Apesar de a radioterapia ainda não estar disponível em Portugal, o país está ao nível da Europa no que respeita ao acesso aos procedimentos convencionais e aos novos tratamentos. Numa época em que se assiste a inovações terapêuticas e a desenvolvimentos no campo da imunoterapia, os tutores de animais de companhia podem estar seguros de que uma doença oncológica nem sempre é uma condenação.
Tal como em Medicina Humana, o cancro já não é assumido como noutros tempos. Em vez de uma “sentença de morte”, os profissionais de Medicina Veterinária têm assistido a uma certa mudança no que respeita ao prognóstico da doença em animais de companhia. “Cada vez mais, os tutores aceitam o diagnóstico com esperança, com a certeza de que os médicos veterinários têm conhecimentos para ajudar”, afirma Felisbina Queiroga, médica veterinária e professora associada com agregação da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
Por outro lado, para o médico veterinário dedicado à área de Oncologia Veterinária, Joaquim Henriques, a palavra cancro ainda é muito associada a doença terminal. “É importante que se saiba que existem vários cancros que se podem curar se detetados e tratados precocemente e de forma adequada”, defende. O tema foi debatido na 3ª edição do VetSummit, numa organização conjunta da IFE by Abilways e da VETERINÁRIA ATUAL, evento realizado no Centro Cultural de Belém, em maio passado. Relembramos parte da apresentação em que Ana Rita Serras, médica veterinária com residência em Oncologia Veterinária pelo Colégio Europeu de Medicina Interna, que centrou a sua palestra na importância de tratar as doenças oncológicas e sublinhou porque devemos fugir da denominação cancro. “Esta palavra tem uma conotação emocional muito negativa. O tutor, quando ouve ‘cancro’, já não nos ouve e a neoplasia é uma doença crónica com maior taxa de cura”. A médica veterinária referiu ainda a importância da informação prestada aos tutores.
Para Hugo Gregório, médico veterinário do Centro Hospitalar Veterinário (CHV), no Porto, as palavras “cancro” e “quimioterapia” despertam “compreensivelmente sentimentos bastante negativos nas pessoas e é comum vermos tutores a declinar tratamentos por não conseguirem lidar emocionalmente com a situação. Caberá à equipa veterinária educar e prestar apoio para ultrapassar esta situação. De referir que, muitas vezes, estas barreiras ao tratamento podem também partir dos veterinários”.
Como lidar com a doença
A melhor preparação dos profissionais também tem contribuído para uma certa mudança de paradigma e pela forma como a doença tem vindo a ser encarada. “O maior dos avanços está relacionado com a qualidade da formação dos médicos veterinários que estão hoje mais e melhor preparados, a ganhar ferramentas e competências para lidar com a doença. Essa preparação começa na universidade, onde são lecionados conteúdos de Oncologia Clínica registando-se ainda muitas ofertas de formação contínua disponíveis, tanto a nível nacional e internacional”, assinala a docente da UTAD. Felisbina Queiroga leciona a matéria de Oncologia Clínica, no curso de Medicina Veterinária desta universidade, no 2º semestre do 4º ano na unidade curricular (UC) “Medicina Interna de Animais de Companhia II”, estando também disponível para alunos que queiram aprofundar conhecimentos adicionais nesta área, na forma de uma UC de opção que ensina no 2º semestre do 5º ano, intitulada “Geriatria e Oncologia”.
Joaquim Henriques destaca o maior contacto com a disciplina, como optativa curricular, nas faculdades onde estes alunos se formam, e noutras “onde é inserida forma ligeira no programa das cadeiras médicas / clínicas”. Na sua opinião, a melhor formação e a especialização dos médicos veterinários juntam-se às “estruturas equipadas com quase todas as armas de combate ao cancro, da cirurgia oncológica à imunoterapia”, lamentando, no entanto, a inexistência de radioterapia. Felisbina Queiroga partilha a queixa. “Infelizmente não dispomos de radioterapia, o que é uma grande limitação no tratamento de alguns tipos de cancro”.
Novos tratamentos
Relativamente aos outros procedimentos, o país dispõe de facilidade de acesso. “Em geral, Portugal tem acompanhado os restantes países europeus no que diz respeito à disponibilidade de novos tratamentos. Assiste-se a hoje uma época muito interessante na oncologia veterinária com o desenvolvimento de novos fármacos especificamente desenvolvidos para tratar o cancro em espécies veterinárias e desenvolvimentos no campo da imunoterapia”, reforça o médico veterinário do CHV. Por sua vez, Joaquim Henriques destaca “alguns centros de atendimento com infraestruturas, equipamentos e pessoal especializado para fazer o melhor acompanhamento possível do paciente oncológico”.
No que respeita aos meios de diagnóstico existe em Portugal acesso adequado à Tomografia Axial Computorizada (TAC) e à Ressonância Magnética que, na opinião de Felisbina Queiroga, ajudam a “localizar lesões, estabelecer com elevada acuidade o estádio clínico dos doentes constituindo-se, dessa forma, como auxiliares valiosos na escolha do melhor protocolo de tratamento (médico e/ou cirúrgico)”.
Do diagnóstico ao custo do tratamento
Apesar do aparecimento de cancro em “animais jovens”, Joaquim Henriques concorda que o aumento da esperança média de vida dos animais de companhia tem contribuído para o desenvolvimento de cancro, “embora seja uma doença multifatorial”, assinala.
Já Hugo Gregório assume que “apesar de não existirem estudos de vigilância epidemiológica que o suportem, é geralmente aceite que a incidência de neoplasias em animais de companhia tem vindo a aumentar fruto de um aumento da esperança de vida destes animais”. Hugo Gregório assinala ainda um dado curioso que diz respeito às alterações de incidência de determinados tipos de cancro “fruto da alteração das preferências dos portugueses em relação às raças mais populares e que possuem predisposições para neoplasias específicas”. Por outro lado, o facto de os métodos de diagnóstico serem hoje muito mais específicos tem permitido “a deteção de muitos casos que primeiramente passariam despercebidos”, explica Felisbina Queiroga.
Os seguros de saúde funcionam?
Um dos desafios atuais é a incapacidade de alguns tutores em suportar os tratamentos adequados. “O mercado de seguros dos animais não está ainda suficientemente implantado em Portugal, o que dificulta a ação do médico veterinário que, muitas vezes, tem que optar pelo tratamento possível, e não pelo ótimo, dadas as limitações financeiras do tutor”, acrescenta a médica veterinária e professora da UTAD. Assim, o custo do tratamento pode ser um entrave com o qual o médico veterinário se depara, muitas vezes. Para Hugo Gregório, os custos continuam a ser importantes na decisão do tratamento, especialmente quando se fala “de opções mais inovadoras, como a terapia imunológica e a radioterapia [este último, no caso dos poucos tutores que se deslocam a Espanha para tratar o seu animal de companhia]”.
Por sua vez, Joaquim Henriques desmistifica a ideia de onerosidade de um tratamento quando comparado com outras patologias ou problemas. “Salvo raríssimas exceções, não é mais caro do que tratar uma rutura de ligamento cruzado ou uma hérnia discal”, adiantando que as dificuldades monetárias para assegurar o que é mais adequado aos animais de companhia dependem sobretudo “do tumor, do estádio da doença e do tratamento necessário”.
Um outro paradigma que tem ajudado no diagnóstico e no tratamento do cancro relaciona-se com a maior consciencialização por parte dos médicos veterinários e dos tutores. Mas também a referenciação parece ser uma mais valia. “Um aspeto que melhorou foi a aceitação da ideia de que não podemos ser bons em tudo. Se não temos os meios adequados para tratar, remetemos o caso para um colega que seja especializado nessa área. É para isso que servem as consultas de referência e acredito que têm tendência para aumentar”, defende Felisbina Queiroga. O médico veterinário Joaquim Henriques gostaria de assistir, no futuro, aos passos que se têm seguido em Medicina Humana através da “criação de centros especializados com a tecnologia e conhecimento necessários para tratar os animais com cancro”.
Investigações em curso
O grupo de investigação liderado por Felisbina Queiroga, professora associada com agregação da UTAD tem focado o interesse no estudo de marcadores com potencial de atuação como alvos terapêuticos em vários tipos de tumores (mama, mastocitomas, melanomas, entre outros). “Temos vários estudos publicados na expressão de Cyclooxigenase 2 (alvo terapêutico dos AINES como o firocoxib), c-kit (alvo terapêutico dos inibidores da tirosina cinase, como palladia e o masitinib), entre vários outros”, explica a docente. A equipa também se tem dedicado ao estudo “do infiltrado inflamatório existente no estroma de vários tipos de cancro o que poderá, no futuro, ajudar em termos de desenvolvimento de novos tratamentos, nomeadamente de imunoterapia”.
Outra das linhas de investigação a que se têm dedicado refere-se ao estudo de neoplasias nos animais como modelo para investigação nos humanos. “Destaco aqui com maior relevo os tumores de mama da cadela e, dentro destes, os carcinomas inflamatórios cuja similaridade com os seus congéneres na mulher é realmente impressionante”, assinala Felisbina Queiroga. A equipa tem publicado vários trabalhos em jornais científicos de referência a nível internacional.
Neoplasias mais comuns
No Centro Hospitalar Veterinário, do Porto, “as neoplasias mais comuns são as cutâneas, as mamárias, os linfomas e os hemangiossarcomas, esta última pelo facto de termos um serviço de urgências onde recebemos, com frequência, animais em choque, consequência de hemorragia com origem no tumor. Em gatos notamos sobretudo um aumento da incidência de linfomas intestinais”, explica Hugo Gregório.
Joaquim Henriques destaca como tumores mais frequentes, “os hematopoiéticos, os mastocitomas, o tumor da mama e os sarcomas dos tecidos moles”. Realidade distinta é verificada nos Estados Unidos da América, onde “os tumores da mama são raros porque as fêmeas são castradas em idades muito jovens”, explica a médica veterinária Felisbina Queiroga. Apesar de não existirem estudos epidemiológicos que ajudem a clarificar as taxas de cura a nível nacional, Felisbina Queiroga está convicta que têm vindo a aumentar devido ao número de casos detetados precocemente, o que aumenta “as hipóteses de sucesso terapêutico”, adianta.