Manuela Peixoto apresentou no VET Mental Summit, que decorreu a 14 de junho, os dados do estudo sobre a saúde mental na comunidade veterinária. Em entrevista à margem do encontro, a psicóloga clínica e pesquisadora do Centro de Psicologia da Universidade do Porto reconheceu a necessidade de todos os profissionais de veterinária – médicos, enfermeiros e auxiliares – se apoiarem de forma a mudar o grave panorama que assola o setor.
Os dados apresentados por Manuela Peixoto revelaram uma realidade que se fala nos corredores das clínicas, nos hospitais ou nos encontros da comunidade veterinária, mas que ganhou corpo em números que expressam a gravidade dos problemas de saúde mental nas várias classes profissionais que fazem parte do setor.
E, como frisou a psicóloga no encontro, a investigação que realizou sobre a saúde mental da comunidade veterinária focou-se sobretudo nos profissionais que reconheceram estar a viver situações extremamente severas. Contudo, não é de desvalorizar que “os outros 75% andam em escadinhas” entre quadros leves, que no stresse atinge 13,2% dos profissionais, moderados, que na depressão atinge 20,9%, e os casos severos, que no caso do stresse foi reportado por 21,8% dos inquiridos.
Em conversa com a VETERINÁRIA ATUAL, a investigadora reconheceu: “Fiquei e não fiquei surpreendida com os resultados [do questionário]”. Para quem conhece o enquadramento da saúde mental em Portugal, Manuela Peixoto sabe que “os dados da Organização Mundial da Saúde colocam Portugal sempre no top 3 dos países com piores índices de sintomatologia depressiva e ansiosa”, além de ser também dos países que apresenta maiores consumos de antidepressivos e ansiolíticos.
A surpresa residiu no facto de terem sido encontradas “diferenças significativas entre os auxiliares, os médicos e os enfermeiros”. Aliás, ser auxiliar de veterinária entra no rol de fatores de risco para o desenvolvimento de problemas de saúde mental, em conjunto com os outros fatores identificados como sendo transversais a todas as classes: fazer mais de 40 horas semanais de trabalho, ter história prévia de doença mental, não estar numa relação íntima, não ter filhos, ser do género feminino, ter recebido tratamento médico por lesão profissional e discordar dos motivos da eutanásia.
“Os dados da Organização Mundial da Saúde colocam Portugal sempre no top 3 dos países com piores índices de sintomatologia depressiva e ansiosa”, além de ser também dos países que apresenta maiores consumos de antidepressivos e ansiolíticos. – Manuela Peixoto, psicóloga clínica
Segundo explicou a psicóloga à VETERINÁRIA ATUAL, o risco desta categoria profissional está muito associado ao fato de terem um menor grau de escolaridade, auferirem um rendimento salarial inferior ao dos médicos e enfermeiros, situações que os levam a ter “menos recursos individuais e financeiros para identificar [os problemas de saúde mental] e para procurar ajuda”. Em termos médios, esta é também a categoria profissional em que os indivíduos são mais jovens, logo têm menos probabilidade de viverem conjugalmente ou terem filhos, além de que, contrariamente ao que acontece com médicos e enfermeiros, não têm nenhuma ordem ou associação profissional que os represente. Em suma, reconheceu a psicóloga, os auxiliares veterinários “são uma classe que acaba por ser invisível” aos tutores, mas também aos profissionais que, por exemplo, nos poucos estudos realizados sobre a saúde mental na comunidade apenas auscultam os médicos e os enfermeiros.
É preciso formar profissionais para a comunicação
Na conversa com a VETERINÁRIA ATUAL, mesmo reconhecendo que se trata de uma população de risco, a investigadora não deixou de sublinhar o espanto pela magnitude dos dados recolhidos. “Uma coisa é vermos os estudos e outra completamente diferente é conhecermos as pessoas e irmos aos seus locais de trabalho”. Isto porque, na maioria dos casos, “aquilo que vemos é o oposto do que os estudos mostram: vemos pessoas muito sorridentes, muito bem-dispostas e é muito pouco provável conseguirmos ver as situações que o estudo revelou numa consulta normal que dura 30 minutos”.
Contudo, por trás dessa aparente normalidade estão casos clínicos que, tal como acontece na medicina humana, são vividos não tanto nos consultórios, mas mais nas salas de emergência ou cirúrgicas e levam os profissionais a experienciarem situações limite. “Em muitos casos, as pessoas não vão a estes sítios [instituições de saúde seja humana, seja animal] porque está tudo bem. Vão por necessidade e naqueles que serão alguns dos piores momentos da sua vida, as pessoas estão no seu limite e daí o seu nível de tolerância ser baixo”, explica a psicóloga.
“Há um problema base que é estrutural, pois nos cursos de medicina veterinária os estudantes aprendem a tratar as doenças, mas não aprendem a comunicar com as pessoas, nem ninguém lhes explica que vão ter de lidar com elas em alguns dos piores momentos das suas vidas” – Manuela Peixoto, psicóloga clínica
Para aprenderem a lidar com esses momentos, e com os tutores em estado mais alterado, Manuela Peixoto defende que se deve apostar na formação dos profissionais, logo ao nível pré-graduado. “Há um problema base que é estrutural, pois nos cursos de medicina veterinária os estudantes aprendem a tratar as doenças, mas não aprendem a comunicar com as pessoas, nem ninguém lhes explica que vão ter de lidar com elas em alguns dos piores momentos das suas vidas”, sublinhou a psicóloga clínica. Aliás, “a ideia que as pessoas têm da medicina veterinária é que os profissionais estão sempre a lidar com animais saudáveis”, criando a ideia enviesada de uma profissão idílica e é nesse enquadramento que muitos iniciam a formação nesta área do conhecimento. Contudo, embora um grande número de casos seja uma visita para profilaxia e prevenção, outros casos procuram as clínicas “quando o animal está a morrer, foi atropelado, tem um tumor horrível, e [os profissionais] têm de lidar com esta perda na família”, situações que obrigam a uma maior interação com os tutores e para as quais não foram treinados e preparados durante a formação.
Ainda no campo da formação, a oradora defendeu no encontro a capacitação das equipas da comunidade veterinária em primeiros socorros psicológicos. Segundo explicou, “esta formação não é exclusiva para psicólogos e é útil ter alguém na equipa que consiga, por exemplo, estabilizar um colega que tenha um ataque de pânico”, um episódio que pode acontecer a qualquer pessoa e em qualquer momento da vida, incluindo no local de trabalho.
É que se um ataque de pânico pode demorar apenas 10 minutos a atingir o pico, regressar ao estado mais equilibrado pode levar até duas horas e ter alguém com conhecimentos em técnicas de grounding, por exemplo, que ajudem o visado a focar-se no presente de forma consciente é fundamental. Manuela Peixoto exemplificou com o exercício 5-4-3-2-1, no qual a pessoa deve identificar no espaço que a circunda cinco coisas que vê, quatro coisas que consegue tocar, três coisas que consegue ouvir, duas coisas que consegue cheirar e uma emoção que sente.
Da união nascerá a força
Questionada sobre como os profissionais podem, individualmente, encontrar estratégias para perceber em que ponto ultrapassaram a linha divisória entre a tristeza de um dia mau e uma situação patológica que necessita de acompanhamento, Manuela Peixoto sugeriu uma análise profunda a nível individual. “É importante que as pessoas façam uma autorreflexão sobre o seu estado atual e o seu estado prévio, perceber como, ao longo da vida, lidaram com os problemas de saúde mental. Uma das coisas que não costumam valorizar, por exemplo, é a ansiedade de desempenho durante a universidade, que é um fator de risco muito significativo, e perceber quais são as próprias características que funcionam como calcanhar de Aquiles” e, como tal, podem ser um fator de risco para o desenvolvimento de problemas de saúde mental.
Nessa análise, o profissional também vai perceber se vive para o trabalho, se leva trabalho para casa e se tem dificuldades em desligar o botão das tarefas profissionais e problemas em dizer que “não” a situações incompatíveis com o bem-estar psicológico e emocional.
Manuela Peixoto enumerou também ações como desligar as notificações no telemóvel, fazer exercício físico, ter uma alimentação equilibrada e beber água regularmente como essenciais para manter um equilíbrio psicológico. São atitudes tão fundamentais como apostar no convívio social com pessoas significativas, seja família ou amigos, e praticar autocompaixão, isto é, aprender a lidar com pensamentos maus, intrusivos, que são normais e frequentes, mas não são factos e não permitem viver uma vida com significado.
Importante para lidar com os problemas identificados será também a união entre as várias classes profissionais. Nas palavras da investigadora, “todas as associações deviam unir-se, não fazer uma espécie de corrida entre elas, e devia existir mais comunicação entre as pessoas, sejam entidades empregadoras, funcionários e entre colegas”.
Na conversa com a VETERINÁRIA ATUAL, a psicóloga clínica reconheceu igualmente o efeito deletério das críticas dentro das várias classes profissionais, e apelou à “união da comunidade” para resolver os problemas que estão na génese dos números apurados no estudo. Aliás, enfatizou “não deixa de ser curioso que pessoas que são altamente empáticas com os animais, por vezes, têm dificuldade em ser empáticas entre elas”.