Um estudo elaborado pelo CDC, nos Estados Unidos da América, diz-nos que os Médicos Veterinários têm, em comparação com a população em geral, o dobro da prevalência de problemas psicológicos e probabilidade 1.8 vezes maior de sofrerem de episódios depressivos. Verificou-se também que 1 em cada 6 irá considerar cometer suicídio ao longo da sua carreira. No Reino Unido os resultados foram, em tudo, semelhantes, tendo os Médicos Veterinários uma probabilidade de cometer suicídio quatro vezes superior ao da restante população.
Comparativamente aos outros profissionais de saúde, esta percentagem é duas vezes maior. Analisando os resultados obtidos no Brasil chegamos à mesma conclusão, surgindo a Medicina Veterinária em primeiro lugar na lista de profissões com maior taxa de suicídio. Em Portugal ainda não foram publicados dados concretos, mas tudo indica que não existirão grandes diferenças.
Os fatores que nos levaram a este cenário são vários. No entanto, será seguro afirmar que estão intimamente relacionados com a prática da Medicina Veterinária e, consequentemente, com as características que lhe são inerentes. Estes poderão também ser extrapolados à Enfermagem Veterinária, embora apresentem algumas diferenças. No Reino Unido é comum dizer-se que a ‘esperança média de vida’ de um Enfermeiro Veterinário é de, aproximadamente, cinco anos. Ao fim deste período tendem a abandonar a área e decidem abraçar uma outra atividade profissional.
A natureza do trabalho que é desenvolvido diariamente num CAMV expõe os profissionais a um conjunto de stressors distintos que tendem a ter um efeito cumulativo, contribuindo assim para o desenvolvimento de problemas como a Ansiedade, Depressão, Burnout, Compassion Fatigue e Moral Distress. Apesar de alguns destes problemas apresentarem sintomas semelhantes entre si, não devem ser confundidos. Cada problema tem uma estratégia de prevenção e tratamento próprios.
Os problemas
O Burnout é uma síndrome amplamente conhecida por trabalhadores de todas as áreas, não sendo específica da área da saúde animal. É, no entanto, extremamente comum na classe veterinária. Traduz-se num estado de exaustão físico e mental, resultante do exercício da atividade profissional em condições que desencadeiam stresse intenso/crónico, sendo o trabalhador incapaz de o gerir eficazmente. Este stresse poderá advir do excesso de carga de trabalho, falta de controlo sobre o trabalho que se está a desenvolver, não ser reconhecido ou recompensado, deterioração da relação entre colegas e do ambiente de trabalho, tempo de descanso insuficiente, dificuldade em estabelecer um equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional, entre outros fatores.
Surge um sentimento de exaustão emocional, ocorre uma perda da autorrealização e desenvolve-se o cinismo e a perceção negativa do seu trabalho. No mundo da veterinária, o Burnout surge no médico veterinário que não tem oportunidade de fazer uma pausa para almoço, dia após dia, pois tem a sala de espera cheia; surge no médico veterinário que é responsável por realizar consultas, cirurgias, preparar orçamentos e lidar com questões financeiras, educar os tutores, diagnosticar os pacientes e estabelecer um plano terapêutico adequado, elaborar relatórios médico-veterinários e realizar ecografias mas que, no fim do mês, recebe pouco mais de 800€. Surge também no médico veterinário que vê a sua opinião profissional ser questionada por colegas ou pela gerência, numa base quase diária. Estes são apenas alguns exemplos, sendo muito mais comuns do que seria desejável.
O primeiro estadio do Burnout é, na maioria das vezes, reforçado e encorajado no mundo da Veterinária: o profissional sente necessidade de provar o seu valor, de mostrar que é capaz de fazer mais e melhor: lembre-se daquele colega que trabalha sempre além da sua hora de saída, que evita fazer pausas durante o dia e que leva o trabalho para casa; é perfeccionista, exigente consigo próprio e incapaz de se perdoar quando erra. Durante os 12 estadios seguintes, os sintomas incluem isolamento e afastamento social, insónias, cefaleias e enxaquecas, fadiga, transtornos gastrointestinais, perdas de memória, hipertensão, taquicardia, evitamento de conflitos, episódios depressivos, tristeza, cinismo, irritabilidade e frieza.
Compassion Fatigue
A Compassion Fatigue, por sua vez, é característica de profissões de prestação de cuidados. É uma das principais causas de mal-estar emocional e mental na classe veterinária, sendo bastante distinta do Burnout. As definições variam, porém, a Compassion Fatigue é considerada, por alguns autores, como uma forma de Stresse Pós-Traumático Secundário. Traduz-se numa forma de stresse emocional, provocada pela exposição contínua e repetida a situações de trauma e sofrimento vividas por outros.
No caso da Medicina Veterinária, a Compassion Fatigue surge quando o profissional é exposto, numa base diária, a pacientes negligenciados, em sofrimento ou com patologias severas, o que requer uma demonstração de compaixão e empatia pelos mesmos. Com a exposição repetida a este tipo de situações começa a desenvolver-se uma incapacidade emocional de o fazer, caso não existam estratégias de gestão emocional eficazes. Por outras palavras, o profissional torna-se ‘frio’, criando uma ‘carapaça protetora’ à sua volta. Começam a surgir sentimentos de culpabilização em que o médico ou o enfermeiro veterinário se questiona por que motivo “já não sente nada.” O trabalho é feito de forma automática, como que robotizada, existindo algum nível de dormência emocional.
A Compassion Fatigue surge no médico veterinário quando o tutor do seu paciente o acusa de só estar interessado no dinheiro; surge no enfermeiro veterinário quando, após acompanhar a eutanásia de um paciente que lhe era querido, não lhe é permitido estar triste ou lidar com as suas emoções; surge no ,médico veterinário quando se vê forçado a eutanasiar um animal cuja patologia era passível de ser tratada; surge no enfermeiro veterinário quando o paciente ao seu cuidado é vítima de maus-tratos e negligência.
Em relação aos sintomas, a Compassion Fatigue provoca apatia, diminuição da capacidade de concentração e de tomada de decisões, diminuição da autoestima, sentimentos de desamparo, tristeza, depressão, insónias ou ocorrência de pesadelos, cinismo, hipersensibilidade ou insensibilidade emocional, irritabilidade, mudanças bruscas de humor, sentimentos de culpa, ansiedade, alterações no apetite, isolamento, abuso de substâncias, frustração, diminuição dos padrões éticos e morais, diminuição do sentimento de competência profissional, diminuição do gosto pelo trabalho desenvolvido, assim como sintomas físicos semelhantes aos descritos no Burnout.
Moral Distress
Já o Moral Distress surge quando as ações do enfermeiro ou do médico veterinário estão em desacordo com os seus padrões éticos e com aquilo que o profissional acredita ser o correto. O médico veterinário sabe quais as decisões que deve tomar e quais as ações que deve pôr em prática, mas, na realidade, é incapaz de o fazer. As razões para esta incapacidade são muitas e vão desde constrangimentos financeiros, ausência de recursos humanos ou materiais, regulamentos internos do CAMV, ausência de formação ou formação insuficiente, impedimento ou proibição por parte da gerência.
O Moral Distress tende a desenvolver-se quando o médico veterinário se depara com uma emergência, mas não dispõe do equipamento necessário para lidar com ela de forma adequada, acabando o paciente por morrer; quando o enfermeiro veterinário se vê forçado a realizar um procedimento que considera desnecessário, num paciente agressivo, causando-lhe stresse e, consequentemente, piorando o seu comportamento; quando o médico veterinário se vê impedido de prestar os cuidados necessários a um determinado paciente, devido à incapacidade financeira dos tutores. Os sintomas do Moral Distress são muito semelhantes aos descritos nos problemas anteriores.
A área da saúde animal tende a atrair profissionais que procuram a excelência: pessoas perfeccionistas, trabalhadoras, exigentes consigo próprias; pessoas que demonstram uma paixão intensa pela profissão que escolheram, por vezes raiando a obsessão. Além destas características, os profissionais da área da saúde animal tendem a não aplicar em si mesmos aquilo que tão apaixonadamente fazem com os seus pacientes. Quer o Burnout, a Compassion Fatigue, quer o Moral Distress são passíveis de prevenção, se o médico ou enfermeiro veterinário cuidar do seu próprio bem-estar físico, mental e emocional.
As estratégias de prevenção
As noções e estratégias de self-care devem ser implementadas ainda enquanto o profissional se encontra a estudar. É imperativo que comecem a ser abordadas as questões da saúde mental dos profissionais da saúde animal ao longo do percurso académico dos estudantes. Como? Incluindo o tema no plano de estudos, promovendo ações de formação independentes, convidando os alunos a participar em palestras ou eventos formativos que abordem esta temática.
Já no mercado de trabalho, o médico ou enfermeiro veterinário deve procurar cuidar do seu bem-estar, de forma ativa. Eis algumas sugestões: Ter a oportunidade de ter uma hora de pausa para almoçar e fazê-lo fora das instalações do CAMV, se possível. Fazer pausas de 5 a 10 minutos, ao longo do dia, de 3 em 3 horas, para comer e beber água. Em dia de folga evitar pensar no trabalho, ou seja, desligar! Tentar ter um hobby ou alguma atividade fora do trabalho, que não envolva animais. Dormir! Ir ao médico, quando necessário. Ir ao cinema com os amigos. Acreditar na qualidade do trabalho que se faz. Elogiar o trabalho do colega, especialmente se este estiver a ter um dia difícil. Perguntar ao colega se precisa de alguma coisa, quando algo não está bem. Conversar. Pedir ajuda, quando necessária. Pedir ajuda.
Mente Sã, Vet São
Os problemas de saúde mental na Medicina Veterinária devem ser discutidos. Não deve ser um assunto “tabu”. Por este motivo foi criado o “Mente Sã, Vet São”, em parceria com o Centro para o Conhecimento Animal. Um projeto de apoio aos profissionais que estejam a passar por Burnout, por Compassion Fatigue ou por algum problema relacionado com a prática clínica, em primeira mão. Um projeto de partilha, de discussão, de divulgação e de desmistificação; poderão encontrá-lo no Facebook.