Corrigir ou devolver a visão a animais de companhia, selvagens ou de grande porte é a missão que une os veterinários que escolheram a Oftalmologia como área de atuação. Falámos com alguns profissionais, que nos revelaram as patologias mais frequentes, bem como a aposta nos tratamentos químico-genéticos, que podem corrigir defeitos existentes e até mesmo devolver a visão a animais que já a tenham perdido.
Diversificada, complexa e ao mesmo tempo abrangente. O que torna a oftalmologia interessante pode representar um desafio para quem a exerce. “A oftalmologia veterinária aplica-se a qualquer espécie. No mesmo dia posso começar por examinar um cavalo, cães, gatos, animais exóticos e acabar no jardim zoológico a ver leões-marinhos. No entanto as patologias oculares, o tratamento e o prognóstico são muito diferentes. Ainda há pouca evidência científica sobre determinadas espécies, o que se torna um desafio quando temos que lidar clinicamente com elas”, aponta Cristina Seruca, médica veterinária, especialista europeia em oftalmologia veterinária, Diplomada pelo European College of Veterinary Ophthalmologists. Os avanços médicos e científicos dos últimos anos têm permitido dar uma resposta cada vez mais eficaz às situações clínicas e, em especial, a genética revela-se muito promissora neste campo.
Problemas mais comuns
Na prática clínica em oftalmologia, a lista de casos mais recorrentes inclui “as patologias que dizem respeito às pálpebras – entropion e distiquíases – as conjuntivites com diversas causas, lesões da córnea e cataratas”, enumera Pedro Cunha da Silva, médico veterinário na Clínica de Serralves/ Centro de Oftalmologia Veterinária do Porto. No que toca a patologias oculares existem diferenças entre as principais espécies de animais de companhia – gatos e cães – continua: “Nos gatos predominam as doenças inflamatórias e infeciosas da córnea e conjuntiva, enquanto nos cães diagnosticamos mais entropions e cataratas. As taxas de sucesso são idênticas nas duas espécies.”
Na perspetiva de Cristina Seruca, depende da espécie. “No caso dos cães, as patologias associadas à raça são as mais comuns. Em muitos destes casos já se descobriu a mutação genética responsável pela doença e noutros há fortes indícios de uma base genética, apesar de ainda não se ter determinado a mutação específica. Exemplos destas patologias que requerem tratamento cirúrgico em cães são as anomalias palpebrais anatómicas, como o entropion e euriblefaro, e as degenerativas, como as cataratas. Dentro das que requerem tratamento médico, a queratoconjuntivite seca autoimune é das mais frequentes. No caso dos gatos, a queratoconjuntivite herpética é das mais comuns e isto deve-se ao fato do herpesvirus felino-1 ter uma incidência muito elevada nas populações de gatos. A doença ocular mais comum nos cavalos é a úlcera de córnea de origem traumática, que muitas vezes se complica com infeções bacterianas e fúngicas. Os olhos relativamente grandes e proeminentes, associado aos característicos movimentos bruscos da cabeça, tornam os cavalos especialmente suscetíveis a traumatismos de córnea”, exemplifica.
Segundo Rui Oliveira, médico veterinário especialista em Oftalmologia Veterinária, apesar da diversidade dos casos registados, em consulta os mais frequente são “as cataratas e cirurgia de facoemulsificação para remoção de cataratas com colocação de lente intraocular, da qual sou pioneiro na sua realização em Portugal desde 2004 e da qual já realizei mais de 600 cirurgias. Temos ainda imensos casos de úlceras de córnea e patologia de pálpebras, sobretudo o entropion.”
Complexidade clínica
As situações mais “problemáticas são aquelas que nos chegam numa fase avançada e por essa razão se tornam difíceis de recuperar e aquelas para as quais os tratamentos não são eficazes a 100%” descreve Pedro Cunha e Silva, segundo o qual o principal desafio hoje em dia está nas “patologias para as quais ainda não existem tratamentos curativos. Principalmente o glaucoma e as doenças da retina.” Associado a uma predisposição genética em certas raças, como o Cocker Spaniel ou o Caniche (Poodle), mas também a inflamação ou outras patologias, o glaucoma é uma das principais causas de cegueira no cão. Estima-se que em 40% dos casos leve à perda de visão no olho afetado após o primeiro ano, independentemente do tratamento realizado.
Além da herança genética, as situações mais comuns em consulta devem-se a “traumatismos na córnea, infeções, processos inflamatórios e neoplasias”, exemplifica. Embora não existam dados concretos sobre a incidência de neoplasia ocular em animais de companhia em Portugal, “é de senso comum internacional, na área de oftalmologia veterinária, que as neoplasias são frequentes e Portugal não me parece ser uma exceção”, defende Cristina Seruca. As neoplasias oculares “podem surgir no globo ocular ou nos seus anexos (pálpebras, conjuntiva e membrana nictitante, glândulas lacrimais e órbita). Estas neoplasias podem ser primárias ou secundárias, sendo que as primárias são muito mais frequentes. Tanto no cão, como no gato, os tumores melanócitos da úvea são a neoplasia primária intraocular mais frequente e o linfoma da úvea é a neoplasia intraocular secundaria mais comum”, explica.
Do ponto de vista médico, a abordagem adotada depende do tipo, localização e estadio em que se encontra o tumor. A oferta terapêutica pode englobar, de forma isolada ou combinada, “os tratamentos locais: ressecção cirúrgica, quimioterapia intralesional, crio-cirurgia, terapia com laser CO2, radioterapia, terapia fotodinâmica e hipertermia; e os tratamentos sistémicos: a quimioterapia e a imunoterapia.” Nos casos benignos, “a grande maioria é passível de cura com tratamentos locais, habitualmente cirúrgicos, com preservação do globo ocular e da sua função”. No caso dos tumores malignos, consoante o estadio da doença, o tratamento poderá ser curativo ou apenas paliativo. “Como em qualquer outra área da medicina veterinária tudo depende da realização de novos estudos científicos e da evolução das técnicas de diagnóstico precoce e tratamento na área da oncologia veterinária”, comenta.
“A visão é um sentido a que os donos são muito sensíveis e por isso estão muito recetivos a procurar ajuda e colaborar nos tratamentos. Os restantes médicos veterinários reconhecem a especificidade da área da oftalmologia e solicitam, com muita frequência, a colaboração dos colegas que a ela se dedicam”, comenta Pedro Cunha Silva. Apesar da importância crescente, o contexto económico pode funcionar como um travão à evolução desta área da medicina veterinária e à aplicação prática das novas tecnologias e abordagens. Para Rui Oliveira este é um dos desafios atuais: “a crise que se vive no país e o baixo poder de compra dos clientes portugueses obrigam-nos a ter de rentabilizar equipamentos e investimentos cobrando muito menos por consulta e ato cirúrgico do que aquilo que se cobra noutros países na Europa nomeadamente no Reino Unido, França ou Alemanha. Por outro lado, a impossibilidade de se poderem cobrar valores mais elevados por procedimento limita bastante o tipo de procedimentos a realizar, uma vez que todos os mais avançados são dispendiosos.”
Na vanguarda da Medicina
“Nos últimos 15 anos, os avanços foram enormes em qualquer uma destas três vertentes: diagnóstico, tratamento ou técnicas de cirurgia”, afirma Pedro Cunha Silva. No âmbito do diagnóstico, Cristina Seruca destaca a constante evolução na área de imagiologia ocular com a “Microscopia Confocal in vivo (IVCM) e a Tomografia de Coerência Ótica (OCT). A IVCM permite, de forma não invasiva e em tempo real, obter imagens seccionadas dos tecidos a nível celular com alta resolução e magnificação. Além disso permite identificar alguns microrganismos como fungos e protozoários. A sua principal aplicação clínica é a abordagem a patologias de córnea, uma vez que de forma não invasiva, em tempo real e in vivo, se pode obter imagens quase equivalentes a um corte histopatológico. Já a OCT permite, de forma não invasiva e sem contato direto, obter imagens de alta resolução de várias estruturas oculares. A OCT tem sido extensivamente utilizada para o estudo de doenças de retina e nervo ótico, uma vez que permite distinguir alterações subtis na espessura dos tecidos antes destas se manifestarem fundoscopicamente.”
No tratamento, além dos novos fármacos disponíveis no mercado, como os “antivirais e antibacterianos”, como realça Pedro Cunha Silva, “democratizou-se o acesso a técnicas cirúrgicas como facoemulsificação, tornando a cirurgia das cataratas mais acessível a todos, o laser tem cada vez mais indicações e tornou-se uma ferramenta com muito potencial.” Outro exemplo de tratamento com bons resultados em medicina veterinária, destaca Cristina Seruca, “é o cross-linking do colagénio corneano através do uso de riboflavina e de radiação UV-A para o tratamento de úlceras de córnea melting. Esta técnica é altamente promissora em medicina humana e tem demonstrado recentemente bons resultados na medicina veterinária.”
Tecnologia de ponta
Com o aparecimento de equipamentos de elevada precisão, e com dimensões cada vez mais reduzidas, os tratamentos oftalmológicos veterinárias registaram uma franca evolução nos últimos anos. Contudo, ainda existem desafios por superar. Na perspetiva de Rui Oliveira, são “diversas as doenças que temos extrema dificuldade em resolver, mas o glaucoma e os problemas de retina são sem dúvida aqueles que temos como desafios mais extremos nos dias de hoje. O glaucoma porque a técnica de laser transescleral oferece uma baixa taxa de sucesso a médio e longo prazo e a colocação de válvulas de drenagem de humor aquoso na camara anterior duram pouco mais de um ano sem terem de ser reintervencionadas. Com o advento do Endolaser passamos a ter uma sonda de endoscopia de apenas 19G (gauge) dentro do olho que nos permite visualizar todo o olho por dentro, nomeadamente o corpo ciliar que é onde o humor aquoso é produzido. Assim, com uma muito pequena incisão dentro do olho podemos fazer destruição do corpo ciliar com laser de diodo usando muito menos energia e com uma visualização direta daquilo que estamos a fazer quando comparado com o antigo laser transescleral.”
Os descolamentos de retina, que já são operados nos EUA há duas décadas, apresentam agora melhores resultados graças “ao advento de micro-instrumentos mais pequenos de 23G e vitrectomos mais rápidos e pequenos. São cirurgias extremamente complicadas, que exigem investimentos muito avultados em equipamentos, em material, que tem uma curva de aprendizagem muito lenta e cuja casuística é muito baixa”, comenta Rui Oliveira, pioneiro na introdução de técnicas como a cirurgia de glaucoma por endolaser (em 2009). O serviço de oftalmologia veterinária que integra, no Instituto Oftalmológico Veterinário (IOV), realiza ainda “cirurgias de segmento posterior nomeadamente nas retinopexias transesclerais e transpupilares com laser de diodo para os descolamentos de retina parciais”, descreve o médico veterinário, destacando a “recente vitrectomia para descolamentos de retina totais, que realizamos desde 2014 com diversas cirurgias de recolocação de retina com endolaser realizadas com sucesso e que anteriormente seriam casos em que os animais ficavam irremediavelmente cegos.”
O futuro está na Genética
De todas as vertentes aquela que registou avanços mais marcantes e que determinará o caminho a seguir, segundo o painel de médicos veterinários entrevistados, é a genética. A investigação desenvolvida neste âmbito é grande, tal como as expectativas em torno das soluções que poderá vir a oferecer. Para Pedro Cunha Silva, esta “é sem dúvida a área mais emergente da oftalmologia veterinária. Estão identificados os genes responsáveis por patologias como a atrofia progressiva da retina, glaucoma, luxação do cristalino, retinopatia multifocal, cataratas hereditárias, cegueira noturna, entre outras, em raças específicas, o que permite aos criadores rastrear os cães portadores de genes ‘doentes’ e afastá-los da reprodução. Mais fascinante ainda é a perspetiva de tratamentos químico-genéticos que permitirão corrigir defeitos existentes e no limite, devolver a visão a animais que já a tenham perdido”.
Exemplo deste tipo de descobertas promissoras é o estudo publicado recentemente na revista PLOS One no qual uma equipa de investigadores da Universidade de Helsínquia (Finlândia) e da Universidade do Michigan (EUA) identificaram uma mutação no gene MERTK responsável por uma forma de atrofia progressiva da retina, patologia hereditária comum em várias raças de cães e que pode levar à cegueira. Na opinião de Rui Oliveira, a descoberta destas mutações genéticas “permite fazer o despiste de condições hereditárias que há muito tempo se sabia existirem, mas que a falta de um teste fidedigno nos impossibilitava de eliminar os animais portadores nas condições hereditárias recessivas.” Além de abrir a possibilidade de detetação e erradicação destas patologias no cão, Rui Oliveira acredita que “os problemas degenerativos de retina serão mais tarde ou mais cedo tratados com o uso de terapias genéticas e/ou com a injeção de células percursoras de retina a nível sub-retinano. Os avanços nesta área são inúmeros e penso que não faltará muito tempo até os primeiros tratamentos começarem a ter sucesso.”
Rui Oliveira, médico veterinário especialista em Oftalmologia Veterinária certificado pelo Royal College Veterinary Surgeons relata um dos mais recentes desafios que superou na sua prática clínica.
“Felizmente tenho muitos. O mais recente foi uma foca do Ocean Park, em HongKong, que estava completamente cega há vários anos e que operei de catarata por facoemulsificação em março deste ano. Este caso é duplamente reconfortante, quer por se conseguir devolver a visão a um animal que de outra forma ficaria cego para o resto da vida, como por ter sido usada uma técnica totalmente inovadora nesta espécie. Geralmente a facoemulsificação não pode ser usada nas focas devido à extrema dureza do seu cristalino, mas uma adaptação a esta técnica permitiu-nos que fosse realizada com sucesso. A foca regressou à água dez dias após a cirurgia (enquanto a técnica convencional de remoção do cristalino por cirurgia extracapsular apenas permite que eles regressem a água ao fim de três semanas).”
Artigo publicado na edição de julho/agosto de 2015 da revista VETERINÁRIA ATUAL