É um mundo vasto, o da parasitologia. As ameaças são várias no plano dos parasitas em todo o País, podendo diferenciar-se consoante as regiões. Mas será que as doenças parasitárias no futuro irão diminuir, estabilizar ou aumentar? A VETERINÁRIA ATUAL foi à procura de respostas.
Luís Cardoso, professor associado de Parasitologia e Doenças Parasitárias do Mestrado Integrado em Medicina Veterinária da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) defende que, pelo risco que representam, as doenças que requerem maior atenção atualmente são as associadas a vetores, ou seja, aquelas “cujos agentes etiológicos são transmitidos por artrópodes hematófagos, incluindo mosquitos, flebotomíneos e carraças, que são, eles próprios, parasitas”. Existem algumas razões que justificam esta importância e que assentam, segundo o também membro da direção do Colégio Europeu de Parasitologia Veterinária, especialista veterinário europeu em Parasitologia e membro da associação LeishVet, no “aquecimento global – que favorece a proliferação, o período de atividade e a disseminação geográfica dos vetores – e também no trânsito aumentado de pessoas e animais a nível internacional. Os agentes etiológicos envolvidos podem ser vírus, bactérias, protozoários e vermes”.
Apesar de o risco ser sobretudo para os animais, as pessoas podem ser afetadas quando os agentes são transmissíveis dos primeiros para os segundos. Quer no âmbito de saúde animal, quer de saúde pública, “os agentes infeciosos (bactérias, parasitas e vírus) transmitidos por vetores (mosquitos, carraças, flebótomos, pulgas e piolhos) são uma ameaça emergente. De facto, a expansão geográfica de algumas espécies de vetores já se encontra descrita na literatura, o que poderá, caso ocorra concomitantemente a presença dos agentes infeciosos e de hospedeiros suscetíveis, levar ao aparecimento de novos focos endémicos”, explica Carla Maia, diplomada pelo Colégio Europeu de Parasitologia Veterinária e especialista europeia reconhecida pela European Board of Veterinary Specialisation (EBVS).
Existem outros riscos relatados pela também investigadora auxiliar na Unidade de Parasitologia Médica (UPM) do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, da Universidade Nova de Lisboa (IHMT-UNL), e que se prendem com a movimentação de animais entre países e continentes pelos mais diversos propósitos (recreativos, comerciais, resgate e adoção), que podem “provocar a introdução e disseminação de agentes e consequente surgimento de doenças consideradas exóticas”. André Pereira, doutorando em Ciências Biomédicas, Especialidade Parasitologia na UPM pelo IHMT-UNL, acrescenta que se tem assistido recentemente “a um aumento exponencial do número de parques caninos disponíveis nos meios urbanos, assim como o surgimento de empresas que disponibilizam serviços de ‘creche’ ou ‘ATL’ para cães. Na maioria destes locais, é estimulado o contacto próximo entre animais num ambiente confinado e natural, o que parece reunir uma série de condições favoráveis à propagação de parasitoses, incluindo zoonoses”.
É sempre melhor prevenir
Carla Maia e André Pereira sugerem que “além do aparecimento recente de novas e eficazes moléculas para a profilaxia e tratamento de endo e ectoparasitas, é importante que os médicos veterinários aconselhem os tutores dos animais a usar estas moléculas corretamente por forma a protegerem efetivamente os seus animais dos efeitos nocivos dos parasitas, e, no caso de parasitas com potencial zoonótico, se protegerem a si próprios, assim como para prevenir o aparecimento de resistências”.
Recorrendo ao velho ditado “prevenir é sempre melhor do que remediar”, o professor Luís Cardoso afirma que este é um dos grandes desafios para o setor. “Importa tentar evitar que os animais e as pessoas sejam infetados pelos agentes transmitidos por vetores e isso consegue-se prevenindo o contacto entre os vertebrados (animais e pessoas) e os vetores – ou minimizando a duração de possíveis contactos.” Numa fase posterior, e quando ocorre infeção e se há o desenvolvimento de doença, “importa tratar para garantir o bem-estar, a sobrevivência dos animais e, em muitos casos, das pessoas”. Luís Cardoso considera que a classe veterinária está bem preparada para enfrentar estes desafios. “Além de serem profissionais que receberam uma abrangente formação de base, conhecem (e reconhecem) o ‘inimigo’, pois na sua atividade contactam com estas doenças com relativa frequência.”
Maria Odete Afonso é professora de Entomologia Médica da UEI Parasitologia Médica, Global Health and Tropical Medicine (GHTM), no IHMT-UNL, e foca sobretudo a relevância da leishmaniose humana e canina que são “endémicas no nosso País”, constituindo a última um “grave problema de saúde animal”. A docente alerta para o facto de a grande maioria dos profissionais de saúde, e por consequência, os tutores dos animais, não saberem ou não se recordarem que “os vetores de leishmania infantum não são os mosquitos mas, sim, os flebotomíneos ou flebótomos, insetos com características bioecológicas completamente diferentes”. E adianta: “Se não conhecemos o ‘inimigo’, dificilmente, ou nunca, o saberemos combater. Hoje em dia, o período de transmissão vetorial de leishmaniose canina e felina tende a aumentar não só durante o ano, mas também na diversificação e expansão dos focos.” Para a professora, falta informação e formação acerca desta zoonose, transmitida de forma correta, para que os animais de companhia não cheguem a situações extremas.
Ao ser uma doença crónica, a leishmaniose continua a ser preocupante, e a resolução pode ser difícil de alcançar. “Há não muito tempo, houve a introdução de uma segunda vacina contra a leishmaniose canina no mercado europeu, incluindo Portugal, havendo também vários inseticidas disponíveis, bem como um imunomodulador. O que falta fazer? Nesta fase, mais do que esperar por novas soluções, há que investir na combinação das soluções existentes, na sua aplicação a mais cães (e mesmo a outros animais), com mais regularidade e durante mais tempo”, sugere Luís Cardoso.
Carla Maia sublinha que a leishmaniose é um problema para a saúde pública. “Nos últimos anos foram desenvolvidas diretrizes para o diagnóstico e tratamento da leishmaniose canina, assim como o aparecimento de novos inseticidas com efeito repelente, vacinas e imunomoduladores. A leishmaniose felina também começa a ser incluída nos diagnósticos diferenciais das afeções felinas, contudo, os protocolos de diagnóstico, terapêutica e prevenção destes parasitas, e em gatos, são ainda insuficientes.” No caso dos cães, acrescenta André Pereira, apesar da “proteção conferida pela vacinação ou pela administração de imunomoduladores, importa alertar os tutores para a importância do uso concomitante de repelentes, cuja eficácia contra os flebótomos tenha sido demonstrada”.
Odete Afonso lamenta que as leishmanioses sejam ainda negligenciadas, sobretudo por serem “extremamente condicionadas pelas alterações climáticas e ambientais, que vão favorecer os vetores não só na sua dispersão, aumento do número de gerações anuais, e densidade, mas também porque aceleram o ciclo de vida do parasita no vetor. Contudo, o abandono dos cães e gatos, a não notificação, a não monitorização e a vigilância flebotomínica têm também repercussões muito nefastas”. Por sua vez, André Pereira refere que “alguns parasitas mais prevalentes nos animais de companhia, como por exemplo, a Giardia, não são abrangidos pelos tratamentos profiláticos frequentemente adotados pelos médicos veterinários”. E acrescenta: “Desta forma, os mesmos devem estar alertados para a importância da realização de exames coprológicos [que podem ser realizados na maioria dos CAMV, não requerendo a aquisição de equipamentos específicos ou dispendiosos], quer para o diagnóstico das parasitoses, quer para a monitorização do tratamento contra as mesmas.”
A realização destes exames, antes e após as desparasitações, constitui uma boa prática clínica, na opinião de Carla Maia, porque os resultados fornecem “informações relevantes, não só sobre o sucesso terapêutico, mas também sobre o eventual desenvolvimento de resistências às moléculas que se encontram disponíveis no mercado”.
Outros desafios da parasitologia
Existem outros desafios colocados aos profissionais do setor, como por exemplo, o risco de aparecimento de resistências aos fármacos existentes. E isto deve-se, segundo Carla Maia, “à sua utilização inadequada ou ao desenvolvimento de uma menor suscetibilidade às moléculas por parte dos parasitas e à dificuldade de identificar e de realizar um diagnóstico precoce de doenças consideradas exóticas”. André Pereira acrescenta que “as isoxazolinas têm assumido um papel preponderante no controlo de ectoparasitas, como é o caso das pulgas e das carraças, sendo frequentemente incluídas nos planos profiláticos”. O doutorando e a docente chamam à atenção para o mecanismo de ação subjacente às isoxazolinas estar dependente do contacto íntimo dos vetores com os animais, não evitando a transmissão de muitos dos agentes patogénicos pelos mesmos. Desta forma, é importante a sua combinação com moléculas com efeito repelente.
A sensibilização dos alunos de Medicina Veterinária para o tema dos parasitas é outro desafio para a classe. Luís Cardoso considera que os estudantes estão devidamente informados sobre o tema. “Procuramos contribuir para que os estudantes tenham a noção de que esta área lhes vai dar bastante trabalho, circunstância essa que deve ser vista como uma oportunidade de realização profissional, mas também como uma responsabilidade perante os tutores e, obviamente, perante os animais.”
Embora seja muito difícil atuar em todas as vertentes da parasitologia, o docente enaltece o papel da investigação, que é considerável em Portugal, atendendo às condições e aos recursos do País. “Essa investigação resulta de trabalhos desenvolvidos sobretudo com base nas universidades, mas também em institutos públicos de investigação. Estão envolvidos docentes, investigadores e estudantes, sobretudo pós-graduados, havendo também diversos estudantes de graduação que elegem a parasitologia para a realização de dissertações de mestrado. Muitas das vezes, há parcerias com centros e com colegas do estrangeiro”, assinala o docente da UTAD. Todos os resultados que vão sendo produzidos ajudam a caracterizar melhor a situação do País em termos dos parasitas existentes e das doenças que deles derivam.
Carla Maia considera que as doenças parasitárias não são uma preocupação por parte dos alunos, pois estes consideram que “a maioria pode ser prevenida pela aplicação ou administração de desparasitantes de largo espetro. Contudo, muitas das vezes, não têm em conta que a sensibilidade dos diferentes parasitas e formas parasitárias é diferente, assim como a forma correta e a periodicidade de aplicação e administração dos desparasitantes”. Mais tarde, pela grande frequência de infeções provocadas por parasitas na prática clínica, os desafios diagnósticos e terapêuticos são regulares.
Odete Afonso, enquanto investigadora e docente na área de Entomologia Médica, tem verificado que os alunos se interessam cada vez mais por flebótomos e vetores de leishmanias, e isso verifica-se não só nos estágios, como também na realização de teses de mestrado e doutoramento.
Leia a segunda parte deste Especial amanhã (26 de junho de 2019)