A medicina veterinária social é um tema controverso. Se por um lado temos a população e o poder de compra em queda, por outro lado a população animal e o número de médicos veterinários tem vindo a aumentar. Perante este cenário, os CAMV’s sociais são necessários. Mas em que moldes? Fomos ouvir as associações do sector.
Segundo a definição da Associação Portuguesa de Médicos Veterinários Especialistas em Animais de Companhia (APMVEAC), a medicina veterinária social é aquela que é praticada em animais errantes ou naqueles cujos proprietários não tenham capacidade económica para efetuar o seu tratamento. Da perspetiva de Ana Fernandes, presidente da direção da Associação Zoófila Portuguesa (AZP), este tipo de medicina deve ser enquadrado “em termos macro”, ou seja, é necessário ter em conta o cenário envolvente, nomeadamente o facto “de a nossa população estar em declínio e o número de animais (cães e gatos) não estar controlado”. Por isso, Ana Fernandes acredita que a principal forma de “ajudar a população futura de cães e gatos é promover a esterilização e tem sido essa a nossa política”.
A classe veterinária está atenta a esta realidade e “a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) sempre apoiou projetos de solidariedade da classe médico veterinária para com a sociedade, dos quais destacamos o projeto Vet Solidário – Veterinários para a Sociedade, que ajudou mais de 200 famílias e doou mais de dez toneladas de alimentos para canídeos e felinos de famílias carenciadas e mais de três toneladas de areia”, conta Laurentina Pedroso, bastonária da OMV. Ainda no âmbito dos projetos de solidariedade, a OMV assinou, no dia 1 de outubro, um protocolo com a Comunidade Vida e Paz e com a C.A.S.A – Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, que tem como principal objetivo “incentivar a prestação de cuidados médico veterinários e tratamentos gratuitos a animais de pessoas sem-abrigo ou em situação de vulnerabilidade económica, com vista à garantia da saúde e do bem-estar animal e saúde pública”, sublinha Laurentina Pedroso.
As dificuldades económicas
O contexto económico e financeiro do País condiciona a medicina veterinária social (MVS), tanto pelo facto de existirem cada vez mais famílias carenciadas e, em consequência, a situação dos animais se tornar precária e muitas vezes acabarem abandonados; como ao nível da própria medicina veterinária, na medida em que se torna mais difícil de exercer MVS porque os próprios centros de atendimento médico veterinários (CAMV) assistem a um deteriorar das condições de trabalho.
“Na atual conjuntura económica, em que muitas pessoas estão com dificuldades, os pedidos de apoio social nas câmaras municipais têm crescido exponencialmente”, revela a direção da Associação Nacional dos Médicos Veterinários dos Municípios (ANVETEM). “Nestes pedidos de apoio somos cada vez mais confrontados com solicitações referentes aos animais. Ao nível dos Centros de Recolha Oficial de Animais, identificamos igualmente como motivo de entrega problemas económicos para manter e, sobretudo, para prestar assistência veterinária aos animais”.
A APMVEAC também não é “alheia às dificuldades sentidas pela população e que têm um forte impacto na forma como os animais de estimação são tratados e assistidos”. A população portuguesa “tem rendimentos inferiores à de outros países europeus e desde 2008 que estamos em crise e, em consequência, a perder poder de compra”, complementa Ana Fernandes. A presidente da AZP salvaguarda ainda que “os preços que se praticam têm vindo a ser ajustados, mas não na mesma proporção do que se perdeu em termos de poder de compra”.
Mas não é só a população e os CAMV’s que experienciam contrariedades. “Também o Estado, com as dificuldades que tem para prestar apoio às pessoas, dificilmente poderá, nesta fase, apoiar os animais”, elucida a direção da ANVETEM, acrescentando que “poderia dar algum incentivo, nomeadamente a possibilidade de as faturas de serviços médico veterinários serem contabilizadas para IRS ou ainda com a redução ou eliminação do IVA das consultas veterinárias”.
Ana Fernandes defende uma posição semelhante, pois declara que, em termos políticos, “a Veterinária continua a estar sob a alçada do ministério da Agricultura, o que me parece desfasado. Com isso temos dificuldades, nomeadamente ao nível dos impostos que a população tem de pagar, como o IVA a 23%”. Deste modo, a presidente da AZP sublinha que “seria um passo importante passarmos para o ministério da Saúde e, se possível, que as taxas de IVA não fossem cobradas, beneficiando com isso os animais”.
Necessidade de regulamentação
A medicina veterinária social é um tema que “toca a todos os clínicos”, como aponta a APMVEAC, mas tem sido “alvo de controvérsia entre médicos veterinários e responsáveis por associações de defesa de animais”, acrescenta a associação. Se, por um lado, os animais errantes e pertencentes a proprietários com escassos recursos financeiros “têm direito a tratamento digno, por outro existe uma preocupação justificável de os proprietários de clínicas de pequena dimensão poderem sofrer um impacto negativo muito importante com a abertura desse tipo de CAMV social’”, explica a APMVEAC.
A associação argumenta ainda que “não podemos deixar de pensar como irão ser financiados os CAMV’s sociais ou qual a posição a adotar quando esses centros de atendimento não têm capacidade física ou técnica para tratar dos seus pacientes e se veem na necessidade de enviá-los para um CAMV convencional”. Perante este contexto é imprescindível uma reflexão. Para Ana Fernandes é urgente pensar “como queremos viver neste país”, tendo em conta que “a população está em declínio, população animal a aumentar, o número de médicos veterinários a crescer e cada vez os rendimentos são menores”. Por isso, a presidente da AZP defende que “temos de nos juntar para decidir como vamos querer viver” e numa realidade onde “são abatidos 100 mil animais por ano” é urgente “avançar com medidas para termos um cenário diferente, nomeadamente deixar de haver canis de morte”. Por tudo isto, a responsável destaca a necessidade de “os grupos parlamentares nos ajudarem a criar mecanismos para conseguirmos uma maior harmonia”. No entanto, efetivamente “os CAMV’s sociais são precisos e acabarão por surgir em número crescente, mas é necessária uma regulamentação cuidadosa do seu funcionamento”, conclui a APMVEAC.
A Federação Europeia de Associações de Veterinários de Animais de Companhia (FECAVA) já tomou uma posição em relação ao controlo dos cães errantes na Europa. Em traços gerais defende:
- Educação relativamente à detenção responsável;
- Identificação permanente e registo obrigatórios;
- Garantir o estado higiossanitário dos animais sem proprietário;
- Estabelecimento de padrões de qualidade mínimos para os abrigos de animais;
- Adoção;
- Captura, esterilização, vacinação e libertação.
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Artigo publicado na edição de dezembro de 2015 da revista Veterinária Atual