A utilização de antibióticos na medicina veterinária e na produção animal para tratamento, prevenção e controlo de doenças resultou em animais mais saudáveis e produtivos. Todavia, o uso continuado ou desadequado dos antibióticos contribui para a emergência e disseminação de bactérias resistentes.
A resistência aos antibióticos constitui uma grave ameaça à saúde pública e à saúde animal. Anualmente, mais de 25 mil mortes em humanos são devidas a infeções graves causadas por bactérias resistentes aos antibióticos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a resistência antimicrobiana como sendo “a resistência de um microrganismo a um medicamento antimicrobiano originalmente eficaz no tratamento de infeções por ele causadas”.
A administração de antibióticos aos animais
Após a descoberta da penicilina, por Alexander Fleming em 1929, os antibióticos têm sido utilizados na medicina veterinária e produção animal para tratamento, prevenção e controlo de doenças e, também, como promotores de crescimento.
Embora os promotores de crescimento tenham sido abolidos na União Europeia (UE) em 2006, não se registou uma diminuição do consumo de antimicrobianos na Europa, antes pelo contrário, ocorreu um aumento da sua utilização como forma metafilática e profilática de tratamento (Woolhouse et al., 2015).
No tratamento metafilático, a administração de antibióticos é feita por um curto período, através da alimentação ou água de bebida a animais saudáveis pertencentes a um bando/rebanho ou manada, no qual sejam detetados animais com sinais clínicos de doença. No tratamento profilático, a administração de antibióticos é igualmente feita através da alimentação ou água de bebida a animais saudáveis, quando existe o risco de infeção. A administração em doses subterapêuticas, por longos períodos, tem um efeito semelhante ao dos promotores de crescimento e, geralmente, está associada a problemas de maneio e a períodos stressantes que predispõem os animais à infeção (Economou & Gousia, 2015; FAO, 2016).
Na prática clínica veterinária (de animais de produção e de companhia), os antibióticos são administrados em dose terapêutica para tratamento de infeções específicas, preferencialmente após um diagnóstico bacteriológico e um teste de suscetibilidade aos antibióticos.
Emergência da resistência aos antibióticos
A utilização de antibióticos promove a resistência por pressão seletiva, facilitando a disseminação de bactérias resistentes.
As bactérias adquirem resistência por mutações espontâneas no seu ADN ou por aquisição de genes de resistência que provêm de outras bactérias (transferência horizontal de genes) (figura 1). A transferência horizontal de genes de resistência ocorre através de elementos genéticos móveis (p. ex., plasmídeos), os quais constituem uma das maiores ameaças na disseminação da resistência, envolvendo bactérias de qualquer espécie e facilitando a disseminação simultânea de genes de resistência a antibióticos pertencentes a diferentes classes (β-lactâmicos, quinolonas, aminoglicosídeos, fenicóis, sulfonamidas, trimetoprim), genes de virulência e de resistência a biocidas (FAO, 2016).
A presença de bactérias resistentes e multirresistentes (resistentes a pelo menos três classes de antibióticos) constitui uma preocupação crescente na medicina humana e veterinária, pois não só limita a escolha de antibióticos para um tratamento eficaz, como seleciona uma flora gastrintestinal resistente em detrimento de uma flora sensível (Economou & Gousia, 2015).
Figura 1. Os mecanismos de resistência nas bactérias surgem por mutações espontâneas no seu ADN, que são selecionadas na presença do antibiótico (A), ou pela aquisição de genes de resistência que provêm de outras bactérias (transferência horizontal de genes) (B). As bactérias transmitem os seus genes de resistência às células filhas, perpetuando a resistência (disseminação clonal).
Vias de disseminação da resistência aos antibióticos
Sendo a resistência aos antibióticos uma realidade nos animais da cadeia alimentar (ECDC & EFSA & EMA, 2015), são os agricultores, os médicos veterinários, os trabalhadores das explorações e dos matadouros, bem como os seus coabitantes, os grupos mais expostos à colonização por bactérias resistentes. A consequente disseminação da resistência à comunidade e a ambientes hospitalares, e posterior propagação às bactérias patogénicas, torna a resistência aos antibióticos um fenómeno que flui entre o homem, os animais e o meio ambiente (figura 2).
Estima-se que 75% a 90% dos antimicrobianos usados na pecuária são excretados (a maioria não metabolizados) para o meio ambiente, contribuindo para a elevada contaminação nesses ambientes agrícolas. Este é um fator de risco crucial para o surgimento de resistência, pois os resíduos de antibióticos mantêm a sua capacidade de atuação sobre as bactérias ambientais e promovem a seleção da resistência. As bactérias resistentes, quer comensais quer zoonóticas, são também eliminadas através das excreções, contaminando o meio ambiente (FAO, 2016).
Não menos importante é a aplicação de antibióticos e biocidas na agricultura, que resulta na contaminação de alimentos vegetais e frutas por bactérias resistentes aos antibióticos e biocidas, com potencial transmissão aos animais, através das pastagens e da água, e ao Homem, via cadeia alimentar (FAO, 2016).
A propagação rápida das bactérias resistentes é facilitada pela globalização, através do trânsito de pessoas e comércio de animais vivos e de produtos alimentares. A transmissão da resistência ocorre por contacto direto e/ou indireto, via cadeia alimentar, água ou através do estrume aplicado na agricultura.
Figura 2. Vias de disseminação de resistência aos antibióticos entre os potenciais reservatórios: o homem, os animais e o ambiente (ilustração de Tânia Salgueiro).
Vigilância epidemiológica da resistência aos antibióticos
A implementação da Diretiva 2003/99/CE teve como objetivo “[…] assegurar a vigilância adequada de zoonoses, dos agentes zoonóticos e das resistências antimicrobianas conexas […]”. No nosso País, a resistência aos antibióticos tem vindo a ser avaliada desde 2008, através de testes de suscetibilidade em bactérias do género Campylobacter e Salmonella, isoladas de amostras biológicas colhidas no âmbito do Plano Nacional de Controlo de Salmonella e do Plano de Inspeção Geral de Géneros Alimentícios.
Posteriormente, a implementação da Decisão 2013/652/EU veio estabelecer “regras pormenorizadas e requisitos específicos para a vigilância e comunicação de dados de forma harmonizada sobre a resistência antimicrobiana”. A Decisão preconiza a obrigatoriedade da vigilância em bactérias zoonóticas (Salmonella spp., Campylobacter jejuni), comensais indicadoras (Escherichia coli) e bactérias resistentes às cefalosporinas de 3.ª geração (E. coli produtoras de beta-lactamases de espectro estendido (ESBL)/AMPc), isoladas de animais (cecos de bovinos, suínos, frangos e perus) e alimentos (carnes das mesmas espécies animais à exceção dos perus), entre 2014 e 2020.
O Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária tem colaborado com a Direção-Geral de Alimentação Veterinária na execução do Plano de Vigilância de Resistência aos Antimicrobianos que permite avaliar o potencial que os animais da cadeia alimentar e seus produtos têm como reservatórios de bactérias resistentes aos antibióticos.
Resistência em bactérias zoonóticas e comensais
Na Europa, a situação da resistência aos antibióticos evidencia grandes variações, dependendo da bactéria, do grupo antimicrobiano e da região geográfica, provavelmente relacionadas com as diferenças entre países, relativamente ao consumo de antibióticos, ao controlo das infeções e às práticas nos cuidados de saúde. Em geral, os países do Norte da Europa têm percentagens de resistência inferiores aos do Sul e Leste (EFSA & ECDC, 2018).
Em Portugal, a prevalência de multirresistência tem sido elevada em Salmonella enterica de alimentos (suínos, bovinos e aves) e em E. coli de suínos, frangos, perus de engorda e bovinos (Clemente et al., 2015; EFSA & ECDC, 2018). Igualmente preocupante é a frequência muito elevada de resistência às fluoroquinolonas em Salmonella e E. coli de aves (frangos e perus), bem como na carne de frango (figura 3). No que respeita às cefalosporinas de 3.ª geração, a percentagem de resistência em Salmonella de aves foi nula em 2017 e em E. coli comensal de aves, bovinos e suínos situou-se entre 3% e 6%.
Todavia, a prevalência de E. coli resistentes às cefalosporinas de 3.ª geração (produtoras de ESBL/AMPC) obtidos de amostras cecais ao abate foi elevada, atingido níveis preocupantes nos suínos (64%), perus (49%), frangos (47%) e bovinos (37%) nos anos 2016-2017. A administração de cefalosporinas de 3.ª geração (ceftiofur) é permitida para suínos e bovinos, mas proibida em aves; assim, a elevada frequência de resistência encontrada em isolados cecais de aves pode ser explicada pela administração de outros antibióticos, nomeadamente as fluoroquinolonas. Portugal tem um elevado consumo deste grupo de antibióticos (EMA, 2018) e, consequentemente, uma elevada prevalência de resistência, facto que pode causar a seleção de outros genes de resistência, nomeadamente às cefalosporinas de 3.ª geração (Clemente et al., 2013, 2015).
Figura 3. Prevalência da multirresistência (MDR) em Salmonella de alimentos dos últimos 9 anos em Portugal (A) e prevalência da resistência à colistina e às fluoroquinolonas em isolados de E. coli comensal de cecos de animais da cadeia alimentar entre 2016-2017 (B).
Em Campylobacter isolado de frangos (cecos e carne) foi observado um nível elevado de resistência às fluoroquinolonas e tetraciclinas, tal como se observou em humanos (Carreira et al., 2012; EFSA & ECDC, 2017), representando uma preocupação visto a cadeia alimentar ser uma das formas de transmissão ao homem. Estes níveis de resistência podem ser atribuídos ao elevado consumo de fluoroquinolonas e tetraciclinas no nosso país (figura 4) (EMA, 2018).
Em Portugal, nos anos de 2016 e 2017, a frequência de resistência à colistina foi baixa em Salmonella enterica e E. coli de frangos, bovinos e carne destas espécies. Porém, a prevalência de bactérias resistentes foi mais elevada em suínos e, principalmente, em perus (25%) (EFSA & ECDC, 2018). Este antibiótico, pertencente ao grupo das polimixinas, tem sido utilizado desde a década de 1950 na medicina veterinária para prevenção e tratamento de infeções gastrointestinais causadas por E. coli (EMA, 2018). Portugal é o 4.º país da EU, a seguir à Espanha, Itália e Croácia, com o nível mais elevado de vendas de colistina, e o 3.º país com maior consumo nos animais de produção (Clemente et al., 2019). A descoberta da transmissão horizontal de genes de resistência à colistina em 2015, em diferentes espécies bacterianas isoladas de animais da cadeia alimentar, de alimentos e de humanos, sugere a ligação entre o uso da colistina na pecuária e a resistência a este antibiótico (Liu et al., 2015; Clemente et al., 2019).
Figura 4. Vendas (mg/PCU) por classe antimicrobiana em Portugal, de 2010 a 2016 (retirado de EMA, 2018).
Luta contra a resistência aos antibióticos
Num esforço conjunto, as organizações internacionais ligadas à Saúde Pública (OMS), Saúde Animal (OIE), Alimentação e Agricultura (FAO), aprovaram um conjunto de medidas que integram o Plano de Ação Mundial contra a resistência antimicrobiana, o qual envolve também outras organizações, como a Agência Europeia do Medicamento (EMA) e a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA).
Uma das medidas de controlo da resistência é a utilização prudente dos antibióticos para preservação da sua eficácia. Deve ser evitada ou, preferencialmente, proibida a utilização de alguns antibióticos em animais produtores de alimentos, especialmente os que constam da lista da OMS e que são considerados antibióticos de importância crítica (figura 5) para tratar infeções humanas complicadas (WHO, 2019).
Figura 5. Os antibióticos de importância médica utilizados em animais da cadeia alimentar, incluem os Antibióticos de Importância Crítica (Prioritários e Elevada Prioridade), Elevada Importância e Importantes (não apresentados na tabela; adaptado de WHO, 2019 e OIE, 2015).
Uma proibição completa do uso de antibióticos em animais teria, inevitavelmente, graves repercussões na saúde e no bem-estar animal, produtividade e, consequentemente, na economia (FAO, 2016). Várias medidas, tais como, redução efetiva da utilização abusiva e inadequada de antibióticos a animais produtores de alimentos, recurso a pré-bióticos e probióticos, melhoria das medidas de biossegurança e higiene, o uso de vacinas, o cumprimento das diretrizes sobre o uso prudente dos antibióticos por parte dos médicos veterinários, a redução da contaminação ambiental, contribuirão para a redução da utilização de antibióticos a administrar aos animais (Woolhouse et al., 2015, EMA & EFSA, 2017).
Dada a necessidade premente de preservar a eficácia dos antibióticos para tratamento de infeções graves causadas por bactérias multirresistentes em humanos, o uso de colistina no âmbito da saúde animal foi reavaliado pela EMA. Devido ao potencial de transmissão da resistência antimicrobiana entre espécies (Liu et al., 2015), todas as indicações para o tratamento profilático com colistina nos animais foram removidas, sendo a sua utilização apenas recomendada para o tratamento de animais infetados e, se necessário, dos coabitantes (EMA, 2016).
Considerações finais
A resistência antimicrobiana é um problema global, sendo transversal à medicina humana, à medicina veterinária, à agricultura e ao meio ambiente. Todos devem estar envolvidos, como parte importante na sua solução, desde o cidadão comum, passando pelos agricultores, criadores de animais, veterinários, médicos e farmacêuticos. A propagação de bactérias resistentes aos antibióticos tem de ser travada e só uma abordagem multidisciplinar, respeitando o conceito de “Uma Só Saúde” poderá combater eficazmente este flagelo.
*Artigo publicado originalmente na edição de março de 2020 da revista VETERINÁRIA ATUAL.
Agradecimentos
Projeto PTDC/CVT-CVT/28469/2017 – CIAinVET financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Referências
Carreira et al. (2012). J. Food Prot. 75:2100-2109
Clemente et al. (2013). Intern. J. Food Microbiol. 167:221-228
Clemente et al. (2015). Res. Microbiol. 166:574-77
Clemente et al. (2019). Int J Food Microbiol. 2; 296:37-42
Economou & Gousia (2015). Inf. Drug Res. 8:49-61
ECDC & EFSA & EMA (2015). EFSA Journal. 13:114
EFSA & ECDC (2018). EFSA Journal. 16(2):5182, 270 pp
EMA (2016). Updated advice on the use of colistin products in animals
EMA (2018). Eighth ESVAC report. P.1-115
EMA & EFSA (2017). EFSA Journal. 15(1):4666
FAO (2016). Drivers, dynamics and epidemiology of antimicrobial resistance in animal production. ISBN 978-92-5-109441-9
Liu et al. (2015). Lancet Infect. Dis. 16 (2):161-168
OIE (2015). List of Antimicrobial Agents of Veterinary Importance
WHO (2019). Critically important antimicrobials for human medicine. 6th revision 2018.
Woolhouse et al. (2015). Phil. Trans. R. Soc. B, 370