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Profissionais de saúde e tutores, todos têm um papel importante na prevenção da leishmaniose

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Os dados são claros e não deixam margem para dúvidas: Portugal é um País endémico para a leishmaniose. Não obstante, médicos veterinários, investigadores e até médicos de medicina humana reconhecem que há trabalho a ser feito no campo da prevenção da infeção por Leishmania. A 1 de junho assinala-se o Dia Mundial Contra a Leishmaniose, uma data que serve para reforçar os alertas deixados pelos especialistas.

“É curioso que me esteja a ligar para falar de leishmaniose. Ainda na semana passada diagnostiquei um caso. Era um cão do que podemos chamar de raça exótica [não autóctone], um Terrier Russo. O tutor contou que ele até estava a comer normalmente, mas estava muito magro, apresentava alguma perda de massa muscular e, embora não tivesse muitas manifestações dermatológicas, como vinha de uma das aldeias com maior prevalência de leishmaniose soou logo o alerta”, conta Duarte Diz Lopes à VETERINÁRIA ATUAL assim que atende o telefone. É paradigmático que o diretor clínico do Centro de Atendimento Médico-Veterinário (CAMV) VetSantiago, localizado no coração da cidade transmontana de Bragança, comece logo por contar um caso clínico de leishmaniose que apareceu na rotina profissional quotidiana. E é, igualmente, paradigmático tratar-se de um cão que não pertence à lista de raças caninas portuguesas. Este é um exemplo real e prático daquilo que os inquéritos seroepidemiológicos caninos realizados em Portugal Continental têm encontrado sobre a prevalência global da infeção por Leishmania.

 

Numa primeira instância, a localização do caso. Segundo o mais recente inquérito seroepidemiológico canino realizado em Portugal Continental, conduzido em 2021 (Almeida et al. 2022), a prevalência global da infeção por Leishmania “rondou os 13% a nível nacional”, com algumas regiões “nomeadamente os distritos de Portalegre e Castelo Branco, a atingirem prevalências que podem chegar quase aos 30%”, lembra André Pereira, médico veterinário, professor e investigador na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona (FMV-ULusófona). Logo a seguir, acrescenta o investigador, o mesmo trabalho que foi publicado há cerca de três anos, mostrou que depois dessas regiões com maior prevalência, está o distrito que pertence Trás-os-Montes, onde a prevalência “anda na casa dos 15%, 16%”, podendo chegar aos 20%.

“Num total de 2436 cães, tivemos o diagnóstico de 117 doentes, ou seja, cães com doença confirmada, o que dá uma percentagem de 4,8%. É bastante significativo.” – Duarte Diz Lopes, diretor clínico da VetSantiago

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Duarte Diz Lopes sabe bem que todos esses números têm nomes e tutores que lhe entram pela porta do CAMV regularmente à procura de soluções para uma doença que traz grande sofrimento ao animal e, em alguns casos, a morte. Com atividade no terreno há quase 30 anos, o médico veterinário lembra que, quando começou a trabalhar, “conheciam-se casos de leishmaniose no Alto Douro, no Alto Minho, na região da Régua”, mas, com o decorrer das décadas, a área da atividade do inseto Phlebotomus, o vetor de transmissão, começou a crescer e alastrou-se a todo o território de Portugal Continental.

O clínico aproveitou a casuística da prática clínica e há cerca de 20 anos fez um apanhado que publicou em forma de poster com os dados recolhidos entre janeiro de 2002 e dezembro de 2006 nos 12 concelhos de Bragança. “Num total de 2436 cães, tivemos o diagnóstico de 117 doentes, ou seja, cães com doença confirmada, o que dá uma percentagem de 4,8%. É bastante significativo”, recorda. Esta é a percentagem de cães que lhe chegam já com manifestações clínicas, porque, acrescenta, anualmente diagnostica entre 20 e 30 cães com serologia positiva para a presença de Leishmania, o que dá “em média, mais ou menos, dois ou três casos por mês”.

 

Que cães estão mais sujeitos a desenvolver doença grave?

Taco a taco com a prevalência de Bragança, está o distrito de Setúbal. Ana Mota recorda que, também na cidade do Sado, a prevalência “pode chegar aos 20%”, o que na prática clínica do CAMV Patas e Penas se reflete “anualmente, no diagnóstico de cinco a 10 casos”, admite a diretora clínica.

 

Sendo uma clínica de localização urbana, no centro da cidade, “não apanha muitos animais de grande porte, embora tenhamos alguns”, frisa a médica veterinária. E é neste ponto que entra o outro dado paradigmático do caso clínico inicialmente descrito: a raça diagnosticada. “As raças maiores, no geral, são as que vivem em vivendas, passam mais horas no exterior, às vezes o dia inteiro, o que as torna mais suscetíveis ao flebótomo. As raças médias e de pequeno porte estão mais confinadas em apartamentos durante uma boa parte do dia. Só saem mais ao início da manhã ou ao final da tarde, muito embora sejam essas as horas mais perigosas para serem contagiados com doenças transmitidas por vetores, como a leishmaniose”, descreve Ana Mota.

A recolha de dados realizada por Duarte Diz Lopes corrobora as palavras da colega de Setúbal. No CAMV de Bragança, entre os cães seguidos pelo médico veterinário nos anos avaliados, existiam algumas raças que “aparentemente mostraram maior suscetibilidade à doença”, nomeadamente Dobermann (29%), Samoyedo (29%), Epagneul Breton (23%) e Boxer (13%), enquanto os cães de raça indeterminada, embora sendo os mais observados em clínica e os que mais apresentaram seropositividade, apenas apresentaram uma suscetibilidade de 2%. O mesmo aconteceu com o Cão de Gado Transmontano e o Podengo e, nestes casos, a menor suscetibilidade parece estar relacionada com o facto de serem raças autóctones.

Hoje, passadas duas décadas dessa recolha de dados clínicos, e porque “as raças de cães [escolhidas pelos tutores] são um pouco como a moda, estão sempre a mudar”, admite o médico veterinário. Entre as raças onde encontra maior número de casos estão cães de raça Pastor Alemão e os de raça Labrador, aos quais se juntou o Terrier Russo diagnosticado no fim de maio.

André Pereira lembra que “do prisma evolutivo, o sistema imunitário de qualquer animal que seja autóctone de uma zona endémica teve de se adaptar à presença do parasita, sob pena de colocar em risco a sua existência”. A investigação já demonstrou este princípio com a publicação de estudo sobre a genética canina, no qual se “mostrou que as raças Boxer, Rottweiler, São Bernardo, Shar Pei e Dogue Alemão têm uma probabilidade superior de, quando são infetadas, vir a desenvolver doença clínica grave comparativamente com outras raças, muitas das quais autóctones. Isto faz todo o sentido do prisma biológico e do prisma evolutivo”, explica André Pereira.

“No esquema de vacinação que sugerimos em consulta está sempre incluída a vacina contra a leishmaniose” – Ana Mota, diretora clínica da Patas e Penas

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“Investimos imenso na prevenção”

Para o investigador da FMV-ULusófona, a importância do conhecimento destes dados é fundamental para que “os colegas possam agilizar as medidas profiláticas da leishmaniose em função da região onde estão a trabalhar”.

Tanto Duarte Diz Lopes como Ana Mota assim o fizeram. O médico veterinário de Bragança tem um plano de saúde desenhado para os clientes do CAMV no qual se reflete a “preocupação maior com a leishmaniose”. Esse plano de saúde inclui a sugestão de vacinação generalizada contra o flebótomo para todos os cães – sejam de raças exóticas ou autóctones – e o aconselhamento para a utilização de repelentes durante todo o ano. Eventualmente, pode ser aconselhado o recurso a imunomoduladores para reforço do sistema imunitário, sobretudo em animais seropositivos.

A diretora clínica da clínica Patas e Penas também optou por uma estratégia semelhante. “No esquema de vacinação que sugerimos em consulta está sempre incluída a vacina contra a leishmaniose”, conta à VETERINÁRIA ATUAL, acrescentando também que é sempre aconselhado aos tutores o uso de repelentes durante o ano inteiro. “Na clínica, investimos imenso na prevenção”, reforça a médica veterinária.

Ambos os clínicos garantem que seguem as orientações emanadas pelas guidelines internacionais – tanto pelo European Scientific Counsel Companion Animal Parasites (ESCCAP), como as publicadas pelo grupo LeishVet – nas quais se recomenda, primeiro, a testagem dos animais e, posteriormente, a vacinação de cães que vivem em zonas endémicas para a leishmaniose. E, durante a conversa, os dois diretores clínicos também relatam que não costumam ter grande oposição dos tutores à vacinação, mesmo sendo uma vacina com um valor de mercado um pouco mais elevado, comparativamente com as outras vacinas recomendadas e opcionais. Sobretudo, garante Duarte Diz Lopes, “se forem tutores que já tiveram animais com leishmaniose, nem é preciso convencê-los. Eles testemunharam como as consequências da doença foram negativas e gravosas para a saúde do animal e nem hesitam em vacinar”.

Neste campo da prevenção, André Pereira esclarece alguns pontos que podem melhorar a profilaxia realizada aos cães. Em primeiro lugar, “é preciso conhecer a diferença entre inseticida e repelente. O repelente – seja em pipeta ou em coleira – é que vai impedir que o vetor se alimente no cão”, explica. Com o inseticida, o inseto precisa alimentar-se do sangue do cão para, posteriormente, morrer e esse momento em que se alimenta é o suficiente para transmitir o parasita.

Em segundo lugar, acrescenta, “é preciso ter a noção de que, mesmo tendo o cão vacinado, não se deve descartar o uso de repelente. A vacina é uma barreira adicional, pensada como um método para evitar que o animal, se for infetado, venha a desenvolver doença grave. Os repelentes, se forem efetivos e utilizados segundo as recomendações dos fabricantes, vão impedir que o vetor se alimente no cão e lhe transmita o parasita”. É a conjugação dos dois métodos de prevenção que pode conduzir a uma proteção mais eficaz do animal.

O investigador defende ainda uma maior sensibilização e educação dos tutores para o conhecimento do mecanismo de transmissão do vetor. “O termo flebótomo não está bem enraizado entre os tutores e devia ser mais disseminado para uma maior consciencialização. Muitas pessoas, ao acharem que a doença se transmite por um mosquito, vão considerar que o maior problema está na existência de águas paradas. Só que o flebótomo tem uma dinâmica biológica completamente diferente”, refere André Pereira. No comportamento característico deste inseto, que tem cerca de metade do tamanho de um mosquito, este prefere viver “junto de  amontoados de madeira, de zonas de agregados de matéria orgânica, por exemplo, amontoados de folhas e de troncos” e se os tutores não souberem “de facto, quais são as características, em termos bioecológicos, do flebótomo que fazem com que o vetor se reproduza, nunca vamos conseguir controlar a sua disseminação”.

No que respeita à prevenção, na perspetiva de André Pereira, “a mensagem a passar é que todo e qualquer custo associado à prevenção – quer da infeção, quer do desenvolvimento da doença no cão – é indubitavelmente inferior ao custo do tratamento desta doença”. E reforça, lembrando que os custos não estão apenas relacionados com os valores monetários, “mas também com o custo emocional que toda a situação acarreta, pois, até ao momento, não existem moléculas efetivas para o tratamento parasitológico completo e a infeção tende a ser crónica para o resto da vida. Os animais sofrem com uma doença terrível”.

Daí que o investigador defenda uma “abordagem multimodal”. As várias frentes de ação passam pela utilização de repelentes eficazes contra o vetor responsável pela transmissão, pela sensibilização dos tutores mais relutantes para a vacinação contra a leishmaniose e pela educação sobre o perfil bioecológico do parasita de modo a manter os animais distantes do habitat natural do flebótomo para que “não possam existir surpresas”.

“A mensagem a passar é que todo e qualquer custo associado à prevenção – quer da infeção, quer do desenvolvimento da doença no cão – é indubitavelmente inferior ao custo do tratamento desta doença”- André Pereira, médico veterinário, professor e investigador na FMV-ULusófona

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A prevenção na medicina veterinária tem impacto na medicina humana

Como doença zoonótica, controlar a ação do parasita responsável pela leishmaniose na medicina veterinária terá consequências no impacto que a infeção tem nos humanos, especialmente num País endémico como Portugal. Rafael Rocha, médico interno de Infecciologia na Unidade Local de Saúde de S. João (ULS São João), tem-se dedicado ao estudo da infeção em humanos (ver caixa) e é claro ao afirmar: “Sabendo nós que há animais com infeção por Leishmania, devemos investir em medidas, não só de proteção individual nas pessoas, mas também em medidas de proteção nos animais, já que é um parâmetro fundamental para o controlo da Leishmania a nível local”.

E o clínico defende estas medidas de proteção, numa primeira abordagem, para controlar a população de flebótomos e, consequentemente, do número de cães e pessoas infetadas e, numa segunda análise, para prevenir um dos maiores problemas de saúde pública: o abandono animal. Isto porque, numa investigação que publicou em 2023 – Prevalence of asymptomatic Leishmania infection and knowledge, perceptions, and practices in blood donors in mainland Portugal – realizada junto de dadores do Instituto Português do Sangue e Transplantação, as respostas revelaram que cerca de 70% dos inquiridos já tinha ouvido falar da leishmaniose, maioritariamente em anúncios a produtos de saúde animal na televisão, mas existia um grande desconhecimento da doença em humanos. E quando questionados sobre as vias de transmissão do parasita, “a maioria apontava que o vetor era um mosquito e cerca de 10 a 20% das pessoas considerava que a Leishmania poderia ser transmitida através de mordeduras ou arranhadelas de um animal infetado”. De momento, “não existem casos descritos” de transmissão por ação do cão, mas esta ideia “pode ser algo que leve as pessoas a terem determinadas atitudes como, por exemplo, a abandonar o cão, por pensarem que elas próprias podem ser infetadas através do animal”, sublinha.

No combate a esta problemática, o Rafael Rocha refere na conversa com a VETERINÁRIA ATUAL que seria importante ter uma conjugação de esforços entre a medicina veterinária e a medicina humana, nomeadamente no campo da vigilância e da notificação. Tratando-se de uma zoonose, o especialista considera que seria pertinente a criação de uma “plataforma integrada na qual pudéssemos, simultaneamente, fazer o registo em tempo real dos casos diagnosticados em humanos e dos casos diagnosticados em animais”. Desta forma seria possível conhecer pormenorizadamente os dados de prevalência regional e as estirpes de Leishmania diagnosticadas em humanos e animais nas várias áreas.

“Sabendo nós que há animais com infeção por Leishmania, devemos investir em medidas, não só de proteção individual nas pessoas, mas também em medidas de proteção nos animais, que também é um parâmetro fundamental para o controlo da Leishmania a nível local” – Rafael Rocha, médico interno de Infecciologia na ULS São João

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E pessoas e animais também teriam a ganhar com a partilha de conhecimentos ao nível da abordagem diagnóstica e clínica entre médicos e médicos veterinários. Rafael Rocha enalteceu o caminho percorrido no Hospital de São João neste âmbito, com a criação de um grupo de trabalho One Health, no qual os médicos veterinários também têm lugar. Em conjunto, poderiam trabalhar, por exemplo, em formas de abordar a prevenção em populações com o sistema imunitário debilitado e de maior risco para o desenvolvimento de quadros graves da doença. Desta forma, acredita o médico, seria possível animais e pessoas “tirarem o melhor benefício da sua convivência e não o contrário, ou seja, serem prejudicados por uma doença zoonótica”.

Pessoas imunocomprometidas estão em maior risco

Rafael Rocha tem publicado vários trabalhos sobre a vertente humana da leishmaniose, recorrendo aos dados dos internamentos nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde e aos dados laboratoriais dessas unidades, pois em Portugal apenas a leishmaniose visceral, potencialmente fatal, é de declaração obrigatória.

Precisamente sobre esta doença, o trabalho Epidemiological and clinical trends of visceral leishmaniasis in Portugal: retrospective analysis of cases diagnosed in public hospitals between 2010 and 2020 mostrou que, nesse período, foram diagnosticados 221 casos, com “um aumento significativo na incidência nacional” a partir de 2016.

A maioria dos diagnósticos aconteceu em pessoas infetadas com o VIH e em crianças com menos de cinco anos, grupos que representaram cerca de 60% dos casos reportados.

Já o estudo Epidemiological and Clinical Aspects of Cutaneous and Mucosal Leishmaniases in Portugal: Retrospective Analysis of Cases Diagnosed in Public Hospitals and Reported in the Literature between 2010 and 2020 revelou que foram diagnosticados um total de 43 casos de leishmaniose cutânea e de 7 casos de leishmaniose das mucosas, com uma predominância de casos autóctones (86%).

O médico da ULS São João mostrou-se particularmente preocupado com o aumento do número de pessoas a fazer terapêuticas imunossupressoras – por exemplo, para tratar condições como a artrite reumatoide, lupús – e de doentes oncológicos com o sistema imunitário comprometido, assim como com o envelhecimento da população, pela natural imunossenescência dos idosos. São grupos que se juntaram aos que eram, tradicionalmente, considerados de risco: crianças ainda sem a proteção de um sistema imunitário amadurecido e indivíduos infetados com VIH. Afinal, reconhece o clínico, “existe, efetivamente, uma população crescente em risco de ser infetada e de, consequentemente, desenvolver a doença”.

*Artigo publicado na edição 194, de junho, da VETERINÁRIA ATUAL

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