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Investigação

Obesidade e outras comorbilidades numa perspetiva One Health

Será que mutação genética pode explicar obesidade em Labradores?

Nos países desenvolvidos os indivíduos partilham o ambiente e estilo de vida com os respetivos animais de companhia, interação esta que apresenta implicações ao nível da saúde e bem-estar dos indivíduos envolvidos nesta díade, tais como as elevadas percentagens de diabetes mellitus (DM) tipo 2, doença cardiovascular e algumas neoplasias(1). A obesidade tem sido talvez uma das patologias mais estudadas neste contexto, o que é importante face à sua complexidade, mas também à morbilidade e mortalidade associadas. Também a resistência aos antimicrobianos e doenças zoonóticas têm sido alvo de estudo de acordo com esta abordagem, mas não serão objeto de atenção ao longo do presente artigo(2).

OBESIDADE

 

A obesidade é uma problemática importante nos seres humanos e nos pequenos animais de companhia(1). Sabe-se que a longevidade de pessoas com um peso saudável é superior às que apresentam obesidade, sugerindo a evidência que o mesmo seja também observado nos animais de companhia(1,3).

A prevalência de excesso de peso e obesidade encontra-se estimada em 19.7-59.3% nos cães e 11.5-52% nos gatos. Nos EUA, na prática veterinária, o excesso de peso e a obesidade aumentaram em cerca de 37% nos cães e em 90% nos gatos de uma população seguida durante um período de 5 anos entre 2007 e 2011, o que reflete a tendência crescente observada também nos humanos. Nos EUA, em 2011-2014, mais do que 1/3 dos adultos apresentavam obesidade, sendo esta superior entre adultos com idades compreendidas entre 20-39 anos (32.3%) e, no mesmo período de tempo, era observada também em cerca de 1/5 das crianças e adolescentes americanos com idades entre 2-19 anos (17-0%)(1). Num estudo realizado através de questionários administrados em 11 países europeus, 19.1% a 48.8% dos tutores de cães reportaram ter excesso de peso ou obesidade, enquanto que o mesmo problema foi reportado relativamente aos respetivos cães em percentagens que variam entre 6.0% e 31.3% de acordo com as tabelas da escala de condição corporal e 31.8% e 69.4% de acordo com as tabelas de índice de gordura corporal. Neste estudo, a idade, sexo e atitude dos tutores relativamente à dieta e exercício físico, bem como a literacia dos mesmos relativamente ao reconhecimento da obesidade como uma doença, foram identificados como fatores associados à obesidade dos cães(3).

 

No caso dos animais de companhia existe um risco aumentado em função da raça de cães (ex. Labradores e Golden Retrievers) e gatos (ex. Manx e Shorthair Americano), adicionando-se ainda o estado de esterilização à lista de fatores de risco. As cadelas esterilizadas de meia-idade têm maior probabilidade de apresentar excesso de peso ou obesidade, o mesmo se observando com gatos do sexo masculino e as mesmas características. Outras comorbilidades, tais como artrite, alterações endócrinas (ex. hipotiroidismo, hiperadrenocorticismo), rutura de ligamentos cruzados, doença ao nível do trato urinário inferior, patologia oral, DM, pancreatite e neoplasia, estarão também associadas à obesidade(1).

Quanto à alimentação, podem ser encontradas conclusões controversas na literatura relativamente à fonte de alimentos, nomeadamente os comerciais, enquanto fator de risco para obesidade. O valor das rações tem um papel também importante, e, na verdade, os tutores de cães obesos têm maior propensão a sublinhar a importância de alimentos de baixo custo, mas também o número de refeições e snacks fornecidos, assim como restos de comida de mesa, carne fresca e guloseimas comerciais para cães, bem como a alimentação de gatos ad libitum têm sido associadas à obesidade. Foram também identificados fatores de risco relacionados com os tutores que contribuem para obesidade canina e felina, como os rendimentos, idade e hábitos de exercício(1). Por fim, nos humanos, existem ainda múltiplas características individuais e fatores relacionados com os ambientes familiar e social, instituições e macropolíticas que possam afetar comportamentos, consumo e gasto energético e metabolismo. Nesta sequência, é anda relevante referir o papel do microbioma, sendo que a qualidade e composição dos alimentos, face ao background genético do indivíduo, pode afetar a flora gastrointestinal; e os químicos ambientais, com os quais os indivíduos podem contactar através da ingestão, inalação, exposição cutânea, e que podem atuar como disruptores metabólicos(1).

E soluções?
 

Além de fatores fisiopatológicos, há autores que sugerem que a correlação entre a obesidade nas pessoas e nos seus cães se deva também ao vínculo estabelecido entre ambos por mecanismos psicológicos diversos, o que pode conduzir ao desenvolvimento da doença. Depois, o facto de a obesidade necessitar também de uma abordagem social, o que tem ainda como agravante que a associação entre a obesidade humana e canina possa diferir entre países com diferentes demografias e culturas, constitui um desafio à sua compreensão através de uma perspetiva One Health(3). Por outro lado, o vínculo entre o humano e o animal pode ser uma ferramenta na promoção de estilos de vida saudáveis para ambos. Adicionalmente, a investigação clínica comparativa e translacional pode ajudar a desenvolver estratégias mais efetivas e melhores resultados na prevenção e tratamento da obesidade. A título de exemplo, o estudo People and Pets Exercising Together (PPET) foi o primeiro programa a demonstrar a efetividade da perda de peso combinada, além de enriquecer o vínculo entre o animal e o tutor. O estudo incluiu um grupo de indivíduos sem cães e um grupo de indivíduos com cães: em suma, observou-se nos indivíduos de ambos os grupos uma perda de peso de 6.6% e 5.5%, respetivamente, e um aumento global do nível de atividade física; enquanto os cães obtiveram uma perda de peso de 14,9% e a sua pontuação de condição corporal aumentou de 4.6 para 3.3/5 (considerando-se 3/5 o ideal). Adicionalmente, a tutoria destes animais constituiu também uma fonte de suporte social para os indivíduos no que concerne à motivação e encorajamento, conforme percecionado pelos mesmos(4). Os tutores de cães representam uma população interessante para estudo da obesidade de uma perspetiva One Health ao permitir a avaliação de interações e fatores comuns. Os cães como animais de companhia têm sido inclusive investigados como um meio de melhorar a saúde humana: por exemplo, em Portugal foi desenvolvido por uma associação não-governamental, o Caovida Club, um programa de perda de peso destinado a crianças(3).

DIABETES MELLITUS

A DM representa uma importante fonte de morbilidade e mortalidade transversalmente a várias espécies. Em humanos, observou-se um aumento do número de indivíduos com diabetes ao longo dos anos, tendo sido reportado um valor estimado de 108 milhões de pessoas em 1980 e de 422 milhões em 2014, sendo os números mais elevados nos EUA e outros países ocidentais, mas ainda assim a prevalência em países de baixos e médios rendimentos está também a aumentar rapidamente(1). Em Portugal, a prevalência estimada de diabetes em indivíduos com 20-79 anos foi de 13.6% em 2018, o equivalente a cerca de 7.7 milhões de indivíduos(5). A diabetes humana é geralmente resultado da perda física ou funcional de células b, o que pode ser consequência de um processo autoimune, característico da diabetes tipo 1, ou de resistência à insulina, no seio dos diversos mecanismos fisiopatológicos envolvidos, característico da diabetes tipo 2, o tipo de diabetes mais frequente nos humanos. Existem ainda outras subclassificações associadas à diabetes, mas estas nãos serão presentemente abordadas(6). A diabetes resulta em hiperglicemia, que conduz a diversas consequências, entre as quais danos ao nível dos nervos e vasos sanguíneos, sendo portanto uma causa major de cegueira, insuficiência renal, enfarte, acidente vascular cerebral e amputação dos membros inferiores, além de ser também uma fonte importante de gastos em cuidados de saúde e perdas de produtividade(1). Adicionalmente, existe uma forte associação entre obesidade e diabetes, que tem início nos primeiros estadios do desenvolvimento humano e se estende ao longo da infância e idade adulta(1).

 

Relativamente aos canídeos, quase todos os cães diabéticos apresentam diabetes de tipo 1 e são insulino-dependentes à data de diagnóstico. A taxa de diagnóstico de DM em cães é cerca de 0.6%, observando-se um risco aumentado em várias raças (Australian terrier, Samoiedo,

Schnauzer Miniatura, Poodle Toy e Miniatura), o que indica uma provável associação genética.

Nos cães, a diabetes é geralmente devida a uma deficiência de células b pancreáticas produtoras de insulina, pelo que a obesidade não é causadora da patologia, mas diminui a sensibilidade à insulina e afeta o controlo diabético. A adiponectina é uma adipocina que, na maioria das espécies, incluindo os gatos, diminui na presença de um aumento de massa gorda. A adiponectina afeta a regulação do metabolismo dos lípidos e hidratos de carbono, sendo a sua secreção estimulada por ação da insulina. Os níveis de adiponectina  não estão associados à sensibilidade à insulina em cães, e não estão, também, sempre diretamente associados à gordura corporal nos cães, como sucede com gatos e humanos, o que pode contribuir para o facto da DM ser muito menos prevalente em cães(1). No caso dos felinos, a diabetes tipo 2 está presente em mais de 80% dos gatos com diabetes, caracterizando-se por uma resistência à insulina, perda variável da secreção de insulina e deposição de amiloide nos ilhéus pancreáticos. Nos gatos, a diabetes tem aumentado, tendo sido reportado um incremento de 0.08% para 1.2% nos EUA ao longo de 30 anos. Os fatores de risco incluem obesidade, independentemente de existir ou não uma história de perda de peso prévia, administração de corticosteroides, sexo masculino, esterilização e idade aumentada, tendo a maioria dos gatos afetados uma idade superior a 8 anos, sendo mais comum entre os 10 e os 12 anos, o que corresponde também ao pico da idade em que é diagnosticada obesidade(1).

OUTRAS COMORBILIDADES

Nos humanos, ter animais de companhia está associado a uma menor mortalidade cardiovascular ajustada na população geral, sem doença cardiovascular, e um menor risco de doença cardiovascular em indivíduos que apresentem doença cardiovascular estabelecida(7). Num estudo que comparou tutores de cães com potenciais tutores de cães (indivíduos que gostariam de ter um cão) durante a pandemia por covid-19 nos EUA, os primeiros apresentavam maior perceção de suporte social, mas também menores pontuações na escala de depressão, assim como uma atitude mais positiva(8). Também em humanos, existe evidência suficiente na literatura acerca da associação entre a obesidade e um maior risco de cancro, nomeadamente do esófago, estômago, colon e reto, fígado, vesicula biliar, pâncreas, mama (pós-menopausa), útero, ovário, rins, meninges, tiroide e células plasmocitárias (mieloma múltiplo). Embora seja claro que as alterações nas células neoplásicas sejam conservadas e semelhantes entre espécies, a relação entre obesidade e risco de cancro ou progressão não se encontra robustamente estudada em doentes veterinários, especialmente em cães, devido à natureza e desenho dos estudos epidemiológicos que visem explorar fatores de risco para cancro associados ao estilo de vida em medicina veterinária. Apesar disso, existem diversos estudos que estudam exposições ambientais e do estilo de vida como fatores de risco para cancro: observou-se um risco aumentado de cancro da bexiga em cães obesos expostos a produtos de tratamento para relva, assim como de linfoma canino em cães que vivam em casas próximas de linhas elétricas de alta tensão. Estas observações levantam a preocupação acerca da potencial extrapolação das mesmas conclusões para populações humanas com as mesmas exposições ambientais e ocupacionais. As associações observadas, sobretudo em cães, pelos diversos paralelismos observados, podem constituir uma oportunidade para explorar o valor e benefício de intervenções com vista à prevenção(1).

Em conclusão, a perspetiva One Health encoraja uma ação coordenada e colaborativa entre os profissionais de saúde humana e veterinária na abordagem de problemas de saúde comuns ao ser humano e aos animais(1). O sistema humano-animal-ambiente é extremamente complexo e carece de uma ação multidisciplinar com vista a obter os melhores resultados para a saúde humana e animal no âmbito de um vasto leque de áreas de intervenção(9).

 

Referências
  1. Chandler M, Cunningham S, Lund EM, Khanna C, Naramore R, Patel A, et al. Obesity and Associated Comorbidities in People and Companion Animals: A One Health Perspective. J Comp Pathol. 2017 May 1;156(4):296–309.
  2. Aggarwal D, Ramachandran A. One Health Approach to Address Zoonotic Diseases. Indian J Community Med [Internet]. 2020 Mar 1 [cited 2022 Apr 25];45(Suppl 1):S6. Available from: /pmc/articles/PMC7232973/
  3. Muñoz-Prieto A, Nielsen LR, Dąbrowski R, Bjørnvad CR, Söder J, Lamy E, et al. European dog owner perceptions of obesity and factors associated with human and canine obesity. Sci Rep [Internet]. 2018 Dec 1 [cited 2022 Apr 25];8(1). Available from: /pmc/articles/PMC6127309/
  4. Bartges J, Kushner RF, Michel KE, Sallis R, Day MJ. One Health Solutions to Obesity in People and Their Pets. J Comp Pathol. 2017 May 1;156(4):326–33.
  5. Raposo JF. Diabetes: Factos e Números 2016, 2017 e 2018. Rev Port Diabetes. 2020;15(1):19–27.
  6. Sapra A, Bhandari P. Diabetes Mellitus. StatPearls [Internet]. 2021 Sep 18 [cited 2022 Apr 26]; Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK551501/
  7. Yeh TL, Lei W Te, Liu SJ, Chien KL. A modest protective association between pet ownership and cardiovascular diseases: A systematic review and meta-analysis. PLoS One [Internet]. 2019 May 7 [cited 2022 Apr 25];14(5). Available from: /pmc/articles/PMC6499429/
  8. Martin F, Bachert KE, Snow LA, Tu HW, Belahbib J, Lyn SA. Depression, anxiety, and happiness in dog owners and potential dog owners during the COVID-19 pandemic in the United States. PLoS One [Internet]. 2021 Dec 1 [cited 2022 Apr 25];16(12). Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34910761/
  9. Centers for Disease Control and Prevention. One Health Basics | One Health | CDC [Internet]. 2022 [cited 2022 Apr 26]. Available from: https://www.cdc.gov/onehealth/basics/index.html

*Artigo publicado originalmente na edição n.º 161 da revista VETERINÁRIA ATUAL, de junho de 2022.

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