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Animais de Produção

Pode o sexo da cria influenciar a produção de leite de uma vaca?

As fêmeas dos mamíferos despendem muita energia na função reprodutiva, nomeadamente na lactação (Hinde et al., 2014), com os custos de oportunidade e riscos a isso inerentes. A teoria mais amplamente aceite pelos biólogos evolucionistas para a alocação por essas fêmeas dos recursos disponíveis conforme o sexo da cria, é a Teoria de Trivers-Willard, que tem como formulação base que as fêmeas são capazes de adaptar o sexo das suas crias com base na sua própria condição corporal e social, de forma a maximizar o sucesso reprodutivo da próxima geração da sua descendência. Além disso, esta teoria afirma que a mãe pode adaptar a sua produção de leite ao sexo das suas crias. Esta estratégia é particularmente proveitosa em espécies em que existe competição entre os machos para acasalar, como acontece nos bovinos, em que os touros dominantes vão deixar mais descendentes, sendo que os touros mais fracos podem mesmo não ter hipótese de deixar descendência alguma. Por outro lado, esta teoria também descreve que um investimento nas crias fêmeas pode ser mais proveitoso quando a própria mãe está em más condições, uma vez que estas fêmeas não têm praticamente hipóteses de produzir machos dominantes, mas as suas filhas terão basicamente as mesmas hipóteses de deixar descendentes que as de vacas em melhores condições (Trivers and Willard, 1973).

A quantidade e qualidade do leite produzido é o fator mais importante na rentabilidade de uma vacaria de leite. De uma forma geral, em todos os países tem havido um aumento contínuo da produção leiteira em vacas, mercê de um aumento do mérito genético e de melhores condições de maneio para essa produção (Græsbøll et al., 2015; Quaresma et al., 2020). Se além destes fatores, e da diferença em termos de valor comercial que um vitelo ou vitela têm, o sexo da cria for também um fator que influencia a produção de leite, este tem de ser tido em conta (Norman et al. 2010, Chegini et al. 2015). No entanto, a utilização de sémen sexado tem maiores custos e uma menor fertilidade (Norman et al., 2010; Healy et al., 2013). Se um determinado sexo provar estar associado a uma maior produção de leite, isto levará a consequências óbvias no valor e divulgação da utilização de sémen sexado (Gillespie et al., 2017).

 

Até agora, os estudos realizados sobre a influência do sexo dos vitelos na produção de leite da mãe, tiveram resultados diferentes e por vezes contraditórios. Embora a maior parte dos estudos aponte para uma maior produção associada ao nascimento de vitelas, isso não foi observado em todas as populações. Por vezes, foi observada maior produção associada aos machos, outras a fêmeas, ou a não associação da produção de leite a nenhum dos sexos da cria (Beavers and Doormal 2014; Hinde et al., 2014; Barbat et al., 2014; Chegini et al., 2015; Græsbøll et al., 2015; Hess et al., 2016, Gillespie et al., 2017; Quaresma et al., 2020).

No maior estudo feito até agora, nos EUA, o nascimento de fêmeas estava associado a uma maior produção de leite em todas as lactações, cerca de 1,5% mais, apresentando mesmo resultados que pareciam indicar que esta influência se estendia às lactações subsequentes (Hinde et al., 2014). Ou seja, o sexo da cria podia influenciar não só a lactação decorrente do seu nascimento e a que decorria durante a sua gestação, mas também as seguintes. No Reino Unido, outro estudo também demonstrou que o nascimento de uma fêmea estava associado a um aumento da produção de leite em 1% na primeira lactação, mas que, pelo contrário, o nascimento de um macho na segunda lactação estava associado a uma produção de leite 0,5% maior. No entanto, neste estudo, não foi detetada influência da cria em gestação na lactação a decorrer (Gillespie et al., 2004). Em outro estudo, foi também observado que vacas que pariam uma fêmea apresentavam uma maior produção leiteira e percentagem de gordura no leite, assim como uma lactação mais longa. No entanto, esta maior produção de leite após parir uma vitela, não tinha efeitos nas lactações seguintes. É, contudo, importante considerar que neste último estudo não foi tida em conta a maior incidência de distócias no parto dos machos, que pode ter sido um importante fator para a maior produção após o nascimento de fêmeas (Chegini et al. 2015).

 

Em contraste com os estudos anteriores, em França (Barbat et al., 2014) e na Dinamarca (Graesboll et al., 2015) foi observada uma maior produção de leite após o parto de um macho. O efeito do sexo da cria na lactação a decorrer foi quase negligenciável no estudo em França (Barbat et al., 2014) mas, na Dinamarca, além de ser observada uma maior produção de leite na primeira lactação em vacas que pariram um macho (0,28%), esta diferença era ainda maior em vacas que tornavam a parir outro macho no segundo parto, subindo para mais 0,52% de litros de leite em comparação com outras combinações de sexo das crias nos dois primeiros partos. Foi avançado por estes investigadores que a causa poderia ser que uma vaca prenha de um macho diminuía a produção de leite para compensar a maior necessidade energética deste in utero. Além disso, as vacas pareciam favorecer, em termos de produção leiteira, um vitelo macho já nascido em detrimento de um macho a ser gerado, mas favoreciam um macho a ser gerado em detrimento de uma fêmea que já tivesse nascido (Græsbøll et al., 2015). De uma forma geral, o enviesamento da produção de leite dependente do sexo das crias pelas vacas parece ser maior no primeiro parto. Assim, o efeito do sexo de uma cria pode estar mascarado nas fêmeas multíparas pelo efeito cumulativo de partos de fetos de diferentes sexos no funcionamento da glândula mamária (Hinde et al., 2014).

Também há que considerar que o efeito do sexo da cria na produção de leite pode interagir com outros fatores, de formas complexas, dificultando a sua avaliação individual precisa. Igualmente, a diferença observada na produção leiteira em função do sexo da cria é geralmente menor do que a observada entre diferentes explorações leiteiras. Isto parece claramente indicar que outros aspetos do maneio podem ser mais importantes. Também, as diferenças de tamanho das crias parecem ser mais importantes para a produção de leite, embora o tamanho da cria e o sexo da mesma possam ter efeitos na produção de leite independentes um do outro, sabendo-se que os machos são, em média, maiores (Græsbøll et al., 2015).

 

Encontrar modelos para características biológicas tão complexas, como a produção de leite, é desafiante devido ao grande número de características intrínsecas e ambientais que a podem influenciar. Além disso, os modelos estatísticos usados podem, até certo ponto, influenciar os resultados e a interpretação dos mesmos. Assim, os diferentes resultados obtidos nos diferentes estudos podem ser uma consequência da utilização de diferentes modelos e da inclusão ou não de outras variáveis além do sexo da cria (Beavers and Doormal, 2014; Hinde et al., 2014; Barbat et al., 2014; Chegini et al., 2015; Græsbøll et al., 2015; Hess et al., 2016, Gillespie et al., 2017; Quaresma et al., 2020), como o tamanho desta, a ocorrência de distócia, a sazonalidade, a duração da lactação ou da gestação, as curvas de lactação, a raça e a utilização de sémen sexado, entre outras.

Na produção de leite de vaca, os vitelos são geralmente separados das mães logo a seguir ao nascimento, ou poucas horas após o mesmo, e criados com leite de substituição, pelo que as diferenças observadas na produção de leite conforme o sexo da cria ter-se-iam de ficar a dever a fatores que necessariamente afetam a lactogénese no pré-parto ou, quanto muito, no peri-parto (Hess et al. 2016). Esses mecanismos pelos quais o sexo fetal pode influenciar a produção de leite ainda não são, no entanto, completamente compreendidos.

 

O maior balanço energético negativo pelo qual as vacas passam em regimes mais intensivos de produção pode ser uma das causas para as diferenças observadas em como o sexo da cria pode afetar a produção leiteira, favorecendo ora um sexo ora outro, conforme o postulado da Teoria de Trivers-Willard. Sabe-se que vacas que perdem mais condição corporal a seguir ao parto têm maior probabilidade de parir vitelas no parto seguinte (Roche et al., 2006). Uma maior produção leiteira está geralmente associada a uma maior perda de condição corporal e também a uma maior probabilidade de parir vitelas (Meier et al., 2010). Esta pode ser afinal a razão pela qual parece que em determinadas circunstâncias o nascimento de vitelas parece estar associado a maior produção leiteira. Na verdade, a relação é inversa, sendo a maior produção leiteira a causa do nascimento de mais vitelas (Quaresma et al., 2020).

A influência do sexo dos vitelos na produção de leite, necessita de ser mais investigada antes de poderem ser feitas recomendações inequívocas para a utilização de sémen sexado para melhorar a produção leiteira (Hess et al., 2016). Além disso, pelo menos dois estudos diferentes concluíram que, apesar de poder haver efetivamente algum impacto do sexo da cria na produção de leite, este não era suficiente para ter impacto no lucro obtido de cada vaca (Barbat et al., 2014) ou encorajante da utilização de sémen para esse fim (Beavers and Van Doormal 2014). Não se deve esquecer, no entanto, que a principal razão para a utilização de sémen sexado na produção leiteira é a obtenção de novilhas de reposição e que essa função mantém toda a sua importância.

Conclui-se assim que, embora possa haver uma real influência do sexo da cria na produção de leite de uma vaca, essa influência pode ser variável, favorecendo um ou o outro sexo e, por vezes, nenhum deles. Umas das conclusões que parece fazer sentido, mas que necessita mais estudos para ser comprovada, é que o nascimento de fêmeas está associado a maiores produções de leite em regimes de maneio mais intensivos, enquanto o nascimento de machos tem esse efeito em regimes menos intensivos, nos quais também parece que por vezes esse efeito é nulo. Estes diferentes resultados, tendo em consideração a Teoria de Trivers-Willard, parecem indicar que em sistemas em que as vacas estão em melhores condições, o nascimento de machos está associado a maior produção. Por outro lado, quando em sistemas em que existem condições menos favoráveis à manutenção de uma boa condição corporal, o nascimento de vitelas está associado a maior produção leiteira. Para provar estas conclusões, mais estudos terão de ser desenvolvidos, incluindo mais populações de bovinos leiteiros, em diferentes condições de maneio, para que se perceba a correlação entre o índice de bem-estar e condição corporal com o enviesamento da produção de leite dependente do sexo da cria.

*Med. Vet. PhD, ECAR Resident

Centro de Ciência Animal e Veterinária (CECAV)

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Agradecimentos:

Este artigo é baseado no trabalho desenvolvido em conjunto com as colegas Mariana Rodrigues, Patrícia Sousa-Medeiros, Ângela Martins e Rita Payan-Carreira, que foi já publicado nos seguintes trabalhos:

Quaresma, M., Rodrigues, M., Medeiros-Sousa, P., A. Martins, A. (2020). Calf-sex bias in Holstein dairy milk production under extensive management. Livestock Science, 235. 104016. https://doi.org/10.1016/j.livsci.2020.104016.

Miguel Quaresma and R. Payan-Carreira (October 8th 2020). Calf-Sex Influence in Bovine Milk Production (Online First), IntechOpen, DOI: 10.5772/intechopen.93966. Available from: https://www.intechopen.com/online-first/calf-sex-influence-in-bovine-milk-production.

Referências bibliográficas:

Barbat A, Lefebvre R, Boichard D. Replication study in French Holstein and Montbeliarde cattle data. 2014. Available:http://www.plosone.org/annotation/listThread.action?root=78955.

Beavers L, Van Doormaal B. Is Sex-Biased Milk Production a Real Thing? Available: http://www.cdn.a/document.php?id=348: Canadian Dairy Network, 2014.

Chegini A, Hossein-Zadeh NG, Hosseini-Moghadam H. Effect of calf sex on some productive, reproductive and health traits in Holstein cows. Spanish Journal of Agricultural Research. 2015; 13(2).

Gillespie AV, Ehrlich JL, Grove-White DH (2017) Effect of Calf Gender on Milk Yield and Fatty Acid Content in Holstein Dairy Cows. PLoS ONE 12 (1): e0169503. doi:10.1371/journal.pone.0169503

Græsbøll K, Kirkeby C, Nielsen SS, Christiansen LE (2015) Danish Holsteins Favor Bull Offspring: Biased Milk Production as a Function of Fetal Sex, and Calving Difficulty. PLoS ONE 10(4): e0124051. doi:10.1371/journal.pone.0124051

Healy AA, House JK, Thomson PC. Artificial insemination field data on the use of sexed and conventional semen in nulliparous Holstein heifers. Journal of Dairy Science. 2013; 96(3):1905±14. doi: 10.3168/jds.2012-5465 PMID: 23357013

Hess MK, Hess AS, Garrick DJ. The Effect of Calf Gender on Milk Production in Seasonal Calving Cows and Its Impact on Genetic Evaluations. Plos One. 2016; 11(3).

Hinde K, Carpenter AJ, Clay JS, Bradford BJ. Holsteins favor Heifers, not Bulls: biased milk production programmed during pregnancy as a function of fetal sex. PloS one. 2014; 9(2):e86169. doi: 10.1371/journal.pone.00861694.

Meier, S., Williams, Y.J., Burke, C.R., Kay, J.K., Roche, J.R., 2010. Short communication: feed restriction around insemination did not alter birth sex ratio in lactating dairy cows. J. Dairy Sci. 93, 5408–5412. https://doi.org/10.3168/jds.2009-2935.

Norman HD, Hutchison JL, Miller RH (2010) Use of sexed semen and its effect on conception rate, calf sex, dystocia, and stillbirth of Holsteins in the United States. J Dairy Sci 93(8): 3880–3890

Quaresma, M., Rodrigues, M., Medeiros-Sousa, P., A. Martins, A. (2020). Calf-sex bias in Holstein dairy milk production under extensive management. Livestock Science, 235. 104016. https://doi.org/10.1016/j.livsci.2020.104016.

Roche, J.R., Lee, J.M., Berry, D.P., 2006. Pre-conception energy balance and secondary sex ratio–partial support for the Trivers-Willard hypothesis in dairy cows. J. Dairy Sci. 89, 2119–2125. https://doi.org/10.3168/jds.S0022-0302(06)72282-2.

Trivers RL, Willard DE. Natural selection of parental ability to vary the sex ratio of offspring. Science. 1973; 179(4068):90–92. doi: 10.1126/science.179.4068.90 PMID: 4682135

*Artigo publicado originalmente na edição 147,  de março de 2021, da VETERINÁRIA ATUAL.

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