Leões e hienas não assustam Mafalda Sardinha, médica veterinária no Zabeel Veterinary Hospital, no Dubai, onde trabalha regularmente com os animais da família real deste emirado. Oriunda de Cantanhede mas criada no Porto, a médica veterinária de 38 anos licenciou-se em Engenharia Agro-Pecuária, em 1998, e concluiu o mestrado integrado em Medicina Veterinária na Escola Universitária Vasco da Gama, em 2009. Exerceu e lecionou em Portugal antes de fundar a Clínica Veterinária do Lobito, em Angola, país onde defendeu os cuidados profiláticos dos animais domésticos e o papel dos veterinários para a saúde pública.
Qual é a sua área de especialidade e porque é que a escolheu?
A minha área de trabalho é a clínica de animais de companhia. Os primeiros anos da minha atividade foram passados no Hospital Veterinário do Baixo Vouga, que, sem dúvida, foram o pilar e a base da minha vida profissional. Nesta fase, foquei-me sobretudo nas áreas de ecografia abdominal, laboratório e medicina interna, mas foi também onde adquiri competências em cuidados de emergência e cirurgia de tecidos moles. No momento em que abri a clínica em Angola, que na verdade era um pequeno consultório inicialmente, iniciei-me também na área de gestão veterinária, o que nos dá toda uma nova perspetiva da profissão. Atualmente, estou novamente focada exclusivamente em clínica em registo hospitalar.
Como e quando é que surgiu a oportunidade de ir trabalhar para o estrangeiro? Que funções desempenha atualmente?
Foi um conjunto de fatores: por um lado, a maternidade afastou-me temporariamente da clínica, sobretudo a nível hospitalar, onde a carga horária é elevada e o trabalho por turnos, as noites e urgências são desgastantes; por outro, enquanto família tínhamos a vontade de nos aventurar numa experiência laboral no estrangeiro e achámos ser o momento ideal. O facto de ter ligações a Angola e de ter família a residir no país pareceu-nos desejável. A cidade do Lobito, na província de Benguela, tinha limitações no que diz respeito aos serviços disponíveis para os animais de companhia e, portanto, em 2014 começámos a esboçar o projeto duma pequena clínica, que viria a abrir em agosto de 2015. Desde então, tem evoluído e continua atualmente a funcionar com três veterinários. Desde setembro de 2018, ‘saltei’ para o Dubai na sequência de uma crise que se vive atualmente em Angola e também por razões pessoais no que diz respeito a cuidados de saúde e educação no país.
Como é que é um dia de trabalho normal para si?
O hospital onde trabalho pertence ao governo, e, por isso, trabalhamos diretamente com os animais do palácio. Isto significa que os animais da família real são na generalidade encaminhados para nós, o que acrescenta algum grau de exigência e rigor aos procedimentos, embora trabalhemos com o público em geral também. A minha atividade é de clínica geral, focada sobretudo em medicina interna e ecografia. Um dia normal consiste em consultas de rotina, mas também em cirurgias eletivas de tecidos moles e medicina dentária. Temos também uma equipa de veterinários especializados em vida selvagem e, frequentemente, temos no hospital para tratamento leões, hienas, muitas aves exóticas, entre outros; isto tem-me permitido aprender e ter contacto com uma área que não me era muito familiar.
Como é que foi a adaptação a um trabalho fora de Portugal?
Eu passei de uma realidade em Angola em que uma simples vacina da raiva ou o papel educador que temos para com os tutores fazem realmente a diferença. Todos os dias vemos atitudes a mudar para melhor e é gratificante ver o crescente interesse dos tutores nos cuidados profiláticos ou de nutrição. Há, no entanto, ainda um longo caminho a percorrer.
No Dubai passei a fazer ressonâncias e tomografias a animais de rua! A prática clínica e rotinas hospitalares são também distintas em alguns aspetos, mas é algo inerente a todas estas diferentes realidades.
Cerca de 80% da população nos Emirados Árabes Unidos são expatriados, existindo uma enorme variedade de nacionalidades e, obviamente, há algum choque cultural; cada cliente tem um background muito distinto em vários aspetos e, por isso, o serviço ao cliente torna-se muito exigente e requer alguma adaptação da nossa parte.
O Dubai é uma cidade surpreendentemente agradável, cosmopolita, onde existe sempre algo a acontecer. Grande parte do ano o clima é muito agradável e podemos tirar partido das muitas praias, parques verdes, deserto e, claro, das inúmeras zonas comerciais. É extremamente seguro e talvez dos melhores locais do mundo para educar os filhos. Cultiva-se um ambiente de respeito e tolerância, sendo uma sociedade muito aberta e tranquila que vai contra a ideia por vezes enraizada sobre os países do Médio Oriente.
Quais os seus planos para o futuro?
Estou a caminhar para o quinto ano fora de Portugal e penso estar a chegar o momento de voltar.
Como vê o estado atual da medicina veterinária em Portugal e no mundo?
Tendo presenciado realidades tão distintas nos últimos anos, é com prazer que vejo a medicina veterinária a evoluir, obviamente que a diferentes níveis. O crescente respeito e cuidados pelos animais é algo que deve acompanhar a evolução humana e penso que como veterinários podemos ter um grande impacto na sociedade.
Em Portugal vive-se um momento um pouco contraditório em que parece haver dificuldades no recrutamento em determinadas áreas, mas com uma elevada taxa de alunos a formarem-se e a saírem para o estrangeiro. Isto diz algo sobre a forma como estamos a trabalhar: temos de valorizar o nosso tempo e o nosso trabalho. É um momento em que me parece que a união da classe é fundamental e que parece ser transversal a outras áreas de trabalho dos portugueses. Temos uma excelente formação, somos bem preparados, mas, por vezes, parece-me que queremos diagnosticar e tratar sem os custos a isso associados. Uma boa consulta, procedimentos de qualidade e bons meios de diagnósticos são efetivamente dispendiosos. Se queremos que o cliente compreenda e seja educado para aquilo que estamos a fazer, isso tem de começar connosco.