Em dezembro de 2019 foi identificado na província de Wuhan, na China, um surto de doença respiratória com características semelhantes aos vírus SARS e MERS-COV. Em janeiro de 2020 foi identificado como agente deste surto um novo coronavírus com suspeita de origem zoonótica, num mercado de espécies animais exóticas para consumo humano. Com a elevada globalização e uma infraestrutura de saúde global pouco munida para efetivar um controlo adequado, houve rápida disseminação do coronavírus, induzindo globalmente um estado de pandemia.
Em Portugal, a chegada desta pandemia atrasou-se perto de três meses, tendo sido decretado estado de emergência no dia 18 de março, atribuindo poderes reforçados ao Governo e entidades de saúde1. A pandemia obrigou à implementação de medidas de assepsia e distanciamento físico que condicionaram a movimentação e os serviços em todo o território nacional. Nesta primeira fase, os serviços veterinários foram considerados como essenciais, tendo-se mantido abertos ao público de forma geral, mas com elevadas restrições ao contacto próximo com os tutores1.
Os centros de atendimento médico-veterinário (CAMV) foram assim obrigados a: estabelecer protocolos para os seus colaboradores e clientes/pacientes, adquirir material de proteção, desenvolver novas ferramentas de contacto clínicas e a reorganizarem-se, numa tentativa de sobrevivência neste período conturbado. Irei abordar mais adiante como estes fatores impactaram o exercício da profissão médico-veterinária, não apenas de uma forma clínica, mas também integrada no ambiente profissional.
Existem em Portugal 1667 CAMV (à data de 10 de julho de 2020) e 6389 médicos veterinários praticantes (MV) devidamente acreditados pela Ordem dos Médicos Veterinários2. Considerando que 41,5% trabalha exclusivamente na área de animais de companhia, e que cerca de 80% dos CAMV (1334) são também exclusivamente desta área3, temos uma média aproximada de dois médicos veterinários por CAMV.
Comparando com a média europeia3, são estruturas de dimensão incrivelmente reduzida e por isso também menos capazes de sustentar largos períodos com reduções de faturação, dada a incapacidade económica de “diluir” os elevados custos fixos inerentes à atividade. Associando a esta reflexão o facto de Portugal ser o sexto país europeu com mais médicos veterinários per capita e o 22.º em termos de remuneração bruta, obrigando a que cerca de 40% dos MV tenham uma segunda ocupação3, conclui-se que em termos individuais é pouco provável que existam reservas financeiras para a sobrevivência dos profissionais num largo período de redução/eliminação do seu vencimento. Neste enquadramento, podemos inferir que a medicina veterinária é um setor altamente disperso, com baixo grau de agregação, particularmente no maior setor de atividade, os animais de companhia3.
Durante a pandemia, o consumo de bens alimentares animais aumentou logo na fase inicial, como resposta ao desconhecimento da situação em mãos e necessidade de precaver possíveis falhas de abastecimento. Dito isto, o trabalho médico-veterinário a nível das explorações, inspeção e segurança alimentar não indica uma vulnerabilidade tão extrema quanto o caso dos animais de companhia, podendo até ser postulado um aumento da procura e importância destes profissionais. Não deixa de ser importante referenciar o risco acrescido a que são expostos por motivo maior, sem estar previsto qualquer subsídio de risco nesta situação de emergência. Os setores referenciados acima, com particular atenção à inspeção, têm vivido um clima de contínua desvalorização e precariedade, sendo claro o desconhecimento político das implicações de uma possível crise neste setor. É também possível sustentar esta conclusão na insistência governativa pela descentralização de competências para órgãos sem competências técnicas e com possíveis e preocupantes conflitos de interesses, comprometendo gravemente um sistema de resposta sanitária nacional.
Assim, entende-se que o impacto da pandemia covid-19 é transversal, mas sentido de forma particularmente mais dura no setor dos animais de companhia, que é também o menos protegido ao longo dos tempos em Portugal. O surgimento, nos últimos oito anos de diversas empresas especificamente dirigidas à gestão de CAMV mostra exatamente que existe um mercado saudável para a potenciação e possível competição entre colegas do mesmo setor. Consultando as propostas de melhoria disponibilizadas por estas empresas, afere-se que se baseiam particularmente numa maior promiscuidade na relação empregador-empregado, numa tentativa de transformar custos fixos em custos variáveis4. Estes modelos arrastam ainda mais MV trabalhadores por conta de outrem, a maior fatia da população do setor, para situações de subemprego e para uma precariedade preocupante.
A pandemia obrigou à imposição de protocolos de grande restrição para consultas, emergências e visitas a animais internados1, contudo, a compreensão pelos tutores dos riscos da covid-19 não pode ser tomada como geral e de elevado grau. Assim, e considerando a emocionalidade da relação tutor-animal, é possível inferir que existam situações de grande atrito e até quebra de relação MV – cliente, diminuindo ainda mais a faturação dos centros e a sua possibilidade de recuperar no final deste período.
No início da pandemia, a Ordem dos Médicos Veterinários autorizou a possibilidade de telemedicina pelos CAMV, uma ferramenta que pode permitir uma maior proximidade entre os clientes e os MV e ser particularmente importante na compliance terapêutica num momento em que as preocupações das famílias se perspetivam num sentido mais antropocêntrico. Como todas as novas práticas, foi também necessário aos MV um novo esforço tanto na adaptação como no preço indexado a estes serviços, sendo ainda desconhecido se trazem alguma contrapartida financeira aos centros.
Além da já inerente dificuldade financeira, referida acima, sentida pelos médicos veterinários de animais de companhia, a pandemia obrigou os CAMV a efetuarem novas despesas, como barreiras acrílicas de separação, dispensadores de soluções antissépticas para os clientes5, mas também gastos com pessoal, sem contrapartidas no funcionamento das estruturas, em comparação com os períodos de funcionamento normal. As previsões de recuperação económica da crise induzida pela pandemia tendem a ser bastante severas e preocupantes, sendo que, mais uma vez, a classe médico-veterinária está incrivelmente exposta.
Nos últimos dez anos, tem havido um enorme crescimento na disponibilidade financeira das famílias para os seus animais de companhia, sendo que a maior fatia deste crescimento se concentrou especialmente nas indústrias das rações, fármacos, wearables e novos serviços3. Com um clima económico favorável, esta tendência levou a um maior investimento por parte dos centros de atendimento em serviços médicos de maior qualidade, apoiando-se particularmente em novas ferramentas imagiológicas, maior número de especialidades médicas prestadas ao público, bem como uma diversificação generalista de serviços, como grooming ou hotelaria para animais3. Investimentos estes que, devido ao seu valor, são normalmente feitos com recurso a empréstimos bancários, indexados a indicadores financeiros, como a Euribor, que verá um aumento significativo como preconizado pelo Banco Central Europeu6. Esta instabilidade irá provavelmente resultar num aumento geral das prestações a pagar pelos centros e, em particular, os mais frágeis que tiveram de recorrer a moratórias de pagamento7.
Assim, não só existirá um acréscimo na despesa, possivelmente incomportável, como também uma diminuição da faturação dos centros e a obliteração de serviços não essenciais com elevada contrapartida financeira. É possível sustentar esta mesma conclusão no aumento da taxa de abandono animal, não apenas como consequência dos medos do risco de transmissão de infeção de covid-19 pelos animais, mas também pela diminuição das receitas das famílias8.
É importante também ressalvar que, à medida que a pandemia se prolonga no tempo, a capacidade de resposta da classe médico-veterinária diminui progressivamente, sendo que muitos dos centros optaram por estratégias de férias antecipadas dos seus colaboradores e empregados, na esperança de uma rápida resolução. E mesmo com as medidas de suporte oferecidas pelo Estado, as quebras de faturação não precisam de atingir o valor indicativo de 40% 9 para muitos dos CAMV estarem já em processos de insolvência.
Vendo com alguma perspetiva o setor médico-veterinário, é simples aferir que a falta de preparação para esta pandemia não advém das especificidades da mesma, mas, sim, de uma progressiva destruição da proteção do trabalho dos MV e do valor da atuação do médico veterinário. A falta de reconhecimento, por baixa pró-atividade social e a ainda fraca presença de médicos veterinários em meios de comunicação e políticos, deixou um vazio no domínio animal que é agora preenchido por entidades particulares sem conhecimentos técnico-científicos, partidos animalistas, organizações coletivas de bem-estar e até intervenção e resgate animal. Esta crise apenas mostrou a fragilidade do setor, não sendo responsável pela dificuldade coletiva da classe em se organizar, participar ativamente e impedir a permeabilização do domínio animal, podendo até ser interpretado como uma obrigação legal e moral perante a saúde pública e a saúde animal, a proteção das condições laborais dos profissionais.
Os médicos veterinários portugueses são, de toda a Europa, aqueles que menos vontade teriam em escolher novamente a sua carreira e mais de metade consideram inclusivamente abandoná-la por completo3. Mais preocupante é talvez a tendência europeia de que a maior especialização no setor e investimento em formação ao longo da vida será a defesa mais adequada aos desafios do futuro3. No entanto, pela lógica descrita anteriormente, serviços de valor acrescentado terão uma diminuição profunda na sua procura por tutores.
Numa nota de futuro, e assumindo ainda a falta de dados do verdadeiro impacto da covid-19 no exercício da profissão, podemos presumir que a progressão técnico-científica e a melhor e mais capaz salvaguarda da saúde pública não se trata de um desafio académico, como foi descrito, mas, sim, de um desafio relacional e emocional.
Em nota de conclusão, é importante relevar que, mesmo nestas condições agrestes, os MV mostraram uma solidariedade extrema ao voluntariarem meios e pessoal técnico para ajuda ao combate desta pandemia, um traço de resiliência que define esta classe e que não deve ser deixada de parte. A estoicidade da profissão é, sem qualquer dúvida, a sua característica definidora, mesmo num ambiente legislativo em que a figura do médico veterinário não é reconhecida enquanto profissional de saúde e que os seus serviços estão afetos de imposto de valor acrescentado à taxa máxima, como um bem de luxo10.
É de enorme valor para a recuperação do setor que seja feita uma reflexão profunda individual sobre o estado das coisas, mas que se tomem decisões coletivas inovadoras e rápidas, capazes de inverter um rumo, aparentemente pouco brilhante.
*Xavier Canavilhas é coordenador do Programa Cheque Veterinário e do Gabinete Jovem da
Ordem dos Médicos Veterinários.
BIBLIOGRAFIA
1 Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 URL: https://dre.pt/web/guest/home/-/dre/130399862/details/maximized
2 Ordem dos Médicos Veterinários. 2020.Estatísticas. URL: https://www.omv.pt/omv/estatisticas
3 Federation of Veterinarians of Europe. 2018. VetSurvey 2018 – Survey of the veterinary profession in Europe. URL: https://www.fve.org/cms/wpcontent/uploads/FVE_Survey_2018_WEB.pdf
4 Tavares, Ana. 2020. Impacto da Covid-19 nos CAMV: como comunicar e sobreviver a esta crise?. Veterinária Atual. URL: https://www.veterinaria-atual.pt/destaques/impacto-dacovid-19-nos-camv-como-comunicar-e-sobreviver-a-esta-crise/
5 Ordem dos Médicos Veterinários. 2020. URL: https://www.omv.pt/publicacoes/noticias/covid-19-recomendacoes-omv
6 Melo, Catarina. 2020. Vírus também está mexer com as Euribor. Pode aumentar a prestação da casa às famílias. ECO. URL: https://eco.sapo.pt/2020/04/24/virus-tambem-esta-mexercom-as-euribor-pode-aumentar-a-prestacao-da-casa-as-familias/
7 Cavaleiro, Diogo. 2020. Covid-19. Prestações ao banco vão subir para quem recorrer à moratória. Expresso. URL: https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-30-Covid-19.-Prestacoes-ao-banco-vao-subir-para-quem-recorrer-a-moratoria
8 SIC Notícias. 2020. Associações dizem que abandono de animais subiu com a Covid-19. URL: https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-04-16-Associacoes-dizem-queabandono-de-animais-subiu-com-a-Covid-19
9 Crisóstomo, Pedro. 2020. Quebra de 40% em 30 dias dá acesso a apoio aos recibos verdes. Público. URL: https://www.publico.pt/2020/04/07/economia/noticia/quebra-40-30-diasacesso-apoio-recibos-verdes-1911427
10 Lei n.º 95/2019. URL: https://dre.pt/home/-/dre/124417108/details/maximized