«Falamos de insuficiência renal quando existe lesão significativa no tecido renal para provocar falha no funcionamento dos rins», diz Diogo Magno, médico veterinário do Hospital Veterinário do Restelo.
De acordo com este especialista, «é quase do conhecimento comum que um cão ou um gato podem viver bem e livre de sintomas de insuficiência renal só com um rim», daí que quando há falha renal, «existe patologia nos dois órgãos».
A insuficiência renal pode ser classificada de duas maneiras: aguda (IRA) ou crónica (IRC). A IRA é caracterizada «por uma falha renal súbita que conduz a alterações rápidas da bioquímica sanguínea e do equilíbrio electrolítico, afectando por tabela todos os sistemas do organismo», explica o MV. Nesta situação, «a lesão renal pode ser provocada por toxinas, diminuição do aporte vascular renal, hipoxia renal, infecções ou quadros obstrutivos (obstruções por cálculos a nível dos ureteres ou da uretra, ruptura de bexiga traumática)». Dentro das causas infecciosas, Diogo Magno salienta «a leptospirose, uma perigosa zoonose, que provoca doença clínica em cães, mas é rara em gatos».
Já a IRC, «ocorre de modo insidioso e a lesão renal pode progredir lentamente». Segundo o médico veterinário do Hospital Veterinário do Restelo, dentro das causas mais frequentes destacam-se «a fibrose renal, amiloidose, lipididose renal, doenças infecciosas, intoxicações, lesões isquémicas, hipoxia tecidular». O especialista alerta ainda que patologias como «a leishmaniose e a erliquiose canina devem ser sempre despistadas em pacientes insuficientes renais crónicos, dada a grande incidência destas doenças no nosso país».
Saber diagnosticar
A manifestação das insuficiências renais agudas e crónicas são diferentes. Em pacientes com IRA «os sinais surgem subitamente e normalmente com maior gravidade, enquanto nas IRC podem ser muito ténues», refere Diogo Magno, acrescentando que «é de suspeitar de IRA em todos os pacientes com vómitos, diarreia, desidratação súbita e prostração». Já os animais com IRC podem apresentar “apenas” «perda de peso, vómito intermitente, poliúria e polidipsia, anemia e hipertensão. Estes são os sintomas mais frequentes e que motivam a consulta».
Depois, o médico veterinário também poderá aperceber-se que está perante uma insuficiência renal quando observa algumas alterações em análises clínicas e noutros exames.
Quanto à urianálise, deve incluir «a) Urina tipo II – muito importante avaliar densidade urinária, proteinúria, sinais de infecção urinária, glucosúria, etc… os cães em estádio I (não azotémicos) podem apresentar densidade urinária baixa e proteinúria; b) Rácio P/C na urina – importante quando não existem sinais de inflamação ou hemorragias do tracto urinário inferior. Deve ser sempre realizado em cães suspeitos de IR: três colheitas em pelo menos duas semanas, para fazer o rácio; c) Cultura urinária – recomendada em todos os pacientes com IRC de urina colhida por cistocentese. Em suspeita de pielonefrite deve ponderar-se colheita da pelve renal», explica Diogo Magno.
Mas não é só a urina que deve ser examinada, a análise hematológica também é fundamental para o diagnóstico e deve incluir um «hemograma completo com contagem de reticulócitos; bioquímicas (BUN, cratinina, fósforo cálcio, albumina, proteína total); e titulações de doenças infecto-contagiosas – mandatório principalmente em cães».
Porém há outro aspecto no diagnóstico da doença renal que não deve ser descurado, o exame imagiológico é uma ferramenta ao dispor do médico veterinário. E neste campo, Diogo Magno aconselha «ecografia abdominal – sinais de fibrose, atrofia, inflamação, cálculos, neoplasias, hidronefrose, etc – e raios X , que pode ser útil, mas menos específico que a ecografia».
Todavia, o profissional refere ainda que «a citologia e/ou a biopsia renal devem ser ponderadas sempre que haja razões acrescidas para o fazer e quando se pensa que os resultados poderão trazer algo de novo em termos de tratamento (por exemplo, rins estruturalmente muito alterados, suspeitos de patologia neoplásica)».
Outra questão que salienta é que os «pacientes com IRA ou com quadros de agudização de IRC devem ser hospitalizados em cuidado intensivo, dada a gravidade da situação». Os princípios terapêuticos são na sua essência «sintomáticos», pois visam «controlar os sintomas e as alterações metabólicas induzidas pelo mau funcionamento renal de modo a estabilizar o paciente e manter o seu bem-estar», conclui o médico veterinário.
Detectar precocemente
Para Diogo Magno, o futuro tem como base «a prevenção e o rastreio». Neste sentido, diz que, «como médicos veterinários, devemos aconselhar desde a primeira consulta, de modo a sensibilizar os donos para a necessidade de actuar com vista a prevenir».
Por isso, aconselha algumas medidas que devem ser adoptadas como essenciais: «o rastreio através de exames de rotina em animais em princípio de idade geriátrica, rastreio mais frequente de doenças infecto-contagiosas, aconselhamento dietético apropriado, controlo de patologias renais em raças predispostas (por exemplo, doença poliquística em gatos), bom aconselhamento de higiene oral, rastreios de função cardiovascular em raças predispostas e em todos os animais geriátricos».
Afinal, «o tratamento é sempre mais efectivo quando a patologia é detectada precocemente». Existem algumas ferramentas de tratamento como «a diálise peritoneal, a hemodiálise e o transplante renal que fogem à ordem comum de tratamento na maior parte dos centros veterinários no nosso país», revela o médico veterinário.
A diálise peritoneal «é útil em pacientes urémicos e sem resposta à fluidoterapia convencional, sendo, contudo, uma técnica morosa e implica internamento», esclarece.
A hemodiálise apresenta particular importância em IRA, segundo este especialista, e em pacientes com IRC «com perspectiva a um eventual transplante renal ou para diminuir valores de urémia para depois tentar mantê-los estáveis com terapêutica em ambulatório». No entanto, há um senão, visto que é «altamente dispendiosa para ser suportado por investimentos privados e existem poucos centros de hemodiálise na Europa».
O transplante renal apresenta aplicações práticas principalmente «em gatos, nos quais a taxa de rejeição do órgão transplantado é aceitável. Nos cães, a taxa de rejeição é altíssima e esta opção não é válida». Porém, Diogo Magno salienta que «há uma implicação moral, pois implica o “sacrifício” cirúrgico de um gato saudável para remoção do rim dador».
O caso específico do gato
Os sintomas típicos da doença renal crónica «não são muito específicos», diz Cláudio Mendão, médico veterinário responsável pela Linha Animais de Companhia da Divisão Saúde Animal da Bayer Portugal. Incluem «perda de peso e de apetite, aumento no consumo de água, sonolência, inactividade e, por vezes, vómitos resultantes da acidose e da acumulação de toxinas no sangue, que são normalmente eliminadas pelos rins». O especialista realça ainda que «quando se tornam evidentes é já numa fase muito avançada da doença, em que aproximadamente 80% a 85% da função renal já se encontra perdida, podendo levar ao adoecimento repentino e muito grave dos gatos».
A doença renal crónica «não tem cura», menciona, sendo, por isso, da opinião que «o único objectivo terapêutico realista a ter como alvo é o de retardar a progressão da doença e de tentar melhorar a qualidade de vida do animal».
O tratamento de manutenção passa, pois, «por manter o animal hidratado e diminuir a carga de toxinas nos rins. Com acompanhamento adequado, muitos gatos podem viver uma vida relativamente longa com esta doença», revela.
Entre as principais opções terapêuticas disponíveis encontram-se «dietas restritivas baseadas na diminuição do aporte de fosfato; terapia fluída para minimizar a desidratação causada pela perda excessiva de água pelos rins; Inibidores ACE (Angiotensin Converting Enzyme inhibitors) que ajudam a alargar os vasos sanguíneos diminuindo a pressão renal sanguínea e a administração de eritropoietina recombinante humana, para reduzir os níveis de anemia».
Além disso, Cláudio Mendão refere que «os quelantes de fósforo provaram ser uma solução de grande eficácia no retardamento da progressão da doença», explicando que «os quelantes ligam-se ao fósforo da dieta ingerido no tracto gastrointestinal, impedindo a sua absorção para a corrente sanguínea, facto que reduz também a carga a ser eliminada pelos rins. O controlo do fósforo absorvido faz parte essencial da monitorização da doença, pois a retenção de fosfato (hiperfosfatemia) induz ao hiperparatiroidismo (produção excessiva da hormona da paratiróide, a paratohormona que regula os níveis de cálcio e fósforo no sangue)».
Adicionalmente, podem ser recomendados outros tratamentos para controlo de sintomas, tais como «antieméticos, antihipertensivos, antibióticos ou estimulantes do apetite», assegurou.
Neoplasia renal
De acordo com Ana Perdigão, do Hospital Veterinário do Seixal, a neoplasia renal «corresponde a um tumor maligno do rim, que pode ser primário, isto é as células malignas originam-se a partir de células renais; ou pode ser secundário, quando a neoplasia renal resulta de uma metástase de um tumor primário localizado noutro órgão».
As causas das neoplasias não são «muito directas», já que «há vários agentes que se sabe serem carcinogénicos (como o tabaco, os ultravioletas, alguns compostos químicos e mesmo medicamentos). Não obstante, na maioria dos casos não é possível fazer uma relação directa entre um agente concreto e o tumor em causa, que aparece num dado indivíduo», alerta a médica veterinária.
São vários os sintomas apresentados pelos animais, porém dependem «da evolução da neoplasia, da sua agressividade, capacidade de invasão local e da presença ou não de metástases». De qualquer modo, é frequente «o emagrecimento, a falta de apetite e a prostração. Pode ainda haver «dor abdominal e algum grau de insuficiência renal», esclarece a profissional.
Quando questionada, acerca da utilização de um tratamento coadjuvante à quimioterapia, Ana Perdigão responde que «se não houver metástases e a lesão for unilateral pode estar indicada a remoção cirúrgica do rim afectado. Se houver insuficiência renal grave pode ser necessário diálise».
Princípios terapêuticos
É importante tentar descortinar possíveis etiologias, já que poderá ser extremamente difícil controlar pacientes com insuficiência renal (IR) caso não se controle a patologia inicial, diz Diogo Magno, que descreve os principais princípios terapêuticos que se devem sempre seguir em pacientes com IR:
– Descontinuar todas as drogas potencialmente nefrotóxicas.
– Monitorizar produção urinária em pacientes em que há suspeita de oligúria/anúria.
– Em pacientes anúricos é urgente repor a produção urinária. Recorre-se a medicamentos diuréticos como a furosemida, manitol ou dopamina.
– Avaliar desidratação e corrigi-la. Em pacientes desidratados, corrigir desidratação com fluidos intravenosos e deve escolher-se os fluidos de acordo com ionograma.
– Controlar vómitos e restabelecer a alimentação per os o mais rapidamente possível.
– Controlar a pressão arterial recorrendo a IECAS e/ou bloqueadores dos canais de cálcio.
– Contrariar proteinúria – procurar sempre doenças concorrentes em caso de proteinúria (leishmania, erlichia, leptospirose). Devem usar-se dietas pobres em proteína mas se for um paciente em estádio 1 (não proteinúrico) não usar dietas criticamente baixas em proteína (k/d ou renal) mas sim uma dieta sénior de qualidade. Em pacientes com hipoalbuminémia complementar alimentação com albumina (1 a 3 claras de ovo cozidas por cada 10 Kg, por dia, aproximadamente). Ácido acetilsalicilico em doses baixas pode ser benéfico para reduzir inflamação glomerular (0,05 a 0,5 mg/Kg/dia).
– Se existe vómito e anorexia, controlar pressão oncótica recorrendo a transfusão de plasma ou administração de colóides.
– Em pacientes anémicos não há indicação “primária” para transfusão sanguínea. Ponderar administração de EPO em pacientes com sintomatologia de anemia clínica. Avaliar anemia em pacientes hidratados.
– Controlo do fósforo – pacientes em estádio 2 usar sempre dietas pobres em fósforo e em proteína. Caso o fósforo se encontre aumentado, adicionar quelantes do fósforo tais como hidróxido de alumínio na dose de 30 a 60 mg/kg/dia dividido em 3 a 4 vezes por dia e adicionado à alimentação e entre as refeições.
– Eritropoietina – melhor efeito em cães do que em gatos; pode induzir anafilaxia; a produção de anti-corpos anti-EPO pelos pacientes pode torná-los refractários ao tratamento e ter efeito “tabela” – ficam mais anémicos conforme o tratamento falha.
– Acidose metabólica – adicionar bicarbonato oral ou citrato de potássio até efeito para manter o bicarbonato /tCO2 entre 18 e 24 mmol/l.
– Avaliar função cardíaca sempre que possível e tentar equilibrá-la.
– O uso de antibióticos deve visar um propósito terapêutico, sendo no entanto prudente em pacientes sob fluidos intravenosos hospitalizados.
– Evitar todas as possíveis causas de agudização do paciente renal crónico – infecções, consumo inapropriado de alimentos, descompensação cardíaca, desidratação.
– Fluidos subcutâneos – usados para manter pacientes hidratados e não para hidratar. Quantidade pode variar entre 100 a 400 ml cada 24 horas de acordo com peso do animal e necessidades.
– Esteróides anabolizantes – efeito nefrotóxico; não há publicações que suportem efeito benéfico.
– Suplementação com ómega 3 – efeito renoprotector suportado por alguns estudos enquanto outros como o ómega 6 e ácidos gordos saturados aceleram o declínio da função renal.