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Médicos Veterinários

“O meu carro é o meu consultório”

Tem 31 anos, é médica veterinária de Clínica e Reprodução, Ruminantes e Equinos e mãe de dois filhos. Com uma energia contagiante e a paixão do trabalho a transparecer no diálogo e na voz, Mariana Carido explica à VETERINÁRIA ATUAL como é trabalhar sozinha, conduzir centenas de quilómetros por dia e tentar conciliar a vida profissional e a vida pessoal. Numa entrevista realizada por telefone e dividida em várias partes porque a saúde dos animais não pode esperar, não foi difícil perceber o seu dia a dia frenético.

O que a levou a decidir ser médica veterinária e nesta área em particular?

 

Eu vivia em Lisboa e aos fins de semana íamos para Évora, terra da família da minha mãe. Mais tarde, quando eu tinha nove anos, os meus pais compraram uma quinta onde íamos passar os fins de semana e as férias. E por lá tínhamos cães, galinhas, vacas, cavalos e sempre gostei muito deste ambiente.

Tive cães e cavalos e uns primos de Évora tinham vacas. Eu tinha pânico de vacas quando era pequena. Mas sempre tive muito contacto com animais e estar fechada num escritório não era algo que idealizasse para a minha vida. Sempre gostei mais do campo e de estar ao ar livre.

 

Em miúda, queria ser veterinária de golfinhos, mas descobri que era uma utopia, que não seria fácil e adaptei a minha escolha.

Como foi o seu percurso académico?

 

Entrei na Universidade Lusófona porque não tinha média para entrar na pública e no terceiro ano, por muita insistência da minha mãe, mudei para a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa (FMV-UL). Na altura, foi a minha mãe que insistiu e que tratou de todos os papéis necessários, mas eu não tinha vontade de mudar. Atualmente, agradeço-lhe, pois gostei muito do curso, dos professores e ainda mantenho o contacto com alguns deles.

“Gosto muito de pensar que estou a ajudar a criar vida. Adoro o nascimento, o parto e a área da genética”

 

Gostei muito das duas universidades, mas acho que a minha formação saiu a ganhar por ser formada na FMV-UL porque me deu uma maneira de estar diferente. Correu muito bem porque acho que quando fazemos o que gostamos e nos aplicamos, é tudo mais natural.

Chegou a fazer os testes psicológicos no secundário para saber as áreas em que estaria mais vocacionada?

Sim, e os resultados indicavam a área de ciências e veterinária, mas também de juíza porque eu sempre tive um grande sentido de justiça e havia também uma parte de economia que me interessava. Mas ainda bem que escolhi veterinária porque posso dizer que eu adoro o que faço e que esta é a única maneira de conseguir sobreviver com o meu dia a dia profissional. Se não gostasse, era impossível trabalhar desta forma.

A sua infância condicionou a escolha pelos animais de produção em vez de enveredar pelos animais de companhia?

Quando estava a estudar, não tinha ideia de qual seria a área que iria escolher. Antes de entrar na faculdade, estava em dúvida entre medicina humana e veterinária. Houve uma fase na veterinária em que não me sentia realizada profissionalmente e andei a pesquisar para tentar tirar o curso de medicina [humana] mas depois tinha o projeto de ter filhos [a Luz tem três anos e o Caetano tem dois] e não era possível conciliar.

Ainda acompanhei um tio meu que é médico para sentir o ambiente onde ele trabalhava e também procurei uma clínica veterinária perto de minha casa para perceber o mesmo.

“Tive uma estagiária comigo no ano passado a ajudar-me durante quatro meses e uma das perguntas do inquérito de estágio era: “O que é que se repete no teu dia a dia?”, e ela respondeu: “almoçar no carro”. Era mesmo a nossa única rotina”

Durante o curso, tínhamos muito contacto com as várias espécies e eu sempre senti um certo gosto pelas vacas. Depois, falei com uma amiga minha sobre a vontade de perceber mais sobre esta espécie e o marido de uma amiga dela trabalhava com vacas de carne e eu acabei por lhe pedir para o acompanhar caso ele precisasse de ajuda. Ele disse-me para lhe ligar na semana seguinte. Comecei a ajudá-lo desde o segundo ano da faculdade e a aprender com ele, numa exploração muito conhecida no Montijo que tem vacas em extensivo, de várias raças. Foi uma forma de estagiar e de ganhar alguma experiência.

Acho que ao longo do curso e da vida profissional, não devemos fechar portas. Temos de aprender a fazer um pouco de tudo. Sempre quis trabalhar com vacas de carne e, neste momento, é o que faço, mas também trabalho com cavalos, éguas e ovelhas. Também faço clínica e urgências, mas a maioria do meu trabalho é ao nível da reprodução.

O seu trabalho varia consoante as estações do ano? Existe alguma sazonalidade?

Sim. O ano não é todo igual. Nem mesmo um dia é igual a outro. Neste momento [Primavera] estou com mais trabalho com a reprodução das éguas, em dezembro e janeiro, tenho mais partos de ovelhas e a parte da reprodução acontece cinco meses antes. No caso das vacas, não é tão sazonal. A parte da profilaxia é feita de forma anual e vamos encaixando consoante a agenda.

Tive uma estagiária comigo no ano passado a ajudar-me durante quatro meses e uma das perguntas do inquérito de estágio era: “O que é que se repete no teu dia a dia?” e ela respondeu: “almoçar no carro”. Era mesmo a nossa única rotina. É muito difícil ter folgas neste momento. Só consigo ir de férias sem interromper para atender alguma urgência se marcar para um destino para o qual tenha de ir de avião. Se ficar em Portugal vou ser sempre contactada. Já estive de férias no Algarve e fui inseminar ovelhas a Vendas Novas.

Trabalha sozinha neste momento?

Sim. Não tenho nenhuma estagiária neste momento. O meu carro é o meu consultório. E é um caos. Além das duas cadeiras dos meus filhos, tenho uma geleira, imenso material e o porta-bagagens cheio de medicação. Gosto de conduzir, gosto muito de música e vou o tempo inteiro a cantar. O meu carro tem um ano e já tem 70 mil quilómetros porque passo muitas horas a conduzir.

É menos comum haver mulheres a trabalhar com animais de produção?

Sim. Em 90% do meu dia trabalho com homens. É um mundo mais de homens, mas já há mais veterinárias a trabalhar na área dos cavalos, por exemplo.

Costumo dizer que não se deve fechar portas porque há dois ou três anos, se me dissessem que eu ia trabalhar com equinos, eu certamente responderia que nem pensar. Eu não gostava de fazer a parte do maneio e, atualmente, é algo que eu adoro fazer porque há um acompanhamento muito individual. Por exemplo, nasceu ontem o poldro de uma égua que eu inseminei no ano passado. Eu vejo a égua várias vezes.

Eu conheço as éguas pelo nome, faço umas dez ecografias por ano e acompanho desde o folículo, faço a inseminação, confirmo a ovulação, vejo o embrião várias vezes em vários meses e assisto ao nascimento. Há uma proximidade maior e é um seguimento mais individual do que coletivo.

Estando mais dedicada a esta área, recebe casos referenciados por colegas e também referencia alguns casos a outros?

No ano passado estava insegura em relação a um caso e referenciei a uma colega mais velha. Nas ovelhas, no caso da inseminação por laparoscopia, peço a um colega espanhol e ele vem realizá-la porque é algo que eu não faço. Nas ovelhas, é muito raro referenciar. Nas éguas, por enquanto ainda não foi necessário na reprodução, posso trocar opinião de casos clínicos com outros colegas porque trabalhar sozinha é um pouco solitário. Por isso, é bom trocar opiniões com colegas para ter mais certezas do que estou a fazer.

Em casos de cólicas graves, como nos casos de equinos que têm de ser submetidos a cirurgia, já referenciei para a FMV-UL.

O que a levou a escolher especificamente a reprodução?

Gosto muito de pensar que estou a ajudar a criar vida. Adoro o nascimento, o parto e a área da genética. Há uma vertente emocional envolvida no meu trabalho.

Tem uma página no Instagram que tem vindo a aumentar em termos de números de seguidores. Qual é o objetivo da @rural_vet?

O meu filho nasceu na altura da pandemia e como eu fiquei mais em casa, comecei a ter um pouco de tempo para me dedicar a este projeto. No começo, escrevia muito sobre casos clínicos e fazia um questionário. Na altura da pandemia tinha mais tempo. Neste momento, o que sinto mais falta é o facto de não ter tempo para fazer uma publicação como gostaria.

Apesar de haver alguma resistência por parte de alguns colegas em relação ao Instagram, para mim, tem sido uma excelente ferramenta de marketing. Dá trabalho, mas é publicidade gratuita. No ano passado, estive a tirar um curso de Reprodução em éguas no Brasil durante um mês e eles lá já têm a mentalidade de fazer uma aula apenas sobre redes sociais porque é uma área em crescimento.

O trabalho tem vindo a crescer muito entre o Instagram e o “passa a palavra” de pessoas que recomendam o meu trabalho.

Como descreve o dia em que estamos a fazer esta entrevista?

Fui deixar os meus filhos à escola à Azeitão. Depois, fui tratar uma égua que já ando a acompanhar há uma semana porque fez uma retenção placentária ainda em Azeitão. A seguir, fui a Pegões fazer uma ecografia a uma égua e fui inseminar uma outra à Merceana que fica perto de Alenquer. Fiz mais umas quantas ecografias em Pregança que fica a cerca de 20 minutos da Merceana. Voltei a Alenquer para fazer ecografias e mais umas quantas a Salvaterra de Magos. Estou a chegar a Samora para ver umas éguas, a seguir vou vacinar um poldro e um pónei a Palmela [no momento da realização da entrevista por telefone].

Amanhã começo novamente às sete e meia da manhã e já tenho alguns destinos delineados, mas o dia acaba por ser imprevisto à mesma. E, sempre que possível, tenho de organizar os horários consoante o tempo de deslocação entre as várias zonas.

*Leia a entrevista na íntegra na edição 172, de junho, da VETERINÁRIA ATUAL.

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