Pessoas fora da ‘norma’ ou indivíduos excecionais que tendem a agir de forma diferente de todos os outros. É assim que o jornalista canadiano Malcom Gladwell define ‘Outliers’, na obra ‘Outliers: The Story of Success’, um conceito inspirado pela Estatística e levado a sério pelos médicos veterinários Jorge Pinto Ferreira e Ana Carolina Antunes, que ‘fugiram’ de carreiras na Clínica de Animais de Companhia para abraçar áreas menos ‘românticas’ no setor.
A Federação de Veterinários da Europa (FVE) estimava em 2016 que existiriam, no mercado europeu, cerca de 243 mil médicos veterinários, a grande maioria dos quais a trabalhar em Clínica de Animais de Companhia. No ano anterior, um estudo publicado pela mesma organização já tinha revelado que a esmagadora maioria dos estudantes de Medicina Veterinária planeava trabalhar, sobretudo, nessa área (57,7%), com apenas 31,9% dos alunos a referir que pretendia perseguir uma carreira na Veterinária de Animais de Produção, 22% a demonstrar interesse pela Investigação e apenas 6,4% a afirmar que a Indústria poderia ser a sua opção. É também este o documento que revela que “mais de metade dos estudantes de Medicina Veterinária acreditam que não recebem informação suficiente sobre as diferentes possibilidades de carreira dentro da Medicina Veterinária”.
Jorge Pinto Ferreira, médico veterinário português com a função de ‘Charge de Mission’, no ‘Antimicrobial Resistance and Veterinary Products Department’ da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), acredita que um dos fatores que mais leva os estudantes a optar pela Clínica de Animais de Companhia é o facto de “quase todos os alunos que entram nas faculdades de Medicina Veterinária serem citadinos”.
Romantismo vs Realidade
“Têm muito pouco contacto com qualquer outra saída profissional médico-veterinária. Crescem com a ideia de que ser médico veterinário é trabalhar na clínica de pequenos animais por onde passam todos os dias. E também é essa a imagem, ou caminho, que ‘todos’ esperam deles – amigos, familiares, etc. E outra coisa: é mais fácil explicar que se é médico de animais de companhia do que desenvolvemos políticas na Organização Mundial de Saúde Animal…”, defende.
O médico veterinário português fez o último ano da sua Licenciatura dividido entre a Faculdade de Medicina Veterinária de Hannover, na Alemanha (em Erasmus), e uma clínica de bovinos na Califórnia, nos Estados Unidos da América. Mais tarde, quando termina a sua formação, trabalhou numa clínica na Tocha, perto da Figueira da Foz, onde durante três anos prestou assistência a explorações leiteiras.
“Depois deste período passei a trabalhar na região do Entre Douro e Minho, com os colegas dos Serviços Veterinários Associados (SVA), com quem colaborei, com muito gosto, durante dois anos nos serviços de clínica de bovinos e de qualidade de leite. Em paralelo ao trabalho nos SVA fiz Mestrado na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, em Tecnologia e Segurança Alimentar. Depois disso candidatei-me e recebi uma bolsa da Fulbright para ir para os Estados Unidos fazer o Doutoramento. Estive na Carolina do Norte, onde fiz os meus estudos em parceria entre a North Carolina State University e a Duke University, sobre Resistência a Antibióticos e em particular a dinâmica de transmissão de uma bactéria multirresistente (Methicillin-resistant Staphylococcus aureus) entre pessoas e os seus animais de companhia. Depois disso fui ‘caçado’ no LinkedIn para trabalhar como consultor numa empresa na Suíça, a SAFOSO. Estive lá durante cinco anos e depois apareceram novas oportunidades, nomeadamente para trabalhar num projeto na Comissão Europeia, sempre na área da resistência a antibióticos/antimicrobianos, na América do Sul”. Em paralelo, começou a trabalhar na Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), com base na sede, em Paris. “Todo o trabalho nesta área, que passa pela colaboração com as outras organizações internacionais, nomeadamente Organização Mundial de Saúde, Food and Agriculture Organization (FAO) e Codex Alimentarius, faz parte do meu portefólio”, conta.
A sua opção pela Clínica de Bovinos, revela, teve muito a ver com as suas origens. Com pais de zonas rurais de Trás-os-Montes, a Medicina Veterinária de Animais de Produção foi uma opção natural. “Foi aí que me habituei a lidar com agricultores. E depois tive uma boa empatia com os meus professores na faculdade nas áreas de Clínica e Reprodução de Bovinos de Leite.”
A exposição a outras áreas, sublinha, seria essencial para levar mais estudantes de Medicina Veterinária a enveredar por carreiras onde existe escassez de profissionais. “A questão começa logo na Escola Secundária: na minha opinião ninguém está preparado para escolher o seu caminho profissional aos 18 anos. É incrivelmente cedo. Eu gosto muito mais do modelo norte-americano e até do suíço: na Suíça, os alunos dos diferentes graus de ensino, começando logo no primário, passam entre uma a duas semanas a verem, com contacto com a realidade, o que é ser carpinteiro, enfermeiro, ou seja, o que for. E assim podem começar a perceber se aquela profissão pode ser de facto aquilo que estão à procura ou se apenas têm uma visão romantizada daquela profissão, que depois não corresponde à realidade”, refere Jorge Pinto Ferreira.
Gostar de cuidar
De acordo com o médico veterinário, áreas como Saúde Pública e Políticas de Saúde Global têm falta de profissionais do setor, mas são frequentemente ignoradas: “é preciso incutir-lhes [aos estudantes] o espírito de aventura, de descoberta, de empreendedorismo…E abrir-lhes as portas para diferentes experiências e estágios. É muito importante que encarem possíveis ‘fracassos’ como meras experiências de aprendizagem, que fazem parte do percurso. São etapas e não o fim do caminho. Quase todos nós escolhemos Medicina Veterinária porque gostamos de animais. Mas para ser médico veterinário, o mais importante é gostar (para aqueles que querem ser clínicos) de Medicina (Veterinária) e gostar de ‘tratar’, o que é substancialmente diferente”, defende. “Quando começamos a fazer clínica idealizamos, e muitas vezes vivenciamos, as ‘happy ending stories’: o parto bem-sucedido, a vaca com hipocacelmia que se levanta depois do tratamento ou o vitelo com diarreia que ‘ressuscita’ depois da fluidoterapia. Mas há o outro lado: os bancos de urgências de 12, 24 ou 48 horas, a chamada recebida no dia de anos dos filhos, a cesariana no ‘meio do nada’ na noite fria de inverno e isto não é necessariamente divertido. Na minha carreira internacional de desenvolvimento de políticas há muitas partes muito glamorosas: viajo imenso e fico a conhecer os quatro cantos do mundo; falo em reuniões com grande exposição mediática, com muitos jantares e receções très chic, e tudo isto são enormes privilégios que me dão enorme prazer e pelos quais estou muitíssimo grato. Mas há o outro lado: é preciso estar preparado para a solidão paradoxal dos aeroportos ou a frieza do quarto de hotel magnífico, onde só passo um par de horas porque o voo seguinte é de manhã cedo… Como em todas as carreiras temos de encontrar o balanço entre o romantismo e a realidade e entre a vida profissional e pessoal”, confessa.
CãoVida
Foi também a paixão pela Medicina e por tratar dos outros que levou Jorge Pinto Ferreira a fundar a CãoVida, uma organização sem fins lucrativos que usa o exercício físico assistido por cães para minimizar problemas como a Obesidade Infantil. “Quando regressei dos Estados Unidos da América, em 2013, a minha filha, na altura com seis anos, estava no limiar de Obesidade infantil. Provavelmente muito influenciado pelo facto de ser médico veterinário, e ter estado nos Estados Unidos a estudar a interação entre pessoas e animais, lembrei-me que um cão poderia ser a solução para a fazer caminhar mais. Daí apareceu o Sebastião [um cão]. Como funcionou muito bem lembrei-me de expandir o conceito, criando uma organização sem fins lucrativos, no âmbito do exercício físico assistido por cães. Temos agora quatro serviços focados em diferentes faixas etárias, desde os bebés até aos cidadãos seniores, e é uma forma de contribuir para a comunidade onde cresci, o Porto. Aquilo de que mais me orgulho é de alguma forma contribuir para a comunidade em que cresci e para o estado social e para o bem público do país no qual me orgulho de ter nascido.”
“Mais importante do que saber o que queremos, é sabermos o que não queremos”
Ana Carolina Antunes também é uma médica veterinária fora da ‘norma’. Estudou na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, fez estágios nas áreas de Bem-Estar animal na Direção Geral de Veterinária, Clínica de Pequenos Animais e Epidemiologia, e no último ano de curso decidiu integrar uma missão dos Médicos Veterinários Sem Fronteiras – Portugal na Ilha do Maio, em Cabo Verde.
Quando surgiu a oportunidade de fazer um Doutoramento na área de Epidemiologia, no Instituto Nacional de Veterinária da Universidade Técnica da Dinamarca, em Copenhaga, em 2013, decidiu aceitar. Até à data tem trabalhado, em paralelo, no Instituto Nacional de Veterinária, na Suécia, na Universidade do Sul da Dinamarca e na Universidade de Copenhaga, onde foi investigadora convidada.
A clínica de Animais de Companhia esteve nos planos, mas rapidamente percebeu que o percurso não seria para si. “Logo desde que entrei para a faculdade comecei a fazer estágios nesta área aos fins-de-semana e durante as minhas férias e, ao fim de um ou dois anos, apercebi-me de que não tinha o perfil para trabalhar nesta área. Fiquei bastante desiludida com as condições de trabalho precárias e o mercado de trabalho saturado, o que só piorou com a crise financeira. O stress constante, o estar disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana, as expectativas dos donos dos animais para fazermos milagres cobrando-lhes o mínimo possível e os pedidos de eutanásia para casos em que há outra solução levam a um desgaste profissional e pessoal…”, confessa Ana Carolina Antunes.
A médica veterinária acredita que “a grande maioria dos estudantes está a par da saturação do mercado de trabalho na área de clínica devido ao número excessivo de faculdades em Portugal”, mas diz que a iniciativa para ‘mudar de rumo’ “tem de partir de cada um de nós”. “Não é fácil sair da ‘zona de conforto’, mas provavelmente vai ser mais gratificante a longo prazo arranjar um emprego que não leve a um desgaste profissional e pessoal. Aconselho [os estudantes de Medicina Veterinária] a usar a sua rede de contactos para falarem com pessoas que trabalhem em diferentes áreas, a procurarem informação na internet e a falarem com professores das faculdades para terem mais informação relativamente a outras áreas onde há mais procura. Procurem oportunidades como estágios, bolsas ou programas de pós-graduação para aprenderem e experimentarem outras áreas. Mais importante do que saber o que queremos, é sabermos o que não queremos e isso só se descobre experimentando”, defende.
Big Data
“Geralmente quando um aluno diz que não gosta de uma disciplina/área é porque: 1) não entende o porquê daquilo ser importante; 2) como pode ser usado na prática; 3) ou não sabe como pode articular com outras áreas nas quais tem interesse.” A sua consciência de que há outras áreas de interesse dentro do setor levou-a a apostar em formação em análise de dados. O Big Data e uma área tendência, mas são poucos os profissionais do setor portugueses a apostar nela.
“Tenho um Doutoramento em Epidemiologia na área da Monitorização e Vigilância de Doenças, o que me deu experiência e conhecimento nas áreas de Estatística e Programação. A área da Epidemiologia é uma das áreas que mais beneficiará de Big Data, mas somos muito poucos ‘outliers’ que trabalham em Epidemiologia e muito poucos em Big Data. A análise de Big Data em tempo (quase) real vem acelerar a tomada de decisões através de um dispositivo em qualquer lugar. À semelhança da Medicina Humana, a digitalização e a utilização de dados na Medicina Veterinária vai auxiliar diagnósticos e a Medicina Preventiva (no caso de animais com várias patologias e fatores de risco), monitorizar doenças infeciosas e resistência aos antibióticos numa população, alertar para a ocorrência de surtos, planear intervenções, assim como auxiliar a interpretação de imagens (quer radiológicas em clínica quer imagens de carcaças no matadouro para inspeção sanitária) e a descoberta de novos fármacos e tratamentos. Estes são apenas alguns exemplos onde se está a investir em Big Data. Há áreas onde ainda é necessário fazer muita investigação, mas acredito que, daqui a dez ou quinze anos, vai ser possível usar Big Data na maioria destas áreas”, conclui.
Artigo publicado na edição de abril de 2019 da revista VETERINÁRIA ATUAL