VETERINÁRIA ACTUAL – Como descreveria a Sociedade Portuguesa de Recursos Genéticos Animais (SPREGA)?
Luís Telo da Gama – A SPREGA é um fórum científico que congrega os técnicos e cientistas que trabalham em matérias relacionadas com a caracterização, conservação e utilização dos recursos genéticos animais. Estamos a falar de pessoas que, de uma forma ou outra, estão ligadas à gestão e ao melhoramento de raças autóctones.
– Quais são os objectivos da SPREGA?
– Essencialmente passam por divulgar e dar a conhecer o trabalho que é realizado em Portugal pelas diferentes instituições que trabalham nesta temática.
O funcionamento da SPREGA está intimamente relacionado com o da sua congénere espanhola. A cada dois anos realizamos um congresso ibérico que decorre alternadamente nos dois países. Este ano decorrerá em Lisboa, em Setembro.
– Qual o número de sócios?
– Nos congressos costumamos reunir, entre portugueses e espanhóis, cerca de duzentas a trezentas pessoas.
– E que temas são tratados nestes congressos?
– Fundamentalmente, tudo o que está relacionado com as raças autóctones, nomeadamente a sua caracterização, conservação e melhoramento genético, assim como as envolventes produtiva e humana dos produtos certificados.
– As problemáticas portuguesas e espanholas são semelhantes?
– De um modo geral, sim, daí esta colaboração estreita. A grande riqueza da Europa em recursos genéticos animais, bem como o maior número de raças autóctones, está nos países da bacia do Mediterrâneo. Portanto, é um problema comum a vários países, mas Portugal não tem o mesmo peso político de outras nações da Europa do Norte, daí que esta conjugação de esforços com Espanha se traduza em acordos ibéricos benéficos durante as negociações a nível internacional, nomeadamente na UE.
– De que forma é financiada a SPREGA?
– Através do pagamento de quotas dos sócios e das inscrições nos congressos. Porém, os nossos custos de funcionamento são reduzidos, já que se limitam à realização dos congressos e à actualização da página na Internet, onde temos informações sobre as raças nacionais. Recebemos muitos pedidos de fotografias ou de informação sobre raças autóctones, que encaminhamos para essa página, que contém a informação resumida.
No capítulo dos financiamentos, contamos ainda com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia na realização dos congressos, o que nos permite trazer alguns convidados estrangeiros cujos custos de deslocação são sempre mais elevados. Pontualmente, tivemos o apoio da Direcção-Geral de Veterinária para a elaboração de um projecto de caracterização de raças bovinas.
– Além deste projecto, possuem mais algum em preparação?
– Não é essa a função principal da SPREGA. Somos um fórum de discussão que pretende congregar informação, dos diversos intervenientes no sector que possuem “linguagens” diferentes. O que pretendemos é ser um elo de informação entre os diferentes níveis de intervenção, desde os técnicos aplicados aos investigadores, numa perspectiva comum de utilização do património genético rico que possuímos.
– Porquê a aposta na divulgação de informação apenas na internet?
– Poderíamos ter outro veículo de divulgação em papel, mas penso que este se desactualiza muito rapidamente e é muito mais fácil e eficaz disponibilizar a informação na Internet. O site foi criado em 2005 e, periodicamente, chegam pedidos de informação complementares à que lá consta, o que revela que há uma procura alargada.
O utilizador pode aceder a informação e a algumas publicações científicas sobre as diferentes espécies e raças animais, o que permite a divulgação de muitas delas que são pouco conhecidas. Não pretendemos ultrapassar as instituições de investigação, mas sim quebrar essa barreira de ligação entre os diversos intervenientes neste sector, tentando chegar ao último e aquele que consideramos mais interessado: o criador.
– Quais as raças que podemos caracterizar como puramente nacionais?
– No total são 46 raças autóctones reconhecidas, das quais 15 são de bovinos, três de suínos, quatro de equídeos, 15 de ovinos, cinco de caprinos e quatro de aves. São animais característicos e únicos do nosso país.
– Pode fazer uma pequena caracterização da sua utilização e distribuição no país?
– No caso dos bovinos, o número de animais produtores de leite tem vindo a decrescer, enquanto que as vacas produtoras de carne têm vindo a aumentar. Isto não significa que se produza menos leite, mas sim que cada vaca produz mais. Há vinte e cinco anos, uma vaca média produzia cerca de quatro mil litros de leite e hoje em dia produz oito mil, fruto de melhoramento genético, mas também de avanços no maneio, na alimentação e na sanidade.
No Norte e Centro do país tem havido algum decréscimo no número de bovinos leiteiros, enquanto que nos Açores estes têm vindo a aumentar.
– Isso é um sinal positivo ou negativo?
– Não é mau sinal. É indicador de que as pequenas explorações que existiam no Norte, com duas a quatro vacas e que não eram economicamente viáveis, foram desaparecendo. Hoje em dia, as explorações que restam são mais dimensionadas.
– Continuando a caracterização das raças…
– A maioria das raças bovinas era, até meados do séc. XX, utilizada sobretudo para trabalho agrícola e actualmente utiliza-se mais para produção de carne.
O nosso país, apesar de ser pequeno, possui uma diversidade enorme de sistemas de exploração e, em consequência, de raças adaptadas a condições locais muito específicas. Enquanto no Norte a maioria das explorações tem menos de cinco vacas, no Sul a exploração média tem mais de cinquenta vacas, devido à dimensão da propriedade e a especificidades da região. Isto cria algumas particularidades, por exemplo, nas pequenas explorações, raramente o produtor tem um touro, existindo um touro na aldeia que cobre as vacas da região. Já no Sul, os produtores têm, em muitos casos, até mais do que um touro. Assim, no que se refere à selecção dos animais, existem diferenças muito acentuadas entre, por exemplo, as raças do Norte e do Sul de Portugal.
Há também variações no que concerne à idade de abate, já que no Norte tradicionalmente os animais são abatidos como vitelos ao desmame (cerca dos seis ou sete meses de idade), enquanto no Sul são abatidos já como novilhos, com ano e meio a dois anos.
Devo ainda referir que, no caso dos bovinos de carne, apenas 20% do efectivo nacional corresponde a animais registados das 15 raças autóctones reconhecidas, pelo que a maioria do efectivo pertence a animais cruzados ou não registados.
– Passando para os suínos…
– Neste caso a produção tem-se mantido estável, sendo predominantemente obtida à custa de raças exóticas exploradas intensivamente. Em Portugal, existem três raças autóctones reconhecidas (Alentejano, Bísaro e Malhado de Alcobaça), mas que estão em risco de extinção. Após a peste suína africana, que dizimou muitas destas populações nos anos 50 e 60, observou-se uma intensificação dos sistemas de exploração, nos quais as raças autóctones são menos competitivas. Contudo, nos últimos anos tem havido um interesse crescente pela exploração de suínos de raças autóctones em sistemas extensivos, com uma notável valorização dos seus produtos.
– E no caso dos caprinos e dos ovinos?
– A população de caprinos tem vindo a decrescer substancialmente ao longo dos últimos anos, em boa parte devido a dificuldades de mão-de-obra. Tradicionalmente estes animais são essencialmente mantidos na zona de floresta e mato e, não havendo cabras a usar essas zonas florestais, estas ficam ao abandono, criando áreas propensas aos incêndios no Verão.
Das raças de cabras autóctones, a que possui maior número de animais registados é a Serrana, com bastante incidência no Norte do país.
Já no caso dos ovinos, a população tem-se mantido estável. Portugal tem três grandes grupos de ovelhas, nomeadamente o grupo Churro, de lã comprida e grosseira; o grupo Merino, de lã curta e fina; e o grupo Bordaleiro, que possui uma lã mais intermédia.
– Por último, temos os equídeos e as aves.
– Em Portugal existem três raças autóctones de equinos – o Lusitano, o Garrano e o Sorraia – e uma asinina – o Burro de Miranda.
Entre as aves, possuímos quatro raças diferentes, três de galinhas – a Preta Lusitânica, a Pedrês Portuguesa, a Amarela – e o Perú Preto.
– Alguma destas raças está em risco de extinção?
– Sim, a maioria delas está ameaçada de extinção, ainda que a situação talvez já tenha sido mais crítica há alguns anos, antes de terem sido tomadas medidas de apoio a raças ameaçadas.
No caso dos bovinos, doze das raças autóctones são consideradas em risco de extinção, nomeadamente as raças Barrosã, Cachena, Minhota, Maronesa, Mirandesa, Arouquesa, Marinhoa, Garvonesa, Preta, Ramo Grande, Algarvia e Jarmelista.
Nos suínos, as três raças autóctones têm menos de 15 mil fêmeas, o que lhes confere o estatuto de em vias de extinção. São elas a Bísara, a Alentejana e o Malhado de Alcobaça.
Já nos caprinos, das cinco raças autóctones, quatro estão em risco de extinção. As que possuem menos de dez mil fêmeas registadas são a Algarvia, a Bravia, a Charnequeira e a Serpentina.
Também nos ovinos a situação não é melhor, com doze entre as quinze raças em risco, pois têm menos de dez mil fêmeas registadas. São elas a Bordaleira de Entre Douro Minho, a Campaniça, e a Saloia, as Churras Algarvia, do Campo, do Minho, Badana, Mondegueira Galega Mirandesa, Galega Bragançana, e as Merinas da Beira Baixa e Preta, .
– A SPREGA tem um papel activo para evitar a extinção destas raças?
– Há apoios da União Europeia para criadores das raças em vias de extinção, de acordo com as normas que assim as classificam.
O que a SPREGA faz é tentar dar apoio técnico às entidades decisoras, para que estas negoceiem esses princípios nos organismos internacionais, nomeadamente na União Europeia. Alertamos para a necessidade de não olhar só para o número de animais num determinado momento, mas perceber qual tem sido a evolução em retrospectiva, e sobretudo considerar outros factores de risco para além do número de animais em produção. Por exemplo, o limiar crítico não é o mesmo para as várias espécies, deve ter-se em conta o valor genético e cultural das raças, o número de explorações existentes, etc…
A SPREGA tem aqui um papel importante, além de ter a vantagem de contar com a presença dos colegas espanhóis nestas reuniões, o que permite discutir uma base ibérica comum de negociação.
– Não existe uma “arca de Noé” para salvar esses animais?
– Não é a SPREGA que realiza esse trabalho, já que é apenas uma sociedade científica sem fins lucrativos. O que faz é incentivar e apoiar as entidades responsáveis no sentido de estas tomarem as atitudes necessárias à preservação destes animais. Neste sentido, uma estratégia fundamental é manter as raças in vivo tanto quanto possível, com apoios aos criadores das que se encontram em risco, reconhecendo a importância desses animais em termos de manutenção da biodiversidade, sustentabilidade ambiental e base estrutural dos de produtos certificados com denominação de origem. Uma outra possibilidade de garantir a conservação de Recursos Genéticos é a preservação in vitro de sémen, embriões e ADN de animais representativos das diferentes raças. Essa tem sido uma função de várias entidades do Ministério da Agricultura, nomeadamente em projectos conjuntos levados a cabo pela Direcção-Geral de Veterinária e a Estação Zootécnica Nacional, com a participação de outras entidades.
Actualmente, já existe um banco de germoplasma, abrangendo todas as raças nacionais, excepto as suínas, já que estas possuem algumas particularidades que não têm sido fáceis de ultrapassar.
– Como se gere esta dualidade do interesse científico por parte dos cientistas com a preocupação com a produtividade do produtor, no caso destas raças autóctones menos produtivas?
– Normalmente as pessoas têm as explorações agrícolas para seu sustento e essas raças, em determinado tipo de situações, poderão não ser competitivas. No entanto, há alguns produtos certificados resultantes da produção desses animais que podem ter uma valorização extraordinária. É, assim, pela qualidade e valorização dos produtos que se pode conseguir que os produtores continuem a contribuir para a preservação destas raças ameaçadas. Contudo, nem sempre isso é possível, pelo que o criador que esteja na disposição de manter uma raça ameaçada de extinção deverá ser compensando pelo menor rendimento que daí resulta, pois ele estará a ser o guardião de um património único que nos foi legado pelos nossos antepassados e temos a obrigação de transmitir às gerações futuras.
Declaração de Interlaken
Na primeira semana de Setembro de 2007, teve lugar em Interlaken, Suíça, a Conferência Técnica Internacional sobre Recursos Genéticos Animais, sob os auspícios da Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) e com o apoio do Governo da Suíça.
Nesta Conferência, foi apresentado pela FAO o Relatório Mundial sobre o Estado dos Recursos Genéticos Animais, que resulta da compilação dos diferentes relatórios nacionais e sintetiza a situação a nível mundial e que será um dos principais temas do próximo congresso da SPREGA.
No entanto, a parte crucial desta Conferência foi a discussão e aprovação, por todos os países, do Plano Global de Acção para os Recursos Genéticos Animais e da Declaração de Interlaken sobre estas matérias.
Resumidamente, o Plano Global de Acção aborda os pontos considerados fundamentais para a caracterização, conservação e utilização sustentável dos recursos genéticos animais e assenta num conjunto de Áreas Estratégicas Prioritárias, organizadas em quatro grandes temas: caracterização, inventário e monitorização de tendências e riscos associados; utilização e desenvolvimento sustentável; conservação; políticas, instituições e melhoria da capacidade.
Além disso, na Declaração de Interlaken, os países representados reconhecem a soberania nacional sobre os respectivos recursos genéticos animais, manifestam a sua preocupação quanto à erosão observada a nível mundial, assumem o compromisso de trabalhar no sentido de ser conseguido o uso sustentável, desenvolvimento e conservação desses mesmos recursos, e adoptam o Plano Global de Acção como base estrutural das políticas nacionais e internacionais visando a sua conservação e uso sustentável.