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Doenças infeciosas

“A Medicina Veterinária nunca necessitou tanto da existência da especialidade de Infeciologia como nos dias de hoje”

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Apesar de não haver em Portugal um sistema de vigilância epidemiológica em animais de companhia “é indiscutível que ao longo dos anos se tem assistido a uma redução da incidência de doenças infeciosas preveníveis por vacinação em cães e gatos”. No entanto, a luta contra estas patologias é uma constante, sendo necessária uma abordagem especializada.

Em Portugal, as doenças infeciosas que afetam os animais de companhia são “sobretudo aquelas para as quais temos felizmente cobertura vacinal, com exceção da imunodeficiência felina (FIV) e da peritonite infeciosa felina/coronovirose felina”, declara Elsa Leclerc Duarte, revelando que “a nova variante da doença vírica hemorrágica do coelho também possuí já uma vacina”. No entanto, outras doenças vulgarmente conhecidas como ‘febre da carraça’, mas que englobam doenças com agentes etiológicos diferentes, “não têm cobertura vacinal, sendo a prevenção da infestação por ixodídeos a única forma de as prevenir”, sublinha a professora do departamento de Medicina Veterinária da Universidade de Évora.

Existem ainda, segundo a docente, patologias que ocorrem em animais jovens, “não obstante serem vacinados, pois muitas vezes há interferência dos anticorpos de origem materna na eficácia da primovacinação”. Aliás, para Nuno Alegria, no campo da vacinação dos animais de companhia “o ‘ponto crítico’ a ultrapassar é sem dúvida a interferência da imunidade materna na vacinação dos jovens, especialmente nos cães. Provavelmente será nesta área que os avanços mais se desejam”.

 

Processo dinâmico

Embora não conheça qualquer estudo epidemiológico recente realizado em Portugal, para o professor do departamento de Ciências Veterinárias da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, as doenças mais prevalentes no nosso país “talvez sejam, nos cães, a parvovirose e nos gatos a panleucopenia e as retroviroses (leucemia e imunodeficiência)”. Patologias que “infelizmente têm alguma mortalidade associada”. A este rol de doenças, Nuno Alegria junta a Leishmaniose que, embora seja uma doença de natureza ‘parasitária’, pois é provocada por um protozoário, “é muito frequente em algumas regiões do país”.

 

Além destas patologias, consideradas bastante perigosas para o animal – às quais acrescentamos a esgana e a peritonite infeciosa felina, já referida – existem ainda doenças cuja perigosidade ultrapassa a esfera animal. Falamos de zoonoses como a raiva e a leptospirose. No geral, muitas destas patologias infeciosas podem apresentar um leque variado de sintomas e gravidade, dependendo da estirpe envolvida. Neste sentido, por exemplo, “no caso da esgana canina o prognóstico piora muito em casos de infeção por estirpes virais com grande neurotropismo”, refere Elsa Leclerc Duarte. De qualquer forma, a prevalência e importância das doenças infeciosas é um processo dinâmico. “Existem sempre patologias emergentes e outras re-emergentes, que pensávamos ser doenças do passado”, indica a investigadora.

Técnica imunológica de titulação de anticorpos anti-raiva

 

O diagnóstico imunológico realizado no âmbito da prática médico-veterinária no nosso país é comparável aos demais países europeus. Na realidade, “a técnica imunológica de titulação de anticorpos anti-raiva é prática mandatória sempre que os nossos animais de companhia saem do país ou têm de acompanhar os tutores para outros destinos”, afirmam Miguel Fevereiro e Margarida Simões. O INIAV I.P. é o único laboratório nacional autorizado para a realização desta prova.

 

Neste panorama, o médico veterinário tem de estar atualizado e possuir competências muito sólidas nesta área. “Um exemplo clássico é o da raiva canina, que já não existe em Portugal desde 1950. No entanto, Espanha teve um caso importado em 2012, de um cão proveniente de Marrocos, que teve alguma dificuldade em gerir”. Por outras palavras, ainda de acordo com Elsa Leclerc Duarte, “não estamos a salvo de acontecer algo parecido em Portugal, em que a quase totalidade dos médicos veterinários nunca observou um caso de raiva na sua vida profissional”.

Mudança de padrão

Olhando para um caso prático, quando Filipa Ceia se iniciou nos meandros da medicina veterinária, há 14 anos, a cobertura vacinal de animais de companhia na zona onde instalou o seu centro de atendimento médico veterinário (CAMV) “era muito próxima de zero. A exceção era a campanha vacinal contra a raiva, cuja adesão não era, ainda assim, universal”.

Naquela altura, a procura da consulta médico veterinária era “reativa ao problema de saúde e objetivava a sua resolução, sendo que as doenças infeciosas representavam uma parte significativa dos motivos de procura”. Porém, de acordo com a médica veterinária fundadora da Clínica Veterinária VetSátão, em Sátão, e coordenadora do Curso de Antibioterapia em Medicina Veterinária organizado pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, houve uma alteração de padrão e hoje “o proprietário adota um papel ativo na saúde do seu pet, apostando num acompanhamento médico veterinário integrado e contínuo que privilegia a abordagem preventiva”.

Deste modo, “apesar da inexistência em Portugal de sistemas de vigilância epidemiológica em animais de companhia é indiscutível que, ao longo dos anos, se tem assistido a uma redução da incidência de doenças infeciosas preveníveis por vacinação em cães e gatos”. Filipa Ceia dá como exemplo o caso da esgana, “controlada em Portugal pela vacinação porque, provavelmente, alcançámos imunidade de grupo”. No entanto, para a médica veterinária, “continua a ser imperativo trabalhar a adesão à vacinação em todas as visitas, com vista à obtenção de uma proteção individual e, em alguns casos, de grupo”.

“É importante que cada centro veterinário tenha a sua própria equipa de controlo de infeção”

A Medicina Veterinária atual tende cada vez mais a assemelhar-se à Medicina Humana, nomeadamente no que diz respeito à disponibilização de meios auxiliares de diagnóstico ou à escolha terapêutica. Assim sendo, para Filipa Ceia as medidas de controlo de infeção dentro de um centro veterinário necessitam de seguir também este rumo. “As decisões para controlo de infeção podem ir desde a simples alocação de um animal dentro das instalações até à abordagem de um surto”, refere a médica veterinária.

Se é verdade que, por um lado, a implementação de precauções básicas de controlo de infeção e de protocolos de limpeza e desinfeção ambientais são medidas universais, por outro “cada centro tem as suas especificidades (epidemiologia e ecologia locais, condicionantes arquitetónicas, recursos humanos)”. Daí considerar que “é importante que cada centro veterinário tenha a sua própria equipa de controlo de infeção e os seus próprios protocolos”.

Mas se é verdade que as patologias infeciosas preveníveis por vacinação ou por outras formas de profilaxia parecem ter vindo a diminuir, também é verdade que as infeções continuam a ser um importante problema de saúde em animais de companhia. Por exemplo, “a patologia infeciosa felina caracteriza-se maioritariamente por infeções víricas que afetam sobretudo populações vulneráveis e que, regra geral, se disseminam facilmente em locais com vários animais”. Entre as mais frequentes na sua prática clínica, Filipa Ceia destaca o vírus da imunodeficiência felina e o vírus da leucemia felina, “pelas suas consequências a longo prazo, quer na predisposição a outras infeções, quer pelo risco aumentado de neoplasias e pela ausência de tratamento dirigido”.

Não obstante, ainda relativamente aos gatos, a médica veterinária lembra que “continuamos a ter casos de infeção pelo vírus da panleucopenia felina, o que poderá refletir a baixa cobertura vacinal”.  Mas, em regra, todas estas infeções “têm fatores de risco potencialmente modificáveis e que devem ser trabalhados com os proprietários, a par da vacinação”.

Quanto aos cães, a preocupação de Filipa Ceia continua a “centrar-se nos novos diagnósticos de leishmaniose canina, que são uma constante na nossa prática clínica diária, sobretudo os diagnósticos tardios”. Apesar de todas estas preocupações, a temática dentro das doenças infeciosas que mais preocupa a médica veterinária são as infeções causadas por microrganismos resistentes aos antimicrobianos porque “constituem um importante problema de Saúde Pública e porque o seu tratamento representa um desafio poucas vezes colocado aos médicos veterinários: a complexidade técnica da escolha do tratamento, aliada ao dever ético de preservar o bem comum que são os antibióticos”. Neste contexto defende que a complexidade da escolha do tratamento “pode ser colmatada com a discussão dos casos com peritos em doenças infeciosas e atrevo-me a dizer que a Medicina Veterinária nunca necessitou tanto da existência da especialidade de Infeciologia como nos dias de hoje”.

Aposta na profilaxia

Atualmente existem vacinas comercializadas para grande parte das doenças mencionadas. “Embora de eficácia variável, a vacinação quando possível é sem dúvida a medida mais eficaz, em termos de prevenção e controlo”, sublinha Nuno Alegria.

Para Elsa Leclerc Duarte nunca é demais repetir que “a aposta tem de ser na prevenção, através de medidas de profilaxia sanitária e médica, visto o arsenal terapêutico ser ainda reduzido para as doenças virais e as doenças bacterianas terem associadas estirpes com elevadas antibioresistências”.

Em relação às doenças infeciosas para as quais não existem ferramentas profiláticas especificas “devemos promover a educação para hábitos de prevenção, por exemplo desparasitantes como forma de prevenir a infestação por carraças que poderão implicar infeções por agentes patogénicos oportunistas”, declaram Miguel Fevereiro, responsável pelo Laboratório de Virologia do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), e Margarida Simões, médica veterinária deste laboratório, acrescentando que no que diz respeito à prática laboratorial “deveremos estimular a realização de provas de despiste sempre que circunstâncias propícias à exposição e infeção possam ter ocorrido (ex.: sazonalidade de vetores ou animais de rua adotados), a fim de diagnosticar as infeções o mais precocemente possível, possibilitando ao médico veterinário instituir uma terapêutica em tempo útil”.

Por outro lado, “o uso criterioso de antimicrobianos está na ordem do dia dado o aumento exponencial das resistências e na dificuldade em descobrir novas moléculas, com consequências graves para a saúde pública e saúde animal”, reforçam os elementos do Laboratório de Virologia. Porém, “a diminuição dos custos do diagnóstico laboratorial, verificada ao longo dos últimos anos, facilita o diagnóstico e a necessidade ou não da administração de antimicrobianos”, concluem.

Diagnóstico mais específico

Mas os desafios no âmbito das doenças infeciosas não terminam na questão dos antimicrobianos. Para Filipa Ceia, os desafios passam pelo “desenvolvimento de técnicas de diagnóstico cada vez mais sensíveis, específicas, rápidas e acessíveis, e pela investigação de novas terapêuticas e preservação das que já dispomos”. E é este o caminho que está a ser seguido. “Os maiores avanços no âmbito das doenças infeciosas têm-se notado sobretudo ao nível de um diagnóstico cada vez mais rápido, sensível e específico, recorrendo a ferramentas de biologia molecular e proteómica”, sublinha Elsa Leclerc Duarte, acrescentando que “a epidemiologia molecular, que recorre a várias técnicas de genotipagem ou sequenciação permite hoje em dia determinar com precisão a origem de surtos, a evolução das estirpes circulantes, etc.”.

Também no caso das vacinas, os avanços têm sido notáveis “permitindo que estas sejam cada vez mais potentes e mais seguras, sendo cada vez mais raro observarem-se reações adversas às mesmas”, ressalva a investigadora. Um exemplo são as vacinas recombinantes com vetor, “que substituíram algumas vacinas inativadas, aumentando a imunização e evitando reações adversas graves, como o sarcoma vacinal”.

Abordagem especializada

Mas é preciso continuar a apostar na investigação nesta área, sobretudo tendo em conta que o arsenal terapêutico ainda é pouco. Espreitando o futuro, percebe-se que relativamente às doenças infeciosas “o desenvolvimento de novos métodos de sequenciação genómica permite-nos identificar agentes patogénicos difíceis de detetar e identificar pelos métodos tradicionais”, referem Miguel Fevereiro e Margarida Simões.

De acordo com os investigadores “foi com recurso à metagenómica que se descobriu o vírus Schmallenberg, responsável por malformações e abortos nos ruminantes”. Os novos equipamentos de sequenciação permitem, assim, “obter sequências genómicas completas dos agentes infeciosos em poucas horas permitindo, entre outros, estudos de epidemiologia molecular e a identificação de marcadores de virulência/resistência”.

Já no que toca à imunologia, Filipa Ceia salienta que “na era da imunomodulação, a utilização de anticorpos monoclonais no tratamento de doenças crónicas, como a atopia ou o linfoma, trarão inevitavelmente consequências. Estas terapêuticas parecem favorecer a sobrevida com qualidade, logo são muito promissoras e a generalização da sua utilização é uma questão de tempo”. Porém, “à semelhança do que assistimos na saúde humana, a utilização crónica destas terapêuticas vai acarretar um risco acrescido de infeções nos animais tratados”. Infeções que são mais difíceis de diagnosticar, “podendo cursar com apresentações mais frustes, e mais difíceis de tratar, com dificuldade na abordagem integrada da imunossupressão com os antimicrobianos”. Adicionalmente, estes tratamentos podem até alterar a resposta vacinal “ou mesmo contraindicar a utilização de vacinas vivas o que, em si, pode constituir um novo fator de risco para infeções”.

Em síntese, do ponto de vista da médica veterinária, todas estas questões são complexas e constituem, no momento atual da medicina, “uma área de conhecimento vasta e tecnicamente meticulosa, que exige uma abordagem especializada. Neste campo, mais uma vez as especialidades de Infeciologia e Imunologia estão numa posição privilegiada”.

One Health

“Tendo em conta que cerca de 70% das doenças infeciosas emergentes são zoonóticas, o futuro passa obrigatoriamente por uma maior colaboração entre os médicos e médicos veterinários”, declara Elsa Leclerc Duarte, especificando que esta é uma realidade que já existe nos Estados Unidos, “em que os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) contam com a colaboração de médicos veterinários nos seus quadros”. Para a professora, apenas ações concertadas entre as duas classes podem solucionar problemas tão graves como o das antibioresistências. Também, na sua perspetiva, será preciso dar mais atenção à sanidade da fauna silvestre, pois “a presença de agentes infeciosos nestas populações é uma ameaça aos animais domésticos e ao homem, bem como à própria biodiversidade”.

Filipa Ceia concorda: “o grande desafio para o médico veterinário é assumir o seu papel enquanto interveniente essencial na defesa da Saúde Pública”. Neste sentido, indica que a “Organização Mundial da Saúde (OMS) salienta que, nas últimas três décadas, aproximadamente 60% de todas as doenças infeciosas humanas tiveram origem zoonótica. Portanto, quando falamos em doenças infeciosas em medicina veterinária também é disto que falamos. E cada médico veterinário, independentemente das funções que ocupa, deve agir numa perspetiva One Health”.

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