquirir alguns equipamentos para constituir a nossa primeira torre de endoscopia. Fomos avançando aos poucos e hoje somos sócios da VetEndoMIS, uma empresa que criámos, há dois anos, para realizar serviço de endoscopia e MIS em ambulatório.

 

Nesse caminho inicial depararam-se com alguns entraves ou resistências?

A primeira formação que fizemos nesta área, em Espanha, foi um curso dedicado a esterilizações de cadelas e gatas, o qual terminámos com a convicção de que seria exequível seguirmos este caminho. Na altura, deparámo-nos com algum ceticismo. Diziam-nos que não havia mercado para a MIS, em Portugal, mas acreditámos sempre que era possível e fomos crescendo nesta área. Criámos a VetEndoMIS com o intuito de não ficar à espera de que os casos nos entrassem pela porta da clínica, mas permitir que os colegas de outros CAMV ampliassem a oferta aos seus clientes, recorrendo à contratação dos serviços da VetEndoMIS. De início não foi fácil, mas fomos vencendo o ceticismo e angariando como clientes outros colegas que foram percebendo as vantagens da MIS.

 

Entretanto sentiram necessidade de fazer formação especializada em MIS? 

Em 2014 e 2015, respetivamente, o Mauro Moura e eu completámos a especialização universitária em Endoscopia e MIS pela Universidad de Extremadura e pelo Centro de Cirugía de Mínima Invasión Jesús Usón, em Espanha. Atualmente, em Portugal, creio que já somos quatro colegas com esse título. Por outro lado, há cada vez mais colegas que, independentemente de não terem esse título, já se dedicam a aplicar técnicas de MIS em boa parte da sua casuística.

 

Estão mais direcionados para alguma área em particular? Ou vão abarcando os diferentes campos de atuação no âmbito da MIS?

Essa seleção acaba por acontecer naturalmente, em função dos nossos gostos pessoais, mas não nos dedicamos exclusivamente a uma área específica no âmbito da MIS. Pessoalmente, fruto da minha paixão pela cirurgia, acabo por ter maior preferência por técnicas cirúrgicas, como a laparoscopia ou a toracoscopia, por exemplo, através do recurso a óticas rígidas. Por sua vez, há outros colegas, como é o caso do Mauro Moura, com maior apetência pela endoscopia flexível, mais associada à componente diagnóstica.

A MIS é eminentemente um trabalho de equipa?

Sem dúvida. Quando falamos em MIS, o cirurgião dá lugar a uma equipa cirúrgica, o que, por conseguinte, obriga o famigerado ego do cirurgião a passar para segundo plano. Quando operamos com óticas rígidas, por norma, são introduzidos três portais: um para a câmara e os outros dois para manusearmos os instrumentos através do princípio da triangulação. Existindo três portais e tendo em conta que cada um de nós só tem duas mãos, é fácil perceber que terá de haver pelo menos duas pessoas a operar os instrumentos e a câmara cirúrgica.

No último Vet Summit, no qual ministrou uma palestra dedicada a este tema, defendeu que é preciso desmistificar o conceito de MIS. Ainda existe algum desconhecimento sobre o que é verdadeiramente a MIS e quais são as suas potencialidades, no seio da comunidade de Medicina Veterinária no nosso País?

Eu diria que sim. E acredito que seja esse desconhecimento a justificar, em boa parte, o ceticismo que alguns colegas ainda mantêm relativamente a determinadas técnicas de MIS. Como procurei demonstrar nessa minha palestra, a MIS é uma designação abstrata, que reflete a tentativa de englobar sob a mesma alçada o maior número de técnicas, unidas pelo propósito comum de minimizar a invasão ao corpo do paciente e produzir menos dano.

Todavia, há uma máxima entre os colegas que se dedicam a esta área, para a qual gostaria de chamar a atenção: os médicos veterinários devem saber que mínima incisão não é igual a mínima invasão. Dou um exemplo: realizar uma ovariohisterectomia numa gata, com apenas um centímetro de incisão, pode parecer muito bom, mas pode implicar maior manipulação de tecidos e órgãos, por ser necessário mexer mais para atingirmos os nossos objetivos. Como tal, por vezes é preferível expandir um pouco mais a incisão, por forma a ampliar o campo de visão e minimizar o toque, a inflamação e os danos secundários que se possam infligir noutros órgãos.

Em suma, considero que o princípio cirúrgico de MIS se aplica a todas os procedimentos cirúrgicos de intuito diagnóstico ou terapêutico, com recurso tanto a óticas rígidas, como flexíveis ou técnicas mistas, como as endovasculares, que resultem em mínima invasão.

Que retrato é possível traçar da realidade da MIS, em Portugal, nos dias de hoje?

Estou convicto de que os médicos veterinários portugueses estão cada vez menos céticos e têm cada vez mais interesse em incorporar a MIS na sua prática clínica. Como dizia, há pelo menos quatro colegas portugueses com especialização universitária em endoscopia e MIS. Mas há também outros colegas que, mesmo sem esse título, já realizam e estão bastante avançados, pelo menos nas técnicas ditas mais corriqueiras.

Pelo que me é dado a observar, há muitos médicos veterinários, em Portugal, que dão os primeiros passos nesta área através da endoscopia flexível. Mais tarde, enveredam pela broncoscopia e vão evoluindo, posteriormente, para óticas rígidas, ampliando a sua atividade. Há cada vez mais CAMV, em Portugal, que já incluem a MIS nos serviços que prestam aos seus clientes e a procura por parte dos tutores também é cada vez maior.

Os médicos veterinários não especialistas nesta área e, eventualmente, até não cirurgiões podem desempenhar também um papel importante, no sentido de levar a MIS mais adiante?

Claro que sim. Estes colegas podem encarar a MIS como uma oportunidade de aumentar os serviços que prestam aos seus clientes finais, assim como de complementar a sua prática clínica – isto no caso dos médicos veterinários que pretendam assegurar a realização das técnicas em causa. Há, inclusive, procedimentos diagnósticos, como a gastroduodenoscopia ou a colonoscopia de diagnóstico, por exemplo, que, noutros países, são assegurados por não cirurgiões, os quais complementam a sua atividade clínica com práticas diagnósticas por via endoscópica. Portanto, há que saber sensibilizar os clientes e “vender-lhes” este serviço, demonstrando as vantagens da MIS. Até porque, hoje em dia, à semelhança do que acontece na Medicina humana, estas práticas estão cada vez mais difundidas. De igual modo, os tutores estão cada vez mais informados, sendo já relativamente frequentes os casos em que são os próprios tutores a sugerir a realização de procedimentos minimamente invasivos.

Um médico veterinário que esteja hoje a completar o seu percurso de formação e que pretenda especializar-se em MIS já encontra mais recursos de formação, em Portugal, nesta área? Ou a formação ainda passa sobretudo pelo estrangeiro?

Cada vez mais, já vai aparecendo alguma formação nesta área, em Portugal. Há, por exemplo, uma formação promovida pela empresa de equipamento cirúrgico veterinário Servive – da qual sou formador –, de iniciação em endoscopia gástrica e respiratória, que terá este ano a sua terceira edição.

No seguimento da fundação da MINIMAL, em 2018, a associação promoveu o seu primeiro Curso Prático de Cirurgia Minimamente Invasiva, subordinado às técnicas avançadas toracoscópicas, que decorreu em abril deste ano e teve lugar em Portugal. Adicionalmente, creio que estamos a assistir a uma mudança de mentalidades por parte das instituições académicas. Exemplo disso é o primeiro seminário integralmente dedicado à MIS, promovido pela Escola de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, realizado em maio de 2019. Isso deixa-me muito satisfeito e julgo ser sinal de que, no futuro, serão cada vez mais as iniciativas de formação, quer avançada, quer de iniciação, nesta área.

A formação especializada é fundamental para quem pretenda exercer estas técnicas minimamente invasivas?

A formação especializada é fundamental, nesta área como noutras. Temos de aprender com quem sabe, temos de aprender a manusear equipamentos que são frágeis e dispendiosos e temos de aprender para poder formar as pessoas que trabalham conosco. O bem-estar do nosso paciente depende de nós, pelo que temos de assegurar que executamos as diferentes técnicas nas melhores condições possíveis e reduzir qualquer risco iatrogênico que possa ser provocado pela nossa atuação.

Falava há pouco da fundação da MINIMAL. Que espaço veio preencher esta associação?

A missão da MINIMAL prende-se com proporcionar formação na área da endoscopia e MIS e contribuir para difundir, tanto junto da sociedade em geral, como junto dos médicos veterinários, os benefícios que os procedimentos minimamente invasivos acarretam para o bem-estar dos animais.

Sendo a formação um dos vetores primordiais da nossa atuação, e dando continuidade às iniciativas que já promovemos até aqui, no final de junho organizámos, em Lérida, um curso de suturas laparoscópicas, com as componentes de iniciação e de prática avançada. Em novembro deste ano terá também lugar o I Congresso da MINIMAL, em Sevilha, que contará com o apoio da Asociación de Veterinarios Españoles Especialistas en Pequeños Animales (AVEPA).

Do ponto cirúrgico, quais são os principais desafios para quem se está a iniciar nesta área?

Além do custo inerente ao equipamento, a coordenação mão-olho é um desafio importante. A prática da MIS implica algo que nunca fizemos antes: coordenarmos o nosso movimento, enquanto operamos, através do que vemos num monitor. Ainda assim, claro que ter a base da cirurgia convencional é uma mais-valia. Até porque temos de estar prontos para converter um procedimento minimamente invasivo em cirurgia aberta, sempre que necessário.

Para onde é que aponta o futuro da MIS?

Creio que o futuro da MIS aponta para a conjugação de técnicas. Dou o exemplo de um procedimento que foi descrito há relativamente pouco tempo, tendo em vista o tratamento de determinados tumores da bexiga, no qual se alia, em simultâneo, o uso de endoscopia com laser cirúrgico e ecografia. Isso implica a coordenação de uma equipa na execução de um procedimento que pressupõe a ablação da massa, com o auxílio da ecografia que está a ser realizada em tempo real e que permite saber os contornos exatos dessa massa que está a ser removida através do cistoscópio e utilizando um laser cirúrgico.

Portanto, considero que procedimentos em que haja colaboração de diferentes especialidades ou que impliquem o uso de diferentes tipos de equipamentos serão cada vez mais o futuro. Outro dos grandes desafios que se afiguram, a curto/médio prazo, é o recurso ao fluoroscópio e a técnicas de radiologia intervencionista.

Artigo originalmente publicado na edição 130 (setembro 2019) da VETERINÁRIA ATUAL.

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