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Animais de Companhia

“Um animal acorrentado é um animal esquecido”

Almada sem correntes

Margarida Paulos considera que a existência de animais acorrentados “é degradante para qualquer sociedade que se diga desenvolvida” e por isso pôs a mãos à obra e iniciou o movimento Almada Sem Correntes. A voluntária da associação Amor Rafeiro, no concelho da Margem Sul, conta como tem sido ir para o terreno sensibilizar os tutores, oferecer ajuda ao desacorrentamento, construir vedações e melhorar o bem-estar destes animais.

Quando é que começou o projeto Almada Sem Correntes?

 

Iniciei este projeto em 2020 sozinha. Era voluntária no Quebr’ a Corrente, que é um movimento que faz este trabalho a nível nacional, e vi que em Almada havia um universo imenso de animais acorrentados que precisavam de ajuda.

Como também já era voluntária na associação Amor Rafeiro propus iniciar este projeto em Almada e foi bem aceite, embora não houvesse muitos recursos.

 

Arregacei as mangas, comecei a falar com as pessoas, a bater às portas das casas onde havia cães acorrentados para perceber se havia abertura para aceitar ajuda e aos poucos fomos crescendo.

Têm hoje uma rede de pessoas que colaboram com o projeto?

 

Temos pessoas mais regulares, não devemos ser mais de cinco, que se dedicam a este projeto e depois temos pessoas mais esporádicas que participam quando existe uma libertação ou é preciso pôr vedações e pedimos ajuda.

Organizámos um grupo de voluntários no Facebook, não devemos ser mais de 50, e vemos quem está disponível para tentar perceber porque é que o cão está acorrentado. Este é o primeiro passo: tentar perceber o porquê de o cão estar acorrentado porque cada contexto é diferente.

 

Quando é necessário construir vedações temos a sorte de ter um senhor que é extraordinário e nos ajuda com a mão-de-obra. Para os materiais, tentamos angariar dinheiro nos mercados municipais em que participamos, vendemos algum merchandising e quando não temos dinheiro para materiais ou para cuidados veterinários, fazemos apelos, pomos as fotos do cão e as pessoas ajudam.

Não há falta de solidariedade, às vezes temos é falta de pessoas sobretudo na abordagem inicial de falar aos detentores. Há sempre primeiro o trabalho de identificar os casos, ir falar com as pessoas. Às vezes recebemos denúncias ou pedidos de ajuda para animais acorrentados.

Margarida Paulos

Margarida Paulos

“Acho impossível continuar a falar do bem-estar animal sem falarmos deste tema, ver os animais presos pelo pescoço é algo que nos deve incomodar a todos e é degradante para qualquer sociedade que se diga desenvolvida.”

Tem dados relativamente ao número de cães acorrentados no concelho de Almada?

Tentei fazer um apanhado dos casos que precisam de ajuda e já serão cerca de 100. Este é um número razoável, mas longe da realidade.

Tentamos priorizar aqueles casos em que conseguimos ter pessoas para irem ao local e de acordo com aqueles que vemos serem os mais necessitados, que nem uma casota têm, estão doentes ou são cães idosos que precisam de mais ajuda.

Dos casos identificados, quantos já conseguiram resolver e desacorrentar o cão?

Já descorrentámos entre 30 e 40 animais, alguns são do mesmo detentor, entre desacorrentamentos e confinados porque incluímos também cães que estão em varandas ou em canis muito pequenos, que vai dar ao mesmo ou é pior. Estar atrás de umas grades também não é o que pretendemos para os animais.

Além do desacorrentamento também levamos muitas vezes o animal ao veterinário, porque encontramos casos de animais acorrentados que não têm quaisquer cuidados veterinários e são casos dramáticos, animais idosos, animais com tumores. Há tutores que dizem que vai lá o veterinário, dá as vacinas e ficamos a pensar que é a versão da pessoa, que pode estar a mentir.

Afinal, o papel dos veterinários é fazer uma sensibilização às pessoas e dizer que o animal precisa um pouco mais do que vacinas. Se vê que um animal está doente é preciso chamar a atenção e dizer que é preciso levar o animal ao veterinário para observação.

E cabe ao veterinário também fazer a sensibilização para o acorrentamento?

Sem dúvida que os veterinários deverão ter um papel ativo na sensibilização e educação para os problemas do acorrentamento para os animais, para as pessoas, para a sociedade em si e se veem que, para além do acorrentamento, o animal ainda está doente obviamente terão um papel acrescido.

Conseguem perceber as razões que levam as pessoas a terem os cães acorrentados?

A maioria das pessoas diz que é porque o cão foge, porque os muros são baixos, ou que quando abre o portão o cão acaba por fugir.

Também apresentam como motivo que o cão é mau, que estraga o jardim, ou têm mais do que um animal e eles não se dão e então um ou os dois animais estão presos.

Não é frequente, mas algumas pessoas dizem que os cães estão bem assim e não veem razão para não estar acorrentado.

Outras vezes é por desconhecimento, não percebem que o acorrentamento não é algo que deva acontecer e acham que é normal estar assim.

“Gostaríamos que houvesse uma área social de apoio d pessoas que têm carências e têm animais. E claro, queremos aumentar o número de voluntários e continuar a desacorrentar animais.”

Quando a pessoa diz que o cão está bem assim torna-se difícil fazê-la mudar de ideias?

Sim, nem sempre existe abertura por parte de quem nos recebe para aceitar ajuda.

O que fazemos é falar com as pessoas sem julgar, por muito que, por vezes, nos custe vermos o animal claramente a pedir ajuda. Tentamos abordar as pessoas de modo a entenderem que estamos para ajudar e não para criticar. Ninguém gosta de ser criticado, que lhe apontem o dedo e digam que estão a fazer algo que não é certo.

Tentamos abordar questionando porque é que o cão está acorrentado, tentamos explicar que o acorrentamento provoca problemas físicos no pescoço, nas patas, muitas vezes o animal tem dificuldades de locomoção porque fica sempre no mesmo espaço e tem problemas de pele porque faz as necessidades, come e deita-se num espaço muito pequeno.

O animal acorrentado não tem só os problemas do acorrentamento, um animal acorrentado é um animal esquecido que não é passeado, não é levado ao veterinário, que come restos.

E há os problemas emocionais, pois vemos uma diferença enorme nos cães que vivem acorrentados e são libertados. Cães acorrentados são cães que ficam muito nervosos, muito reativos, muito carentes e quando são desacorrentados – há aquele momento em que querem fazer tudo como as crianças quando vão a um parque de diversões – passado uns dias passamos lá e são cães muito mais calmos. É o acorrentamento que faz com que muitas vezes fiquem irrequietos porque não conseguem dar azo à sua energia e frustração e tornam-se cães muito reativos e muito nervosos.

Um animal acorrentado também pode ser um perigo para a sociedade por não está habituado lidar com outras pessoas?

Sem dúvida. Muitas vezes um animal acorrentado é um animal que não é socializado, não contacta com ninguém, com outros animais, não sabe andar na estrada. Tivemos o caso de um animal que vivia nas traseiras de uma casa e tudo o que via era a autoestrada. Quando o fomos passear ele odiava carros, atirava-se aos carros e a associação que faço é que esta reação está relacionada com o facto de ele só ver carros e não ter mais contactos.

Com o tempo começou a passear bem, os tutores começaram a passear o cão e aceitaram ajuda para desacorrentá-lo. Era um caso social porque também existem pessoas que até gostariam de ter os animais noutras condições, mas não têm capacidade económica para o fazer. Disseram que não tinham condições para ter o cão de outra maneira, era um terreno aberto sem vedação, mas as pessoas quando veem que há quem se interesse começam por elas a ter iniciativas e estes começaram a passear o cão.

Há todo um trabalho de educação a fazer e há pessoas que aceitam e são muito agradecidas.

Em termos legislativos já houve um caminho percorrido na proteção animal. Sentem que a questão do acorrentamento está devidamente tratada no âmbito legal?

Não está propriamente na lei algo que diga que é proibido acorrentar animais. O que diz é que os animais devem dispor de abrigos que os protejam do frio e da chuva, que lhe permita fazer exercício físico e as condições adequadas à sua espécie.

No nosso entender o acorrentamento não satisfaz nenhuma destas condições porque um animal acorrentado não faz exercício físico, não se pode proteger dos perigos, muitas vezes não se consegue proteger do sol e da chuva e deveria ser visto como algo que vai contra a lei em vigor.

A verdade é que para as autoridades o acorrentamento não é algo que esteja a violar a lei.

Continuamos esta luta com as autoridades porque a verificação não pode ser só ver o tamanho da corrente, ver se o animal tem água e comida e tem vacinas. É preciso ir mais além.

Como tem sido a colaboração com as autoridades? E como tem sido a colaboração com o Provedor do Animal no concelho de Almada que já fez sessões de esclarecimento à população sobre o tema do acorrentamento animal?

A Câmara Municipal de Almada já nos recebeu e até fez uns outdoors em colaboração com a Amor Rafeiro sobre esta problemática. Também se associou à nossa campanha e aceitou colocar o logótipo no nosso folheto. Nesse sentido a Câmara está aberta a ajudar-nos.

Há uma nova vereação a quem já pedimos reunião e parece haver uma mudança positiva pois a anterior veterinária municipal nunca se mostrou colaborativa neste sentido.

As autoridades demoram uma eternidade a responder às nossas denúncias e aos nossos pedidos de fiscalização e muitas vezes a resposta é que não foi verificada a existência de maus-tratos ou que passaram uma coima por falta de alguma falta de documentação.

O Provedor tem sido uma peça importante porque consegue ter uma maior articulação com as autoridades e com a Câmara, consegue estabelecer esta ligação, mas é apenas uma pessoa para centenas ou milhares de casos. Também ele tem dificuldade em lidar com a afluência de pedidos.

É necessário a Câmara reforçar esta área e alocar recursos para que se possa dar resposta aos pedidos que não são só da Amor Rafeiro, mas também da população que sente que há muita coisa a fazer.

Que objetivos pretendem atingir em 2022?

Iremos apresentar à Câmara a proposta de uma estratégia local municipal para o desacorrentamento para ir além da sensibilização. A ideia é disponibilizar recursos para que as pessoas desacorrentem os animais, fazer campanhas mais ativas nesse sentido nos canais oficiais da Câmara.

Acho impossível continuar a falar do bem-estar animal sem falarmos deste tema, ver os animais presos pelo pescoço é algo que nos deve incomodar a todos e é degradante para qualquer sociedade que se diga desenvolvida.

Também gostávamos que houvesse uma abordagem de cariz mais social porque existe um vácuo entre os animais que não têm detentor, ajudados pelas associações e pela Câmara, e os animais que têm detentor e depois não têm qualquer ajuda quando as pessoas não têm recursos. Gostaríamos que houvesse uma área social de apoio d pessoas que têm carências e têm animais.

E claro, queremos aumentar o número de voluntários e continuar a desacorrentar animais.

*Entrevista publicada originalmente na edição n.º 158 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de março de 2022.

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