Laboratório de Virologia, Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV, I.P.), Unidade Estratégica de Investigação e Serviços em Produção e Saúde Animal, Laboratório de Virologia
Margarida D. Duarte* (Médica veterinária, investigadora)
Fábio A. Abade dos Santos* (Médico veterinário, estudante de doutoramento)
Teresa Fagulha (Médica veterinária)
Carina L. Carvalho (Médica veterinária, investigadora)
Fernanda Ramos (Médica veterinária)1
Centro de Investigação Interdisciplinar em Sanidade Animal, Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade de Lisboa (CIISA FMV)
Ana Isabel S. Duarte (Médica veterinária, professora associada)
Instituto de Medicina Molecular – João Lobo Antunes, Universidade de Lisboa
João Pedro Simas (Médico veterinário, professor associado)
Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), Divisão de Epidemiologia e Saúde Animal e Direção de Serviços de Alimentação e Veterinária da Região de Lisboa e Vale do Tejo
Patrícia Tavares Santos (Médica veterinária)
Pedro Canavilhas Melo** (Médico veterinário)
*membros do CIISA FMV
** Vetnatura-Lisboa
Os coronavírus (CoV) são vírus de RNA não segmentado (de cadeia simples e polaridade positiva), por isso mais sujeitos a mutações dos que os vírus de DNA, e com capacidade de recombinação. Os seus grandes genomas de 27 a 32 kilobases, os maiores genomas de RNA viral conhecidos [1], propiciam a ocorrência e acumulação de erros (mutações) durante a replicação viral. Face a estes dois atributos geradores de variabilidade genética (elevada taxa de mutação e capacidade de recombinação), os coronavírus são reconhecidos entre os vírus com maior capacidade de evolução [2].
Estes vírus pertencem à família Coronaviridae e são caracterizados morfologicamente pela disposição das espículas proteicas que possuem na sua camada mais exterior – o invólucro, e que ao microscópio eletrónico lhes conferem a aparência de uma coroa, justificando o seu nome [3]. Dentro da subfamília Orthocoronavirinae, são reconhecidos quatro géneros, nomeadamente os Alpha-, Beta-, Gamma– e Deltacoronavirus [4].
Estes vírus infetam inúmeras espécies de mamíferos (suínos, bovinos, equídeos, gatos, cães, ratos, morcegos, coelhos, furões, martas, etc.) e aves (galinhas, patos, perus, etc.), tanto domésticas como selvagens (Tabela 1) [5].
Tabela 1. Listagem dos principais coronavírus que afetam os animais de companhia, os animais de pecuária e o homem.
Os coronavírus estão amplamente disseminados no meio ambiente e têm distribuição mundial [6]. Por esta razão estima-se que, após o primeiro ano de vida, uma grande percentagem (cerca de 80%) das espécies domésticas, incluindo cães, gatos, ruminantes e suínos, já tenham sido infetados por algum coronavírus e desenvolvido anticorpos tornando-se seropositivos, sem terem, contudo, apresentado sinais clínicos associados à infeção [5]. De facto, muitas infeções causadas por coronavírus são subclínicas, i.e., assintomáticas, passando por isso despercebidas. No entanto, estes animais aparentemente saudáveis podem excretar coronavírus e funcionar como portadores, atuando como agentes de propagação e disseminação destes vírus [5].
Infetam vários tipos de células, preferencialmente células epiteliais como as que compõem a mucosa digestiva e a mucosa do trato respiratório. Causam doenças de gravidade muito variável, desde infeções inaparentes a síndromes respiratórias severas que podem ter desfecho fatal [6]. Devido ao tropismo celular destes vírus para os epitélios de revestimento, as doenças resultantes manifestam-se geralmente na forma gastrointestinal (CCoV, FCoV, BCoV) ou respiratória (CRCoV, BCoV). Nesta última, podem afetar o trato respiratório superior, como é o caso das constipações comuns (HCoV 229-E), ou inferior causando broncopneumonias e pneumonias (SARS, MERS, Covid19) [9]. Alguns coronavírus causam doenças reprodutivas, polisserosites (inflamação das serosas), sialodacriloadenites (inflamação das glândulas salivares e lacrimais), hepatites, encefalomielites e nefrites [5].
Uma das consequências da grande plasticidade genómica dos coronavírus é a possibilidade de um determinado vírus adquirir a capacidade de infetar novas espécies. Os eventos de salto de barreira de espécie, que por vezes requerem uma espécie intermediária são, no entanto, raros. Requerem o alinhamento contemporâneo de uma série de fatores, nomeadamente de um animal reservatório (espécie onde o vírus replica, geralmente sem induzir patologia), em fase ativa de excreção de grandes quantidades de vírus, e do contato muito próximo e repetido com a nova espécie potencialmente suscetível [7]. Os contatos frequentes, diretos ou indiretos, de humanos com animais reservatórios de coronavírus, como os morcegos [8] e os ratos, potencialmente infeciosos para o Homem, aumenta a probabilidade de transmissão viral entre espécies (Figura 1).
Figura 1. O diagrama ilustra as cadeias de transmissão para os hospedeiros suscetíveis pelas interceções dos círculos coloridos, a partir de hospedeiros reservatório (a vermelho), passando ou não, por espécies intermediárias (a cinzento). Os círculos tracejados agrupam coronavírus de diferentes espécies animais com relações genéticas próximas.
A relação entre um vírus e o seu hospedeiro é muito complexa, envolvendo uma infinidade de fatores virais e do hospedeiro, na infeção viral e consequente patogénese. Durante a infeção, o hospedeiro ativa várias linhas de mecanismos celulares de defesa. Enquanto parasitas intracelulares obrigatórios, que dependem de células ativas para se multiplicarem, os vírus desenvolveram estratégias para sequestrar a maquinaria celular do hospedeiro, em prol da sua replicação e manutenção.
Durante anos, os HCoVs foram considerados agentes patogénicos causadores de doença respiratória leve que afetavam a população humana [2]. No entanto, o aparecimento do SARS-CoV veio mostrar que os coronavírus emergentes ou reemergentes podem constituir uma ameaça para saúde pública global.
Os extensos inquéritos epidemiológicos conduzidos na China permitiram localizar a origem do coronavírus da CoVid-19 num mercado de vida selvagem [9]. Em alguns países não-Europeus, estes mercados proporcionam efetivamente circunstâncias facilitadoras da transmissão interespecífica de agentes patogénicos. Essas condições incluem 1) a reduzida higiene, uma vez que estes espaços são frequentemente palco de abates no momento da venda dos animais, originando a contaminação de múltiplas superfícies com sangue e fezes dos animais, 2) a presença de animais altamente stressados pela captura e confinamento, o que acelera a excreção de vírus, 3) o contacto próximo e continuado entre várias espécies, extremamente improvável noutras circunstâncias pelo fato das mesmas serem originárias de locais remotos altamente inacessíveis, 4) a proximidade que estes mercados proporcionam entre o Homem e várias espécies domésticas (incluindo espécies pecuárias e animais de companhia) e 5) o facto dos animais (selvagens e pequenos animais domésticos) serem subsequentemente consumidos, por vezes crus ou mal cozinhados, promovendo o contato íntimo entre vírus e trato intestinal dos novos hospedeiros, proporcionando a infeção.
O diagnóstico laboratorial dos coronavírus faz-se por métodos moleculares, altamente sensíveis e específicos (ex. real time PCR), por isolamento de vírus em células suscetíveis ou por serologia, no caso de animais não vacinados. O diagnóstico em vida é possível a partir de fezes, sangue, excreções respiratórias, no caso da CoVid-19 e líquido ascítico no caso dos felinos com suspeita de PIF. As lesões macroscópicas e a histopatologia podem ser muito informativas post-mortem.
Reveem-se de seguida as características de alguns coronavírus dos animais domésticos, incluindo os animais companhia, e do Homem.
1. Coronavírus dos caninos
O coronavírus entérico canino (CCoV ou CECoV), pertence ao género Alphacoronavirus, e causa uma gastroenterite ligeira, caracterizada por diarreia, cuja transmissão se faz por via oro-fecal [5]. Esta infeção entérica é comum em cães (Canis lupus familiaris) em todo o mundo, tendo também sido registadas epidemias de enterite por coronavírus em cães selvagens [5]. Para além disso, foram detetados coronavírus semelhantes ou idênticos ao CCoV em raposas (Vulpes vulpes), cães-guaxinim (Nyctereutes procyonoides) e gatos-bravos (Felis silvestris silvestris) [5]. A doença nos cães é semelhante à causada pelos coronavírus entéricos em outras espécies, ocorrendo destruição das células que revestem as vilosidades intestinais, causando má digestão e má absorção dos alimentos, e consequentemente diarreia [5]. A suspeita clínica de infeção por coronavírus canino deve ser sempre confirmada por testes laboratoriais, geralmente moleculares, uma vez que são muitas as causas possíveis de diarreia. A deteção de anticorpos nos cachorros não permite diagnosticar a doença, uma vez que estes podem ter tido origem no colostro e representar imunidade passiva [5]. Existe no mercado uma vacina inativada para o controle da infeção pelo coronavírus canino, mas o seu valor protetor é controverso [5].
Identificaram-se também estirpes do coronavírus canino pantrópicas (i.e., com tropismo para vários tecidos), atribuídas a doença sistémica grave em cães, caracterizada por febre, anorexia, depressão, vómito, diarreia, leucopenia e sinais neurológicos de ataxia e convulsões [5].
O coronavírus respiratório canino (CRCoV) foi identificado pela primeira vez em 2003 em amostras obtidas do trato respiratório de cães com doença respiratória infeciosa (tosse do canil) alojados em abrigos no Reino Unido [5]. Tem também sido frequentemente identificado em cães da Europa, América do Norte e Ásia.
A doença caracteriza-se por tosse seca e metálica. Embora contagiosa, a doença tem geralmente uma expressão ligeira e autolimitante, causando elevada morbilidade mas baixa mortalidade, e ocorrendo geralmente em populações de cães confinados, como por exemplo, em centros de recolha oficiais, alojamentos ou hospitais veterinários [5]. No entanto, a doença pode progredir para uma broncopneumonia potencialmente fatal.
A tosse do canil é considerada uma infeção complexa, multifatorial, na qual estão envolvidos vários agentes virais, nomeadamente o CRCoV, que participa nas fases iniciais da infeção, comprometendo as vias aéreas superiores e propiciando infeções secundárias por outros vírus (como o herpesvírus canino, o vírus da parainfluenza canina, o adenovírus canino tipo 1 e 2, o pneumovírus canino e o vírus da influenza canina), mas também bactérias como Bordetella bronchiseptica, Mycoplasma spp, Streptococcus sp, Pasteurella sp, Pseudomonas sp e vários coliformes [5].
O CRCoV está intimamente relacionado com o coronavírus bovino (BCoV) e o HCoV-OC43, com os quais apresenta identidade nucleotídica no gene que codifica as espículas do invólucro viral, de 97,3% e 96,9% respetivamente, sendo claramente distinto do Coronavírus entérico canino (CCoV ou CECoV) [5]. Tal como o BCoV e o HCoV-OC43, o CRCoV pertence ao género Betacoronavírus.
2. Coronavírus dos felinos
A grande maioria das infeções causadas por FCoV, pertencente ao género Alfacoronavirus, é benigna, não sendo detetadas ou causando diarreias leves decorrentes de enterite [5]. No entanto, os FCoVs podem ocasionalmente induzir enterites mais graves e infeções persistentes.
De acordo com as propriedades serológicas, os FCoVs são classificados em dois serótipos (I e II), ambos capazes de causar uma forma de doença progressiva, muito mais grave, designada peritonite infeciosa felina (PIF). A PIF pode apresentar-se numa forma “húmida”, caracterizada por derrame abdominal característico, ou na forma “seca”, sem derrame abdominal [5]. Menos de 10% dos gatos seropositivos a FCoV, desenvolvem PIF [11,12]. Assim, as manifestações patológicas não são apenas uma propriedade específica de uma estirpe de vírus, pois as estirpes de vírus individuais podem causar qualquer forma da doença em gatos. Com efeito, a patogénese da peritonite infeciosa felina é complexa e não se encontra totalmente esclarecida. A infeção intestinal por coronavírus entérico é central para o desenvolvimento da peritonite infeciosa [5]. A ocorrência esporádica de peritonite infeciosa felina é explicada pelo somatório de mutações do coronavírus entérico durante a infeção natural de gatos, resultando no aparecimento de um vírus com tropismo para as células da linhagem monócitos/macrófagos, ao invés do tropismo para as células epiteliais do intestino [5]. Contudo, em 1989, surgiram evidências de um aumento da infeção in vitro, dependente de anticorpos (ADE), em culturas primárias de macrófagos peritoneais de gato infetados por PIFV [13]. O exacerbamento da doença em gatos que foram infetados quando já possuíam imunidade humoral dirigida contra a proteína das espículas, e o facto de gatos imunizados com uma vacina recombinante expressando essa proteína terem morrido mais cedo do que os animais controlo, evidenciou que, também in vivo, se verifica um agravamento da doença decorrente da presença de anticorpos não-neutralizantes à medida que a resposta imunitária contra PIF é montada. Esta doença fatal, descrita pela primeira vez em 1963 [10], resulta assim de uma resposta imunitária exagerada à infeção viral, e não modulada, com consequente dano de vários tecidos, devido à formação e deposição de imunocomplexos nos pequenos vasos.
A grande maioria das infeções naturais que ocorrem na Europa e América é causada pelo serótipo I, enquanto que os FCoVs do serótipo II são mais frequentes nos países asiáticos, onde chegam a representar cerca de 25% das infeções naturais, sendo aparentemente mais virulentos [5].
Pensa-se que os coronavírus felinos do serótipo II tenham emergido por dupla recombinação entre o serótipo I do FCoV e o coronavírus dos cães (CCoV), em gatos simultaneamente infetados por estes dois vírus [14]. Nos vírus do serótipo II, um terço (10 kb) do genoma do FCoV serótipo I, foi substituído pelas regiões equivalentes do genoma do CCoV.
Uma vez que os locais em que ocorre a recombinação diferem nos diferentes isolados, percebe-se que os FCoV de ambos os serótipos surjam continuamente devido a episódios de recombinação independentes [5].
Nos FCoVs do serótipo II, a região do genoma que codifica a proteína de ligação ao recetor celular (a chave) tem origem no genoma do CCoV, justificando a utilização de diferentes recetores pelos dois serótipos (FCoV I e II).
Os animais persistentemente infetados eliminam o vírus por períodos prolongados, desempenhando um papel central na disseminação e manutenção de FCoVs nas diferentes populações de gatos. A transmissão ocorre por via fecal-oral [5].
3. Coronavírus dos suínos
A gastroenterite transmissível dos suínos (TGE) é uma doença altamente contagiosa dos suínos (Sus scrofa domesticus) com distribuição mundial [5], causada por um coronavírus que pertence ao gênero Alphacoronavirus [15]. O TGEV replica nos enterócitos intestinais afetando maioritariamente porcos jovens. É caracterizada por diarreia aquosa, vómitos e desidratação. A taxa de mortalidade em leitões recém-nascidos pode atingir os 100% [5], resultando em perdas económicas significativas para as explorações de porcos.
A imunização passiva via colostro, protege eficazmente os leitões recém-nascidos contra a infeção por TGEV, que pode ser alcançada através da imunização de porcas gestantes com vacinas inativadas ou atenuadas [5].
O coronavírus respiratório porcino (PRCoV) surgiu posteriormente, através de deleções genéticas do vírus entérico (TGEV) que resultaram na perda do seu tropismo entérico, adquirindo um padrão de tropismo e transmissão respiratória. Este novo vírus substituiu o seu ancestral entérico em muitas regiões do mundo [5]. Foi identificado pela primeira vez na Bélgica em 1984 e reportado em 1986 na Dinamarca, com base na seroconversão de suínos que se sabiam livres de gastroenterite transmissível. O TGEV está intimamente relacionado com o coronavírus entérico felino e o coronavírus canino. A doença respiratória causada por este coronavírus é geralmente leve ou mesmo subclínica.
A diarreia epidémica porcina (PED) é uma doença diarreica de leitões descrita pela primeira vez em porcos na Inglaterra em 1971 [16], tendo-se posteriormente alastrado a outros países europeus e asiáticos [17] e da América do Norte [18]. A doença é causada por um Alphacoronavírus diferente (CV777). O PEDV pode infetar porcos de qualquer idade, de neonatos a porcos adultos, e também javalis. No entanto, a gravidade da doença difere de acordo com a idade, sendo muito mais severa em neonatos e em leitões pré-desmame, onde geralmente induz a morte por diarreia aquosa, às vezes precedida por vómitos. Nesta faixa etária, a mortalidade pode ser muito alta (até 80%) devido a desidratação. Em muitos surtos, os leitões mais velhos não são afetados. A infeção de suínos adultos é frequentemente assintomática, embora possa ocorrer diarreia esporádica [5]. O diagnóstico deve ser confirmado laboratorialmente. Algumas vacinas atenuadas estão disponíveis em alguns países.
A síndrome da diarreia aguda dos suínos (SADS), foi identificada pela primeira vez no sul da China, em janeiro de 2017, na sequência de um episódio de mortalidade de cerca de 24,000 leitões. É causada por um coronavírus, SADS-CoV, [19], também conhecido por SeACoV [20]. A doença caracteriza-se por diarreia aguda e vómito, causando uma mortalidade superior a 90% em leitões com menos de 5 dias de idade [5]. O genoma do SADS-CoV partilha uma identidade genética muito elevada (98,5%) com um coronavírus de morcegos pertencente do género Rhinolophus, que são também considerados os reservatórios do SARS-CoV. A identificação do SADS-CoV poderá constituir a primeira evidencia de um “salto” viral (spillover) de uma espécie animal selvagem para uma espécie doméstica, sem requisito de espécie intermediária.
O deltacoronavírus porcino (PDCoV), é um vírus entérico dos suínos, com tropismo para o trato gastrointestinal, semelhante ao TGEV e PEDV, foi descoberto em animais saudáveis na China em 2012, no decurso de investigações epidemiológicas [21]. Dois anos depois, este vírus foi identificado em suínos com diarreia grave, vómitos e enterite atrófica nos Estados Unidos e na China [22]. As manifestações clínicas são semelhantes ao TGEV ou PEDV. Foram relatadas infeções graves em leitões nos Estados Unidos, em 2014, com alta mortalidade sem o envolvimento de outros agentes patogénicos [23]. No entanto, registam-se coinfecções com PEDV, rotavírus e PDCoV [24].
O vírus da encefalomielite hemaglutinante porcina (PHEV) é o único coronavírus porcino neurotrópico produzindo sintomas neurológicos em porcos suscetíveis, e alta mortalidade em leitões nas primeiras semanas de vida. A infeção ocorre por via oral-nasal, atingindo os plexos do nervo gástrico e entérico e causando glanglioneurite com comprometimento do sistema nervoso central (SNC) por encefalomielite. As manifestações clínicas incluem anorexia, tremor e paraparesia [5].
Devido às suas características, este vírus induz aglutinação de eritrócitos de várias espécies, como murganhos, ratos e galinhas.
4. Coronavírus dos bovinos
Os coronavírus dos bovinos (Bos taurus) foram identificados pela primeira vez como os agentes causais de diarreia dos vitelos nos Estados Unidos em 1973 [25] e, desde então, são reconhecidos mundialmente pela sua associação a três síndromes clínicas, com um impacto económico considerável, nomeadamente a diarreia dos vitelos, a disenteria de inverno com diarreia hemorrágica em adultos [26,27] e infeções respiratórias em bovinos de várias idades. Estas infeções pertencem ao complexo das doenças respiratórias dos bovinos ou febre de remessa de bovinos confinados. O BCoV é geneticamente muito próximo do HCoV-OC43, tendo sido sugerido que o vírus humano resultou de uma transmissão zoonótica do BCoV, a partir de bovinos infetados [28].
A diarreia dos vitelos que ocorre maioritariamente em bezerros com menos de 3 semanas de idade, após o declínio de anticorpos maternos, é causada pela coinfeção do BCoV em conjunto com outros agentes patogénicos entéricos, nomeadamente rotavírus, torovírus, criptosporídeos e estirpes Escherichia coli enterotoxigénicas, sendo a gravidade da diarreia resultante dos efeitos cumulativos dos vários agentes envolvidos [28]. A diarreia dos vitelos é geralmente sazonal, sendo mais comum no inverno, em parte devido à maior estabilidade do vírus a baixas temperaturas.
A disenteria de inverno (diarreia hemorrágica) é uma doença aguda e esporádica do gado adulto, que ocorre em todo o mundo, sendo causada pelo BCoV [5].
A doença é caracterizada por diarreia explosiva, geralmente com sangue, acompanhada de diminuição da produção de leite, depressão, anorexia e alterações respiratórias frequentes. As taxas de morbilidade variam de 20 a 100% nos núcleos afetados, mas as taxas de mortalidade são geralmente baixas (1–2%) [5]. Em outros ungulados em cativeiro e em estado livre, ocorre uma síndrome semelhante à disenteria de inverno associada a variantes de coronavírus bovino, o que sugere que certos ungulados selvagens (os) que partilham áreas de pastagem comuns com o gado, podem ser um reservatório para estirpes de coronavírus transmissíveis ao gado, ou vice-versa [29].
O coronavírus bovino causa também infeções respiratórias em bovinos de várias idades [5], sendo responsável por doença respiratória leve (tosse, rinite) ou pneumonia em bezerros com 2 a 6 meses de idade. Um estudo epidemiológico em bezerros desde o nascimento até às 20 semanas de idade confirmou a excreção fecal e nasal do coronavírus, com destaque para a diarreia na infeção inicial. Posteriormente, ocorreu eliminação intermitente pela via respiratória, com ou sem sinais de doença, o que sugere que a imunidade local a longo prazo no trato respiratório superior seja ineficaz na mediação da eliminação do vírus. Embora muitos coronavírus possuam uma gama de hospedeiro restrita, os Betacoronavírus, como é o caso dos coronavírus dos bovinos, e também do coronavírus do SARS, podem infetar outras espécies de animais, incluindo a fauna selvagem. Com efeito, o BCoV pode também estar associado a doença respiratória nos cães e a episódios de doença intestinal ligeira nos humanos [5].
5. Coronavírus dos equinos
O coronavírus equino (ECoV) é um Betacoronavírus [5] com associação clínica e epidemiológica a febre, depressão, anorexia e menos frequentemente, cólica e diarreia em cavalos adultos. A via de transmissão é provavelmente fecal-oral, ocorrendo eliminação de vírus pelas fezes dos cavalos infetados, quer estes exibam sinais de doença, quer sejam assintomáticos. As complicações mais graves são raras e incluem septicemia e endotoxémia por rotura da barreira gastrointestinal, e encefalopatia associada à hiperamonémia, O vírus infecta principalmente a mucosa do intestino delgado, causando enterite. A doença é geralmente autolimitada, ocorrendo habitualmente recuperação facilitada pela aplicação de suporte clínico. O ECoV é um vírus próximo do coronavírus bovino (BCoV) [30,31].
6. Coronavírus das aves
O vírus da Bronquite Infeciosa (IBV), pertence ao género Gamacoronavírus e é o agente etiológico de uma doença aguda das galinhas (Gallus gallus) [32]. Como outros coronavírus, caracteriza-se pela sua rápida disseminação e notável capacidade de alteração do seu genoma, quer por mutação quer por recombinação genética [33]. Outras aves, selvagens e domésticas, como perus, faisões e pintadas, são suscetíveis à infeção pelo IBV [33]. A taxa de morbilidade em galinhas atinge os 100% e a mortalidade pode ser superior a 50%, se ocorrerem infeções bacterianas secundárias [34]. Para além de causar doença respiratória e renal, este coronavírus aviário pode também afetar o aparelho reprodutor, levando a quebras acentuadas da produção e diminuição da qualidade dos ovos cujas cascas ficam quebradiças e rugosas. O IBV pode também originar proventriculites [35].
O coronavírus aviário foi detetado pela primeira vez nos Estados Unidos da América, em Massachusetts no ano de 1937, e durante muito tempo o serótipo “Mass” foi o único conhecido. Atualmente, o IBV tem distribuição mundial e conhecem-se vários serótipos e genótipos [36].
A bronquite infeciosa representa uma ameaça para a avicultura, a nível mundial [36]. As regras de biossegurança e a vacinação são as medidas utilizadas para o controlo desta doença. No entanto a variação antigénica do IBV contorna frequentemente a vacinação, porque os vários serótipos e genótipos não produzem, na maior parte das vezes, proteção cruzada [36].
A deteção de vírus IBV em aves selvagens saudáveis, tem reforçado a hipótese destas aves atuarem como reservatórios naturais destes vírus para as aves domésticas [37]. O aparecimento na Europa da variante QX, originária da China, deve-se, muito possivelmente, à disseminação por aves selvagens migratórias [38]. A vigilância e a identificação das variantes virais em circulação, são essenciais para controlar a transmissão de variantes de IBV emergentes. Não há nenhuma descrição de infeção pelo IBV em humanos [39].
O coronavírus dos perus (TCoV) é o agente etiológico de uma doença entérica e aguda dos perus, denominada enterite dos perus ou enterite transmissível dos perus (bluecomb disease em Inglês) [40]. Esta doença afeta perus (Meleagrisis gallopavo) de todas as idades, mas a sua gravidade é maior nas aves mais jovens, provocando elevados danos económicos, decorrentes do aumento da taxa de mortalidade e do fraco índice de conversão alimentar [40]. O TCoV está presente no intestino e nas fezes, sendo a transmissão efetuada pela via fecal-oral. As aves que recuperam da doença, excretam o vírus nas fezes durante várias semanas, possibilitando a disseminação entre bandos e explorações avícolas [41]. Apesar de não haver registo de casos de doença entérica por TCoV em galinhas, alguns estudos experimentais comprovaram que o vírus tem capacidade para replicar no intestino desta espécie, levantando a hipótese de as galinhas poderem ser vetores da infeção para os perus [42].
O TCoV é também um dos agentes causais da síndrome da enterite e da mortalidade dos perus jovens, PEMS (poult enteritis- mortality syndrome), síndrome de etiologia multifatorial, onde estão implicados outros agentes virais [43]. Os perus com idade inferior a quatro semanas são os mais atingidos, apresentando atraso de crescimento, diarreia e disfunção imunitária. A taxa de morbilidade é elevada [44].
7. Coronavírus dos humanos
Foram identificados vários coronavírus capazes de infetar humanos (HCoV), causando geralmente infeções ligeiras. São eles, o HCoV-229E, o HCoV-NL63, o HCoV-OC43 e o HCoV-HKU1, que circulam globalmente na população humana, e são responsáveis por cerca de um terço das constipações que ocorrem em humanos [45]. Contudo, em casos graves, os quatro HCoVs acima referidos podem também causar pneumonias e bronquiolites graves, especialmente em idosos, crianças e pessoas imunodeprimidas [46,47]. Para além dos sintomas respiratórios, estes coronavírus humanos podem causar doenças entéricas e neurológicas [48].
O coronavírus da Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS-CoV) emergiu na Arábia Saudita em 2012, causando uma epidemia em humanos [51]. Os sintomas clínicos são semelhantes aos da SARS mas a taxa de mortalidade é bastante maior, de cerca de 35% [52]. A transmissão do MERS-CoV revelou-se, contudo, mais limitada. Os dromedários (Camelus dromedarius) foram identificados como a espécie intermediária destes vírus [51].
O SARS-CoV-2, cuja espécie reservatório é ainda desconhecida, emergiu em dezembro de 2019 na província de Wuhan, na China [53]. A doença é altamente contagiosa resultando numa pandemia que afeta atualmente 205 países, tendo, desde a sua descoberta, causado a morte a mais de 61 000 pessoas (5 abril 2020). A origem do SARS-CoV2 não está ainda esclarecida [53]. Embora o vírus tenha revelado uma elevada similaridade genética (96,3%) com um coronavírus previamente identificado numa espécie de morcegos-de-ferradura- (Rhinolophus affinis) no sudoeste da China; este vírus (Bat-CoV-RaTG13) não possui o mesmo ligando (chave) que o vírus SARS-CoV-2 possui, não podendo por isso utilizar o recetor celular humano (designado ACE2) para a entrada nas células alvo. Por esta razão o Bat-CoV-RaTG13 não tem capacidade de infetar células humanas [54].
No decurso das investigações realizadas desde a emergência desta pandemia, verificou-se que a região do ligando (“chave” para entrada na célula) de um coronavírus de pangolim-malaio (Manis javanica), descoberto em 2019, apresentava elevada identidade com a “chave” do SARS-CoV-2, apoiando a hipótese de que o SARS-CoV-2 pudesse ter resultado de uma recombinação genética natural entre coronavírus com dois hospedeiros animais diferentes [55]. O genoma do Pangolim-CoV possui 91,02% de similaridade nucleotídica com o genoma SARS-CoV-2, tendo sido sugerido que os pangolins possam ser uma espécie candidata à origem da SARS-CoV-2 [56]. No entanto, é importante sublinhar que, nesta fase, quer o pangolim, quer outra espécie, não foram ainda consideradas espécies intermediárias ou de amplificação no surto de SARS-CoV-2.
Foi também levantada a hipótese de que este vírus pudesse ser uma construção humana, libertada no ambiente de forma deliberada ou acidental. Esta possibilidade foi rejeitada pela análise genómica do SARS-CoV2, que revelou claramente a origem natural deste vírus. Assim, constata-se que a evolução genética do SARS-CoV-2 lhe conferiu a capacidade de se ligar com elevada eficiência ao recetor ACE2 que está presente na superfície de vários tipos de células humanas. A eficiência e estabilidade desta ligação parece facilitar a dispersão viral de pessoa-para-pessoa e justificar a facilidade com que se transmite [54].
Estão a ser feitos esforços no sentido de se perceber qual o espetro de hospedeiros do SARS-CoV2. A capacidade do SARS-CoV-2 se transmitir e infetar outras espécies de mamíferos além do Homem foi avaliada por inoculação de várias linhas de células de mamíferos e simulada em computador, de acordo com a potencial capacidade do ligando viral se poder ligar ao recetor ACE2, que o SARS-CoV2 utiliza [57]. Entretanto também foram reportadas à OIE deteções de RNA viral em dois cães e em um gato, pertencentes a doentes Covid-19. Não havendo informação sobre cargas virais, a deteção de ácidos nucleicos em zaragatoas orais, nasais e fecais destes animais de companhia, não permite, contudo, excluir que possa ter ocorrido apenas transmissão passiva do Homem para estes animais, sem replicação viral. Nenhum destes animais desenvolveu sintomatologia respiratória durante o contacto com humanos infetados, e a tentativa de isolamento de vírus não foi bem-sucedida, pelo que não pode demonstrar a presença de vírus infecioso. Recentemente foi também divulgado um estudo, antes de sua avaliação e validação por especialistas, com dados de infeções experimentais de algumas espécies animais com SARS-CoV-2. Com base neste ensaio, o SARS-CoV-2 infeta ineficientemente cães, porcos, galinhas e patos, mas eficientemente furões e gatos, podendo ocorrer nesta última espécie transmissão gato-a-gato por gotículas respiratórias [58].
Também o Laboratório Nacional Veterinário do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) reportou a noticia da infeção de um tigre do Parque Zoológico Bronx de Nova York, não disponibilizando, conquanto, a técnica de diagnóstico utilizada. Embora apenas um tigre tenha sido testado, tanto este animal como outros tigres e leões do mesmo Zoo apresentaram sinais respiratórios de tosse seca. Supõe-se que estes felídeos tenham sido infetados a partir de um tratador SARS-CoV-2-positivo, assintomático.
Decorrem na China ensaios de infeção de macacos-rhesus e ratinhos transgénicos que possuem o gene ACE2 humano e de furões na Austrália [59].
A elevada taxa de transmissão da doença entre humanos e o potencial patogénico não são as únicas preocupações relativamente ao SARS-CoV2. Os coronavírus são mais frágeis do que os vírus nus (vírus sem invólucro, como por exemplo os parvovírus e os calicivírus), mas bastante mais resistentes no ambiente [60] do que a maioria dos outros vírus com invólucro (como por exemplo, o vírus da gripe), o que dificulta o seu controlo. Alguns estudos permitiram esclarecer que o SARS-CoV2 é estável em plástico e aço inoxidável e pode persistir infecioso até 72 horas após a sua aplicação nestas superfícies, embora o título do vírus decaía no plástico de 103,7 para 100,6 TCID50/mL após 72 horas, e no aço inoxidável de 103,7 a 100,6 TCID50/mL em 48 horas [69]. Em superfícies de cobre, o vírus não se mantém infecioso ao fim de quatro horas, embora em papelão o vírus se mantenha infecioso por 24 horas [61].
A informação cientifica disponibilizada sobre os melhores desinfetantes capazes de promover a inativação do SARS-CoV2 está já disponível [62].
As recomendações da OMS incluem a higienização frequente das instalações, através da utilização de água e detergente e a aplicação de hipoclorito de sódio (lixivia) a 0,1%. Para a desinfeção de superfícies menores (bancadas de trabalho, por exemplo) é recomendada a utilização de etanol a 70%. Para a descontaminação das mãos é recomendada a lavagem com água e sabão e a aplicação de etanol a 75% ou 80% ou 2-Propanol a 75%. Todas as medidas de controle devem ser realizadas frequente e consistentemente.
Considerações Finais
A globalização proporciona o continuado movimento de massa de pessoas por todo o mundo, cria novas oportunidades para a disseminação e estabelecimento de doenças infeciosas comuns na população a nível mundial. Determinadas práticas, de que são exemplo a proximidade ou o consumo de espécies animais selvagens de localização remota, algumas em perigo de extinção, e cujo estatuto sanitário é totalmente desconhecido, desempenham um papel importante na emergência de novas epidemias. A movimentação de animais dentro da União Europeia (UE) obedece a legislação muito específica, exigindo a rastreabilidade e comprovativos sanitários para algumas doenças e quarentenas obrigatórias. Relativamente à entrada de espécies animais (e seus produtos) provenientes de países terceiros o seu controlo realiza-se ao nível dos Postos de Inspeção Fronteiriços, aplicando-se a legislação da UE harmonizada, a que os países terceiros se obrigam a cumprir, com base em informação recolhida por um sistema de vigilância epidemiológica que assegura a monitorização das doenças de animais domésticos e selvagens, tendo como base testes laboratoriais validados, bem como a implementação de medidas de controlo, como o isolamento pré-expedição ou imunização ativa. Para as espécies animais para as quais não há legislação harmonizada, aplica-se a legislação nacional, com base na análise de risco efetuada pela autoridade competente nacional.
No domínio de “Uma Só Saúde” (One Health), as infeções por coronavírus são alvos prioritários de abordagem sistemática no âmbito da medicina da conservação, uma ciência multidisciplinar com enfoque nas relações patogénicas entre o ser humano, a fauna e os ecossistemas. Apenas através do desenvolvimento e aplicação de práticas de gestão de saúde, de políticas públicas e programas científicos concertados, se poderá alcançar o equilíbrio ambiental essencial à saúde animal e humana. A identificação das variáveis de risco associadas à interconexão entre pessoas, animais, plantas e seu ambiente compartilhado, são fundamentais para se prever e prevenir a emergência e reemergência de epidemias por coronavírus ou por outros agentes patogénicos.
Referências Bibliográficas