A mudança da gestão e supervisão do bem-estar dos animais de companhia criando uma nova Direção-Geral (DG) afastada do Ministério da Agricultura e da sua Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) é um dos mais fantásticos atentados à inteligência e seriedade que já se presenciou na política portuguesa. A decisão foi precipitada, imponderada e fere-se de imensas contradições. Mas, pior que tudo, não irá resolver o problema do bem-estar dos animais, que seria a grande prioridade. Supostamente.
Não sei quais as pressões, quais as meias-verdades contadas, quais as negociações por detrás de tamanha asneira, mas é fácil perceber que os principais envolvidos e conspiradores têm uma má relação com a DGAV. E não o escondem. O estranho é que quem representa apenas 3% dos votantes portugueses consiga tal feito.
Esta mudança fulminante revela desde logo o carácter intolerante, rígido e fanático… com laivos ditatoriais. Não se concorda, não se gosta… elimina-se.
Vamos por partes.
- Desde 1965 que as 5 Liberdades apresentadas no Relatório Brambell servem para avaliar e definir bem-estar animal. São elas (resumidamente): livre de dor e doença, livre de desconforto, livre de medo e stresse, livre de fome e sede e livre para expressar o seu comportamento natural. Ao examinar estes componentes do bem-estar, é impossível entendê-los sem ser com a envolvência primeira e próxima dos médicos veterinários. Tudo o que tem que ver com saúde, dor ou lesões, são da exclusiva competência destes profissionais, e para todas as outras liberdades são estes os melhores tradutores e os melhor preparados para as conseguir avaliar. Ou seja, não faz qualquer sentido retirar ao organismo composto na sua essência pelas competências veterinárias, a gestão do bem-estar animal. Será que no Ministério do Ambiente se encontram essas valências? Num organismo que se deve preocupar com a preservação da biodiversidade e dos ecossistemas, inclusive através de controlo de populações animais, em que plano se vai colocar a defesa do bem-estar animal? Não percebem que pode mesmo haver conflitos sérios entre os objetivos – entre a ética animal e a ética ambiental?
A solução divulgada é que se vai apetrechar esta nova Direção-Geral com veterinários do século 21! Convém lembrar que as competências dos médicos veterinários são exatamente iguais porque todos tiveram a mesma formação. Não há, de um lado, os especialistas em bem-estar e, do outro, os que nada sabem sobre o assunto. Ou será que irão escolher a dedo os profissionais a preencher a nova DG? Com aqueles que concordam com quem manda.
- A DGAV é um dos organismos primordiais na garantia da saúde pública, com todas as falhas que podemos apontar como, de certeza, se aponta a tantas outras DG. Garante a aplicação das regras de sanidade (também dos animais de companhia, ou esquecem-se do combate à raiva?), a erradicação de doenças transmissíveis aos humanos, a salubridade dos alimentos, o cumprimento da legislação de bem-estar animal, etc… Não aplicam as regras nem a legislação que uma minoria quer? As definições e conceitos não coincidem com os que uns poucos defendem? Tanto pior… é o que se entende por democracia, em que a maioria por vezes tem de ditar as regras.
A DGAV tem uma longa história de participação em grupos de trabalho e em comissões que definem as regras de sanidade e bem-estar animal em Portugal, na Europa e no Mundo. É, como não podia deixar de ser, o representante português na área da sanidade veterinária e bem-estar animal. Quem será agora o interlocutor? A DGAV, se for uma questão de bem-estar num cavalo de desporto e a nova DG se for num pónei de recreio? Como se transmitirá e partilhará o manancial de conhecimentos, de contactos, de discussão, de acordos, de discordâncias, de ciência, de técnica… Que bonita confusão vem aí.
- Vou aqui transcrever e comentar alguns argumentos daqueles que defendem a retirada de certas (todas?) competências à DGAV. São algumas pérolas de demagogia e intolerância.
“…(DGAV) está capturada por uma visão marcadamente produtivista e de defesa dos interesses do setor pecuário.”
Desde quando é que a atividade pecuária é considerada crime? Porque menos de 3% da população não concorda com a produção animal, esta passa a ser considerada uma atividade mafiosa e que apenas pode ser defendida pelos diretamente interessados? A DGAV é supervisora, garante a sanidade e segurança dos alimentos, promove as boas práticas, evita concorrência desleal e obriga ao cumprimento da legislação europeia e portuguesa de bem-estar. Chama-se a isto defender o interesse do setor pecuário? Então que o continue a fazer.
Poderia fazer mais? Talvez, mas então dêem-lhe meios, instruções, diretivas… Remodelem, se for preciso.
E porquê é que um organismo com uma “visão de defesa do setor pecuário” não pode cuidar do bem-estar dos animais de companhia? Há algum conflito de interesses? Há alguma incompatibilidade? Claro que não há, e o argumento só revela o preconceito por detrás da exigência de mudança. Quer-se atacar o organismo e não melhorar o bem-estar dos animais de companhia.
“O que lhe (DGAV) falta em vocação de proteção animal sobra-lhe em devoção aos produtores de carne e de leite e aos exportadores de animais vivos – a todos estes a DGAV nunca falha. E eles sabem disso, eles sabem reconhecer quem defende os seus interesses.”
“Quando vemos fiscalizados a constituírem-se advogados de defesa daqueles que os fiscalizam logo percebemos que há quem não esteja a fazer o que lhe compete.”
Estes estapafúrdios argumentos são realmente caricatos. Estas afirmações vêm a propósito do grande movimento que se criou de defesa da DGAV por parte de associações e confederações de produtores, de médicos veterinários, de técnicos e de um rol de outros envolvidos no sector da alimentação. Querem estes senhores convencer-nos que o facto de se defender a DGAV é porque ela é refém dos seus interesses e não completamente isenta e imparcial? Ora bem, isso é o mesmo que dizer que ao defendermos a PSP ou a GNR, somos provavelmente gatunos interessados em obter favores em troca. Será que não lhes passou pela cabeça que os produtores acreditam e defendem um setor regulado e controlado de forma idónea, competente e imparcial? Será que não compreendem que os atores do setor querem ser supervisionados por organismos experientes, não porque tenham algo para esconder, mas exatamente porque querem que tudo seja transparente? Defendemos a GNR só e apenas quando ela é competente e garante a segurança. Exatamente quando está a fazer o que lhe compete.
Deixa muito a desconfiar quem não pensa assim!
Ainda mais grave é quando vemos deputados da nação a atacar de forma tão vil um setor vital para milhares de portugueses e que coloca produtos alimentícios de elevadíssima qualidade na mesa de tantas famílias. Se seguisse o raciocínio destes senhores, diria que estas acusações se destinam a defender algum importador de alimentos do estrangeiro.
“E se dúvidas existissem sobre a corte e o namoro entre os criadores de animais para consumo e a DGAV, o organismo que (supostamente) tutela e garante a proteção e bem-estar animal em Portugal…”
Mais uma vez a demonstração de intolerância e de más intenções fervilha nesta frase. Se fossem informados, perceberiam que cada vez mais os produtores estão interessados em que as regras de bem-estar sejam rigorosa e escrupulosamente cumpridas. Surgem cada vez mais pedidos de avaliações e certificações em bem-estar e a procura de formação de técnicos, auditores e produtores é cada vez maior. Três razões explicam este facto: o interesse e a satisfação em proporcionar bem-estar animal; a exigência crescente dos consumidores, interessados em conhecer o percurso, do prado ao prato, dos produtos que chegam à sua mesa; e a certeza, providenciada pela ciência, de que melhor e maior produção nasce de animais criados em elevado bem-estar.
A DGAV deve ser o garante de que as regras são cumpridas. Não precisa de o fazer como um inimigo. Provavelmente, a estratégia do afrontamento e inimizade seguida por outros, explica porque há clivagem e o ódio quando deveria haver diálogo entre as partes… para bem dos animais.
Há nitidamente um preconceito criado nas cidades de cimento e plástico e alimentado pela ignorância, suportado por teorias da conspiração disparatadas, que tentam fazer crer que todos os envolvidos no setor na produção animal procuram enganar e lucram com o sofrimento animal. Quem defende esta visão são tão intolerantes e, como se viu, maquinadores, a tal ponto que não olham a meios para atingir os seus fins.
A DGAV foi a vítima desta vez. Premeditada.
*Médico veterinário