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Medicina Regenerativa

Células estaminais: Uma nova arma terapêutica?

Depositphotos  original

As terapias regenerativas têm suscitado um interesse crescente na comunidade médica veterinária mundial e Portugal não é exceção. Fomos tentar compreender que avanços existem nesta área no nosso país, através das expectativas e experiências de quem lida com esta tecnologia em laboratório e na prática clínica.

Estimular o organismo a regenerar-se após uma lesão ou infeção, com a ajuda de células obtidas a partir de tecidos do próprio animal é uma das apostas da Medicina Regenerativa já em implementação em patologias articulares, como a osteoartrite canina, regeneração de tendões, ligamentos e cartilagens em equinos, e o controlo de inflamações e cicatrização de lesões ou após cirurgia. Na perspetiva de João Requicha, médico veterinário docente da Faculdade de Medicina Veterinária, da Universidade Lusófona (Lisboa), “em situações onde pretendemos promover regeneração completa, e não apenas cicatrização, estas terapias serão a melhor solução de que dispomos atualmente. A curto prazo será expectável que a comunidade científica apresente resultados de estudos clínicos em cada vez mais doenças.” Dados recentes sobre o papel regenerador das células estaminais a nível oftalmológico, com resultados promissores em patologias como a queratoconjuntive felina e canina, graças ao seu efeito imunomodulador, são apenas mais um exemplo da crescente evolução que se verifica nesta área da Medicina.

Pontos fortes

As terapias regenerativas são maioritariamente aplicadas em patologias do sistema músculo-esquelético, explica Pedro Carvalho, médico, docente e Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Regenerativa Veterinária (VETREG): “Conseguimos promover a regeneração dos tecidos lesados, ao invés de simplesmente cicatrizarem, formando tecido igual ao original e diminuindo significativamente a recorrência das lesões. Para este tipo de patologias há vários tratamentos: desde os concentrados de fatores de crescimento, às células estaminais incorporadas em hidrogéis.”

Diminuir a probabilidade de problemas associados ao tecido cicatricial é outra das potencialidades que este médico veterinário e fundador da Vetherapy (empresa de biotecnologia na área das terapias regenerativas) atribui às células estaminais, cujas vantagens se traduzem ainda pela possibilidade de “evitar o uso continuado, e muitas vezes desaconselhado, de fármacos”. Na perspetiva de João Requicha, “as terapias à base de células estaminais derivadas do tecido adiposo têm um potencial regenerativo devido à capacidade de se diferenciarem nas células do tecido lesado e à capacidade de, por quimiotaxia, atraírem outras células indiferenciadas do organismo recetor ao local onde está a ocorrer a regeneração tissular. Além disso, dado serem células imunoprivilegiadas, não despoletam reação de rejeição pelo organismo e têm um efeito imunomodulatório muito benéfico no tratamento de doenças inflamatórias e com componente imunomediado, sendo uma alternativa útil aos tratamentos prolongados com glucocorticoides e outros imunossupressores.”

Expectativas em análise

“Uma das coisas que me fascina na medicina regenerativa é o facto de, apesar de tentarmos compreender e manipular para nosso benefício os processos moleculares envolvidos na regeneração, acabamos por deixar que seja a própria célula, com os seus processos intrínsecos que resultam de milhões de anos de evolução, a fazer aquilo para que está naturalmente programada”, descreve Pedro Carvalho. Atualmente, a desenvolver ensaios clínicos sobre o tratamento de insuficiência renal em felinos e a regeneração de cartilagem em equinos, o médico veterinário mantém os pés assentes na terra: Temos de ser realistas. Apesar de esperarmos sempre o melhor possível, temos consciência de que ambos os casos são verdadeiros desafios. No primeiro pela natureza multifatorial da insuficiência renal crónica e pelo estado avançado em que normalmente é diagnosticada (resultados preliminares mostram que 50% dos gatos estabilizam e/ou melhoram os parâmetros sanguíneos). No segundo, pela natureza não-regenerativa da própria cartilagem e pelas forças de atrito, tensão e compressão a que está constantemente sujeita. Ainda assim estamos otimistas e esperamos conseguir obter o maior número possível de dados, melhorando progressivamente os resultados obtidos.”

Apesar de reconhecer a evolução que esta abordagem traz para a Medicina Veterinária, Luís Montenegro, diretor clínico do Hospital Referência Veterinária Montenegro, partilha esta visão ponderada. “Deve ser considerada e continuar-se, sem fantasias, a verificar os seus benefícios. Cada caso é um caso e é mais uma ferramenta que temos ao dispor para nos ajudar em algumas situações. Não vai curar, vai melhorar”, afirma, sem esquecer de referir as expectativas do proprietário: “Temos de propor um tratamento de forma realista porque ele irá pedir-nos satisfações”. Na opinião de Ângela Martins é preciso ser claro. Com experiência no recurso a fatores de crescimento, a médica refere ter tido boa aceitação por parte dos donos dos animais: “Não há fórmulas milagrosas, tem de ser bem explicado, de forma científica. Estas terapias são complementares, vão fazer aporte sanguíneo e capacidade de haver fatores de crescimento e elas vão ajudar sempre, podem é não conseguir atingir a finalidade pretendida. Não se destinam a substituir nada, mas a serem utilizadas logo ou numa situação mais avançada como integrativas e não como uma alternativa.”

Investigação em curso

Apesar de ser uma atividade recente no nosso país – nos EUA as primeiras empresas de biotecnologia neste âmbito surgiram há 15 anos – o fundador da Vetherapy, Pedro Carvalho, considera que “a investigação que é feita em Portugal nesta área tem provado estar ao mais alto nível e temos vários grupos de elevada reputação internacional, espelhado nas publicações que vão fazendo. Tive o privilégio de desenvolver o meu doutoramento num destes grupos (3Bs da Universidade do Minho). Acredito que temos todas as condições para reduzir a distância que nos separa de outros países, e até podermos vir a ser uma referência.”

Atualmente a desenvolver um estudo em cães em fase terminal em parceria com Vetherapy, a diretora do Hospital Veterinário da Arrábida considera fundamental “ser crítico e científico. Há evidências clínicas, interessa-nos é ver se as pessoas vão aplicar bem, quanto tempo dura o efeito, se ele poderá ser potenciado com outras modalidades e quais podem ser adicionadas. É isso que estamos a fazer e até agora temos tido bons resultados, com animais que ainda não regrediram e outros que estão agora a começar a regredir após 90 dias (mas sem receber outro tipo de tratamento).” No panorama da investigação nacional, João Requicha destaca ainda o estudo de outras doenças, como por exemplo “o complexo estomatite-gengivite-faringite felino, a doença renal crónica felina ou a doença inflamatória do intestino estão a ser alvo de interesse crescente e de investigação clínica. Em relação à primeira doença, que é da área a que dedico a minha atividade, tenho em curso um estudo clínico com vista a avaliar a evidência desta terapia em animais que não respondem aos tratamentos convencionais, incluindo as extrações dentárias radicais e aos protocolos de imunomodução e imunossupressão.”

Evidências médicas

Grande parte da investigação e desenvolvimento de técnicas e soluções terapêuticas regenerativas tem incidido nas patologias articulares e ósseas. Um dos motivos prende-se com as características das próprias células estaminais derivadas do tecido adiposo, “dado que são obtidas deste tecido de origem mesodérmica têm um fenótipo que lhes permite a diferenciação em osteoblastos e condroblastos, células estas envolvidas na regeneração osteoarticular, além de que após diferenciação segregam fatores de diferenciação e de crescimento envolvidos neste processo”, explica João Requicha.

A prevalência destas patologias no cavalo, cão e gato e a tendência de acentuar devido o aumento da esperança média de vida dos animais é outro fator que contribui para o interesse da comunidade médica e científica nesta vertente. “Há algum tempo que a engenharia de tecidos procura o tratamento para defeitos ósseos de grande dimensão. A estratégia que tem vindo a ser seguida é a de juntar as células estaminais aos biomateriais, mas ainda não conseguimos obter o biomaterial mais adequado. O osso é um tecido muito complexo e difícil de mimetizar. Talvez por isso muitos grupos de investigação na área dos biomateriais continuam a pesquisar nesta área e a publicar os resultados das suas pesquisas.”

Médica veterinária dedicada à área de reabilitação, Ângela Martins, tem acompanhado o que se faz a nível internacional e aponta alguns resultados. “Recentemente num congresso em Birmingham, um ortopedista norte-americano, David Mason, que aplica medicina regenerativa na prática clínica, aconselhou a associação na mesma seringa de PRP e de células estaminais. O poder será maior.”

Realidade no terreno

“Desde a sua descoberta e principalmente com o crescimento da pesquisa na engenharia de tecidos, as células estaminais revelaram um enorme potencial e gerou-se uma grande expectativa à sua volta. Apesar disto, a sua translação para o campo clínico só agora começa a ter algum impacto”, reconhece Pedro Carvalho. As células estaminais obtidas a partir do tecido adiposo do animal são tratadas para serem então introduzidas na zona a tratar. Este procedimento pode ser realizado em duas fases – colheita da gordura dos animais, preparação das células e cultivo em laboratório externo, e posterior intervenção no animal – ou numa única, através de equipamento especializado na própria clínica. No Porto, o Hospital Referência Veterinária Montenegro já aplicou esta última técnica em quatro animais (ver caixa).

Uma terapia regenerativa que tem vindo a ser aplicada de forma mais alargada em clínica veterinária são os fatores de crescimento – PRP – valorizados pela sua vertente anti-inflamatória e promotora de cicatrização. Como descreve Luís Montenegro, “é uma técnica muito simples a partir de uma colheita de sangue normal, submetida depois a tratamento laboratorial para obter os fatores de crescimento que estão nas plaquetas. Podem ser aplicados em tudo aquilo que precisamos de auxílio à cicatrização – uma laceração de pele que não cicatriza, uma fratura óssea – e têm a vantagem de ser práticos e económicos. As células estaminais são melhores mas os fatores de crescimento são mais fáceis de obter e aplicar.”

Existem ainda alguns obstáculos à expansão destas terapias na prática clínica e à taxa de sucesso. Além das limitações económicas, a maioria dos animais são geriátricos, com patologias graves ou terminais. “Lá fora, a tendência para o uso de terapias de medicina regenerativa não é numa fase terminal, mas inicial porque aí vai durar muito mais tempo”, afirma Ângela Martins. Com base na sua experiência no uso de fatores de crescimento para a reabilitação canina, a veterinária considera que “em fases terminais a medicina regenerativa tem interesse para permitir maior amplitude articular, massa muscular, de modo a que haja um andamento parecido com o fisiológico. Nestas fases terá mais sucesso se associarmos com outras modalidades. Já experimentámos fazer a medicina regenerativa associada a outras modalidades de reabilitação (por exemplo treinos locomotores de hidroterapia) para que haja maior elasticidade muscular e de todo o sistema tendinoso e assim atinge-se mais rapidamente o sucesso.” Apostar na formação e no domínio da técnica é também fundamental para garantir bons resultados. “Muitas vezes a falta de sucesso pode não se dever à qualidade do PRP, mas a má colocação” alerta Ângela Martins, que defende a aplicação destas terapias de forma ecoguiada, com meios de diagnóstico ecográfico a nível musculo-esquelético, sempre que necessário.

No que respeita a animais de produção, segundo Pedro Carvalho “apesar da crescente generalização da aplicação destas terapias, os materiais, reagentes e acima de tudo os recursos humanos necessários para a sua produção são muito dispendiosos, fazendo com que estas terapias sejam difíceis de aplicar em animais de produção. Apesar de tudo, em animais de elevado valor económico ou situações que não exigem um tratamento muito dispendioso, como a cicatrização de feridas, já foram utilizadas terapias regenerativas nestes animais.”

Próximos passos

Face aos avanços crescentes na investigação e tecnologia urge dar a conhecer as potencialidades do uso de células estaminais e técnicas regenerativas à classe médica. Na opinião de João Requicha, para que “a utilização destas terapias passe a fazer parte das opções a considerar pelo médico veterinário, devem ser realizadas ações de divulgação e de formação acerca das indicações dos vários tipos de tratamento, das vantagens e das suas limitações”.

Em resposta a esta necessidade de divulgação das “terapias regenerativas baseadas em células estaminais, de fatores de crescimento (ex: plasma rico em plaquetas) e de biomateriais que induzem e conduzem a regeneração tissular, surgiu em 2015 a Sociedade Portuguesa de Medicina Regenerativa Veterinária (VetReg)”, relata o veterinário, membro desta entidade que “pretende servir de ponte entre a investigação e o conhecimento académico e a sua aplicação no dia a dia da atividade clínica, à semelhança de sociedades internacionais como a North American Veterinary Regenerative Medicine Association e o grupo de Medicina Veterinária da Tissue Engineering and Regenerative Medicine International Society.”

No âmbito da investigação, revela Pedro Carvalho, “temos avançado muito na manipulação genética, na robótica e eletrónica e até na computação quântica. À semelhança do que acontece com o Médico Veterinário, uma das profissões onde somos obrigatoriamente multifacetados e multidisciplinares, acredito que o futuro da terapêutica, em particular na medicina regenerativa e engenharia de tecidos, passará obrigatoriamente pela fusão do conhecimento destas e outras disciplinas, trabalhando para um objetivo em comum, que é a melhoria da saúde e qualidade de vida, do Homem e dos nossos animais. É uma área com um enorme potencial terapêutico, que só agora começamos a explorar.” Na perspetiva de Ângela Martins é com uma abordagem integrativa que devemos encarar estas novas terapias: “Já existem protocolos para a medicina humana, agora temos de ver se funciona nos animais. Lá fora, quando começou a aparecer, só havia oradores da medicina humana, agora todos os congressos da área da reabilitação têm várias palestras de Medicina Regenerativa Veterinária. Aqui estamos a começar.”

Luís Montenegro, diretor clínico do Hospital Referência Veterinária Montenegro, relata a sua experiência no recurso a terapias com células estaminais, através de uma técnica realizada na própria clínica, que possui equipamento específico. “Podemos fazer a colheita, o tratamento necessário para a obtenção de células estaminais e aplicação logo após. Este método tem a vantagem de permitir que o procedimento seja concluído no mesmo dia, só que à partida o número de células estaminais é menor (porque não houve multiplicação) e, por isso, os resultados podem não ser tão bons como nos laboratórios especializados.” Nos quatro casos a que recorreu a esta técnica – em patologias como displasia da anca, artrose do cotovelo e cirurgia lombar – Luís Montenegro considera os resultados satisfatórios, com melhorias na ordem dos 20 a 30% e uma recuperação mais rápida e eficiente. Relativamente ao método realizado por laboratório externo reconhece que “se todo esse processo correr bem e não houver contaminação do material, o benefício pode ser maior e chegar aos 50%, porque o número de células estaminais conseguido é maior. Por outro lado, tem a desvantagem de obrigar a que o animal seja intervencionado duas vezes.” Ao tratamento segue-se um período de melhoria de “cerca de um ano em que o animal passa melhor, depois vamos usando outras ferramentas acessórias, anti-inflamatórios e terapia. É mais uma ferramenta que temos ao nosso dispor para nos ajudar em situações específicas.”

 

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