Têm sido uma das gerações mais estudadas dos últimos anos e em 2025 deverão representar já cerca de 75% de toda a força de trabalho mundial. É inegável: a geração do milénio está a desafiar a cultura organizacional e o setor da medicina veterinária terá que se adaptar para não perder talento e clientes.
Conhecidos por Millennials, Geração Y ou Geração do Milénio, nasceram entre 1982 e 2000 e começam agora a entrar no mercado de trabalho com expetativas e experiências de vida completamente diferentes das gerações anteriores. Alvo de má reputação, esta nova geração tem sido apelidada de ‘difícil de gerir’ e ‘preguiçosa’ e começa agora a ser olhada com atenção dentro das organizações, que não sabem como corresponder às suas necessidades.
Elisabete Capitão, médica veterinária e fundadora da Revet, explica que a preguiça frequentemente apontada a estes jovens é um “mito”. Estamos perante uma geração que está “habituada a que os pais estivessem sempre lá para ajudar. Estiveram na vanguarda das mudanças tecnológicas e rapidamente se adaptaram ao Euro, assistindo a uma época farta em que os fundos comunitários engordavam as empresas criando emprego para qualificados e menos qualificados. Vêm-se agora confrontados com dificuldades para constituir família e ter um emprego duradouro e bem pago. Uma geração de sem emprego, altamente preparada e com mindset globalizado que se vê pressionada a emigrar ou empreender.”
Certo é que a atitude desta geração face ao mercado de trabalho é, na sua maioria, completamente diferente da de gerações anteriores. A responsável pela Revet revela que para estes jovens que agora entram nas empresas – setor da medicina veterinária incluído – o fator mais determinante é o balanço entre a vida pessoal e profissional, o que por vezes pode ser alvo de más interpretações. “Querem um emprego que lhes permita conjugar uma vida pessoal e social, ter família e praticar os seus hobbies. Para eles, trabalhar remotamente é uma hipótese em cima da mesa porque podem trabalhar em qualquer lugar, mantendo mesmo assim o contacto com os restantes membros da sua equipa. Isto não significa que trabalhem menos do que as gerações anteriores. Os Millennials são conhecidos também pela sua ambição e por trabalharem ‘no duro’.”
Setor da veterinária está preparado?
Mas estarão as empresas, e os CAMV’s em particular, preparadas para receber esta nova força de trabalho? São vários os estudos que indicam que, para se sentirem bem integrados dentro de uma organização, os Millennials precisam de se sentir valorizados, de gostar do que fazem e ter confiança nos seus líderes. Na medicina veterinária têm sido apontadas algumas críticas a estes jovens, que ainda não são totalmente compreendidos pelos seus pares, sobretudo por terem objetivos de vida diferentes.
Elisabete Capitão é perentória: “No meu entender são mal-amados pela sociedade (que os criou), que os apelida de preguiçosos e malcriados. No terreno vejo muita resistência, incompreensão e descrédito até, relativamente a estes jovens, que têm a coragem de assumir prioridades que gerações mais velhas só começam a valorizar mais tarde na vida, motivados muitas vezes pela insatisfação, cansaço e ausência de crescimento e propósito.”
Teresa Carapinha, uma ‘millennial’ de 26 anos, sales lead na Petable e estudante de Mestrado em Medicina Veterinária, não concorda que faça parte de uma geração de ‘preguiçosos’. “A minha opinião é que não somos, de todo, preguiçosos, antes pelo contrário. Somos exigentes, sem cair na arrogância. Somos empreendedores e damos mais valor a questões como a nossa formação, ganhar experiência e feedback da entidade patronal. Queremos crescer e evoluir, seja na prática clínica, seja noutras áreas ligadas à Medicina Veterinária e lutamos por boas condições de trabalho. Mas temos que ser humildes para aprender com as gerações anteriores à nossa, dando-lhes também a conhecer o nosso espírito empreendedor.”
Segundo Teresa Carapinha, o principal problema desta nova geração é que “à medida que o tempo avança, e com os resultados da crise financeira, são apresentadas propostas [de trabalho] que não permitem a um jovem recém-licenciado criar as condições necessárias a um início de vida minimamente confortável. Estamos mais despertos para essa situação assim que saímos para o mercado de trabalho, enquanto as gerações anteriores só quando chegavam a idades entre os 40-50 anos é que sentiam a necessidade de ter maior qualidade de vida. Há exceções na nossa área, em que os CAMV’s permitem aos seus funcionários horas de formação, remunerações consoante a experiência e horários adequados, mas infelizmente são poucos. Há colegas a ganhar quatro euros à hora, em situações precárias, a fazer urgências por mais de dois anos sem passar para o horário diurno, não tendo a possibilidade de operar ou de fazer consultas em horário normal, já para não falar dos estágios-emprego. Quem é que quer operar depois de uma noite em claro a fazer urgências ou a tratar de internados? Isso nem sequer seria um ato de bom senso, nem para um recém-licenciado, nem para alguém com alguns anos de experiência e isso não é ser preguiçoso.”
Quem são os ‘novos’ veterinários?
António Marques, médico-veterinário numa clínica de pequenos animais em Lisboa, e de uma outra geração, já com 40 anos, não concorda com as críticas que nos últimos anos têm sido feitas à geração do milénio. “Com certeza que haverá alguns preguiçosos e com pouca vontade de trabalhar, mas quero acreditar que não será a maioria. Penso que os ‘novos’ veterinários estão a tentar cada vez mais exigir os seus direitos laborais, e com toda a razão. Não será possível ter um trabalho de qualidade depois de dez horas de consultas e mais algumas em cirurgia. Quando todas as classes tentam limitar o horário laboral às 35 horas semanais, por que razão é que os veterinários terão de fazer dias seguidos de noites a trabalhar cerca 12h ou mais por dia?”
De acordo com o médico veterinário, as empresas com gestores mais novos estão a conseguir adaptar-se a esta nova geração, mas “o problema poderá estar mais relacionado com gestores de mentalidades mais antigas (independentemente da idade física dos mesmos) que consideram que o ‘amor à camisola’ é principalmente trabalhar horas a fio e no que for necessário. Como antigamente, um veterinário tanto consultava um cão como a seguir estava a consultar uma vaca ou uma ovelha, pensam que ainda deve ser assim, sem compreender que há necessidade, cada vez mais, de especialização e que o tempo do veterinário ‘faz tudo e vai a todas’ terminou.”
As baixas remunerações, por outro lado, têm sido também apontadas como parte do problema. Vânia Costa, 24 anos e médica veterinária formada na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), explica que esta geração, “ao contrário das anteriores”, não tem problemas em “descartar algumas propostas de emprego” se estas não corresponderem às suas expetativas. “Procurar por um emprego com um bom horário e salário, e recusar ofertas com turnos e remunerações descabidas que menosprezam a nossa capacidade e o fato de termos vida pessoal além da veterinária, não deveria ser associado a preguiça. Penso que nem todas as empresas estão preparadas para lidar com esta ‘nova onda’ de veterinários. A maioria dos gestores são veterinários ‘da velha guarda’, que embora sejam ótimos profissionais, estão habituados a um ritmo e condições de trabalho diferentes. Procuram médicos veterinários com a mesma forma de trabalhar, mas às vezes esquecem-se que a vida dos portugueses mudou em relação ao século passado, e a mentalidade também. Muitos colegas sentem-se como ‘carne para canhão’ porque as vontades mudam, mas os métodos não. Um salário baixo é logo à partida um fator que influencia a motivação de qualquer profissional, mas ainda assim existem muitos colegas a trabalhar arduamente, mesmo com um salário que não reflete a sua entrega. ‘Vestir a camisola’ implica abdicar de vida pessoal, prejudicar relações e entrar em burn out após cinco anos de trabalho? Se a resposta for sim, então muitos colegas desta geração realmente não estão para aí virados. Entristece-me verificar que, para muitos, ser médico veterinário e ser feliz são coisas que não coincidem. E a medicina veterinária parecia um sonho, apenas há uns anos atrás…”
Onde termina a vida profissional e começa a vida pessoal?
Ana Mota, médica veterinária e Diretora Clínica da Clínica Veterinária Patas & Penas, tem larga experiência no setor e acredita que o verdadeiro problema poderá estar na comunicação intergeracional. Não concorda que seja uma geração de preguiçosos e acha até que são “muito trabalhadores”, mas nota que “colocam em igualdade de valor a vida pessoal e a vida profissional. A não motivação pelos salários prende-se com a pouca variabilidade dos mesmos, assim pesam outros fatores, e o estilo de liderança é um deles porque se reflete na estrutura, na forma como funciona, nos serviços que presta e como evolui.”
“Por um lado esta geração tem muito por onde escolher. Existem várias estruturas do sul ao norte do país com excelentes instalações, profissionais e equipamento moderno desenvolvidos por colegas da minha geração e das anteriores. Quando acabei o curso há cerca de 17 anos a realidade não era esta. Se queríamos aprender mais tínhamos que fazer estágios e pós-graduações no estrangeiro. Havia pouca oferta e os clientes não estavam sensibilizados para a medicina preventiva e paliativa e para ao bem-estar animal. Neste aspeto foram percorridos imensos quilómetros por nós. Trabalhámos no duro, formações ao fim-de-semana, cursos e pós-graduações no tempo em que devíamos tirar férias, tudo com imenso sacrifício pessoal e familiar. Só para exemplificar, quando terminei o curso em Portugal não havia um único TAC em veterinária e ecógrafos existiam muito poucos. Por outro lado, esta é uma geração ‘mal paga’ fruto da imensa oferta de profissionais e da enorme perda de poder de compra por parte das famílias”, confessa.
No entanto, sublinha que “o desânimo é geral e transversal, em especial nas profissões ligadas à saúde. Algumas áreas da medicina, como os enfermeiros e até mesmo os dentistas, têm problemas graves de remuneração e excesso de profissionais na área. Recentemente, os dentistas fizeram um vídeo muito bem feito a denunciar as baixas remunerações e a existência em Portugal de um dentista para cada 1100 habitantes, o que os leva a emigrar…Isto parece-me familiar.”
Ana Mota nota também que “ambas as gerações podem beneficiar com a partilha dos saberes e das diferentes formas de estar. No final todos saem beneficiados.” Teresa Carapinha concorda com esta ideia e acredita que as gerações anteriores já estão mais despertas para esse facto. “Aos poucos as empresas vão-se apercebendo que precisam da nossa geração para revolucionar o mercado, tocando em áreas como o marketing e o social media. O input que estas duas áreas dão ao negócio são fundamentais e a nossa geração está muito mais desperta para isso. Quanto à prática clínica há que crescer passo a passo e ninguém quer resultados de um dia para o outro, mas a geração anterior à nossa tem que começar a distribuir trabalho mais específico (mais especializado). Não queremos continuar com o estatuto de ‘estagiário’ por sermos os mais novos. Se nos permitirem crescer numa área específica talvez consigamos alargar os serviços do CAMV. Há que saber delegar e distribuir tarefas porque a geração anterior insiste em fazer tudo ao mesmo tempo: gestão, marketing, compras, prática clínica, etc. Ou seja, a palavra certa é: confiar”, defende.
Para Elisabete Capitão, que tem trabalhado precisamente no sentido de ensinar os gestores dos CAMV’s a serem melhores líderes, “o conflito não nos trará benefício algum, muito pelo contrário. Desabafos como ‘No meu tempo trabalhava 20h horas seguidas e fazia-o com gosto’, ‘Eu nunca necessitei de uma lista para fazer o meu trabalho bem feito’ ou ‘Eu não tirei férias durante cinco anos’ são comuns. Mas perspetivar o futuro dos nossos negócios olhando para trás, com toda a certeza nos fará descarrilar. Acredito que teremos de repensar os nossos negócios encontrando soluções compromisso com esta nova geração. O meu trabalho no terreno com alguns destes jovens sustenta o que digo: primeiro estranha-se, depois entende-se e aprende-se a criar valor com tudo aquilo que eles têm para dar. Recorrendo à sabedoria popular ‘se não consegues vencê-los, junta-te a eles’.” De acordo com a médica veterinária, a geração do milénio quer que a sua função lhes seja vendida “de forma apelativa”, com detalhe acerca das tarefas, responsabilidades e requisitos da função. Quanto às questões motivacionais “são semelhantes” às de gerações anteriores.
Nova geração fala de “expetativas defraudadas”
“Ao contrário do que acontecia em gerações anteriores, os Millenialls querem subir rapidamente na carreira e vão querer saber se existe possibilidade de progressão, em primeiro lugar. Quando num novo desafio sentem que não vão poder evoluir a curto/médio prazo ponderam ir-se embora, mesmo não tendo outro porto seguro. Os seus vencimentos devem ser competitivos e deve haver um balanço justo entre o esforço realizado e a compensação recebida”, refere Elisabete Capitão. Além disso, estes jovens procuram sobretudo “oportunidades para aprender e desenvolver novas competências”, assim como um trabalho com “um propósito”, explica.
Manuel Raposo, com 22 anos, está no terceiro ano do curso de Medicina Veterinária da Universidade de Évora e acredita que, como ele, todos os estudantes “esperam, após cinco anos de ‘sacrifício’, ter uma carreira recompensadora, e o que é certo é que, com alguma frequência, vemos essas expectativas defraudadas”. Contudo, a adaptação a essa realidade deve ser feita pelos dois lados, defende. “Torna-se cada vez mais claro o choque de mentalidades entre quem começa a entrar no mercado de trabalho e quem já tem alguma bagagem de experiência nessas andanças. No entanto, tudo fica resumido a uma questão de adaptabilidade, que deve logicamente provir de ambas as partes. Os líderes de instituições empregadoras devem procurar conhecer a forma de pensar de quem se encontra presentemente disponível para entrar no mercado de trabalho e os Millennials devem ter em conta as metodologias de trabalho e ideais dos seus potenciais empregadores. Esta geração tem, felizmente, vindo a lutar bastante por aquilo que acredita ser o mínimo que lhes garante condições aceitáveis de trabalho e, com isso, condições para evoluírem enquanto profissionais. No fundo, a meta e o objetivo é singular: uma carreira recompensadora. Os estudantes são o futuro da classe e, como tal, acredito que os objetivos dos Millennials serão cumpridos: clínicas com turnos mais curtos, melhores remunerações, mais oportunidades de evolução na carreira (seja como clínico, investigador, docente, etc.), mais apoio em projetos /investigações de diversa índole, entre outros.”
Partilha intergeracional pode ser benéfica para o setor
Mónica Pais, médica veterinária de 33 anos a trabalhar numa clínica de pequenos animais em Moçambique acha que, na verdade, não existem grandes diferenças entre a geração do milénio e as anteriores. “Durante muito tempo trabalhamos imensas horas por dia, fazemos e fizemos sempre urgências sem remuneração extra, por isso não aceito que digam que somos preguiçosos e que não vestimos a camisola ou que não respeitamos a profissão. Obviamente que depois de alguns anos nas mesmas condições, todos nós exigimos um pouco mais de tempo para nós e um salário melhor, dado que a nossa profissão é mal paga. Os meus colegas que mudaram de área foi essencialmente porque precisavam de um pouco mais de descanso e de um salário melhor, porque somos humanos e as pessoas esquecem-se que precisamos de descanso físico e psíquico, dada a exigência do nosso dia-a-dia. E esquecem-se também que amor à profissão não paga as nossas contas! As novas empresas têm que se adaptar porque na realidade não exigimos nada absurdo…”. As exigências dos novos médicos veterinários, diz Mónica Pais, “vão obrigar as empresas a serem mais sensíveis, a melhorar os salários e os horários, e a longo prazo, com esquemas de turnos, por exemplo, mais pessoas terão emprego e as clínicas poderão oferecer um melhor serviço aos seus clientes.”
“Não acho que sejamos muito diferentes das gerações anteriores. Estamos apenas em tempos de vida e com anos de experiência diferentes. Alguns [dos profissionais das anteriores gerações] continuam a dedicar-se imenso à carreira e respeitam os colegas mais novos, passam conhecimento e apoiam, e outros provavelmente querem mais liberdade e então sobrecarregam os mais novos. Nós precisamos deles para aprendermos com a sua experiência de trabalho e de vida e eles também aprendem connosco porque a ciência evolui. Mas também acho que, às vezes, somos importantes para os relembrar que todos juntos somos melhores e mais fortes e que todos os funcionários têm uma atividade essencial. E embora se diga que ninguém é insubstituível, há profissionais que valem ouro e temos de os valorizar e preservar”, refere.
Teresa Carapinha também é da opinião de que a sua geração tem um contributo valioso a dar. “Esta geração, sendo mais tecnológica e estando mais desperta para as diferentes áreas da medicina veterinária, irá diversificar a oferta dos CAMV´s chegando de forma mais direta ao dono. Sendo também empreendedora, vai revolucionar o mercado aumentando a excelência dos serviços promovidos pelo CAMV, trabalhando mais e melhor o cliente, de forma a diferenciar-se dos demais, promovendo assim uma maior perceção de valor e um maior retorno.” E é para esse futuro que é preciso começar a olhar já hoje. Dentro em breve, os clientes dos CAMV’s serão digitais e isso irá representar um novo desafio para os gestores do setor da medicina veterinária. Desafio para o qual os Millennials já estão preparados e poderão representar uma importante força impulsionadora.
“A maioria dos nossos clientes serão digitais e, porque são digitais, as experiências que lhes são oferecidas também têm de ter um elemento digital. A constante evolução das suas experiências digitais faz com que as expectativas do cliente cresçam rapidamente, colocando sobre o negócio a responsabilidade de evoluir ao ritmo do cliente; e os negócios em veterinária não estão concebidos para esta rápida evolução digital. Quando questionamos os CAMV’s se têm colaboradores capazes de assegurar um leque de tarefas digitais, uma parte significativa responde que não”, revela Elisabete Capitão. “É necessário enriquecer os nossos negócios com novas competências para executar novas estratégias. Se queremos criar novas fontes de valor para os clientes e aumentar os níveis de satisfação dos mesmos, temos que promover o desenvolvimento das nossas pessoas e esta geração é talhada à medida. À parte desta estratégia de aproximação ao cliente, devem repensar-se os modelos de negócio, otimizando processos e modelos de comunicação, que muitas vezes são deixados à mercê do acaso. Esta geração, apesar de possuir um mindset globalizado e uma facilidade enorme para alguns tipos de aprendizagem, baseada essencialmente na vivência de experiências, grita por organização e definição de papéis e funções. Se ser um MacGyver sempre foi um orgulho para nós veterinários, estes novos colegas trazem com eles a oportunidade de profissionalizar os nossos negócios”, conclui Elisabete Capitão.