Autodescreve-se como alguém que não consegue estar parada e que precisa de novidade constante na sua vida. Não espanta, por isso, o currículo fora do comum de Filipa Ceia, que primeiro se licenciou em veterinária e depois em medicina, especializando-se em infeciologia. Em entrevista à VETERINÁRIA ATUAL, a médica sublinha que “medicina há só uma” e que é gigante a complementaridade entre prática veterinária e humana. No âmbito da veterinária, reconhece que “devemos orgulhar-nos muito do que temos para oferecer em termos técnicos, hoje em dia”. Lamenta, porém, uma certa mercantilização em detrimento da humanização na prestação dos cuidados.
Tem um currículo impressionante. Formou-se primeiro em veterinária e posteriormente em medicina, especializando-se em infeciologia. Como é que explica este percurso pouco comum?
No secundário, não tinha uma ideia concreta do que gostaria de seguir. Apenas sabia que queria algo relacionado com a saúde. No 10.º ano comecei a ter mais contacto com animais e comecei a sentir-me indecisa entre medicina ou medicina veterinária.
Acabei por entrar em veterinária na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e quando acabei o curso dediquei-me sobretudo à prática clínica na área de pequenos animais. Contudo, no ano em que terminei a licenciatura, o mercado era muito diferente e a empregabilidade menor do que atualmente, sobretudo na área geográfica em que residia. Como não sou de ficar parada, decidi logo nesse ano, em março, inscrever-me nos exames nacionais, que repeti e que me deram acesso a medicina, em setembro.
Fui sempre conciliando o curso de medicina com a prática clínica em veterinária, porque entretanto tive possibilidade de abrir a minha própria clínica e assim conseguia conjugar os horários.
Foi quando acabei medicina e tive que começar a dedicar-lhe mais tempo, que a prática da veterinária, nos moldes até então assumidos, teve que ser revista. Comecei à procura de alguém para me substituir na clínica, mas foi muito difícil − por se tratar de uma zona do interior do País − ter alguém em regime de tempo inteiro para substituição. Tive alguns colegas de quem gostei muito que acabavam sempre por sair para grandes centros urbanos. Por outro lado, os clientes também estavam habituados a um tipo de atendimento de proximidade e o facto de termos essa proximidade acaba por nos prejudicar quando não podemos estar.
Em retrospetiva, talvez essa tenha sido, até agora, a parte mais difícil do meu percurso profissional.
“Quando cheguei à medicina [humana] tornei-me muito melhor veterinária”
 
Percebe-se, efetivamente, que é uma pessoa que “não consegue estar parada”… Mantém atividade no âmbito de ambas as medicinas, o que também não é muito comum. Em que moldes o faz e como é que se articula a prática da medicina humana e da medicina veterinária?
Na verdade, a maior parte do meu horário é dedicado à medicina. Cumpro um horário de 40 horas semanais no hospital. Atualmente, a minha atividade clínica na veterinária é, maioritariamente, assessoria em casos de infeções complexas, para vários colegas que me contactam. Além disso, ainda mantenho alguma atividade na minha clínica, pelo menos aos sábados, que consiste essencialmente em cirurgias de tecidos moles, mas também em consultas mais complexas, de segunda opinião, por exemplo. Mas, não é de todo o grosso da minha atividade neste momento.
Além disso, desempenha um conjunto de cargos em diversas organizações de saúde. Acredita que estas funções contribuem para uma visão macro da saúde?
Não tenho a menor dúvida disso. Todas as experiências que tive, quer ao nível da veterinária, quer ao nível da medicina humana, acho que acrescentam muito à visão que tenho da saúde como um todo. Até mesmo os diferentes locais por onde passei: tirei o curso na UTAD, depois fiz o meu estágio em Aveiro – na Policlínica, que já era uma clínica grande e mais virada para uma visão hospitalar, numa altura em que ainda só existia o hospital do Porto. Tirei o curso de medicina em Coimbra e antes de entrar em infeciologia, ainda estive um ano e meio em medicina geral e familiar, passei por Moimenta da Beira, fiz estágios no Hospital de Vila Real e só depois é que vim para o Porto. Portanto, passei por muitos sítios, em todos aprendi alguma coisa, e sem dúvida que isso nos dá uma visão abrangente que é difícil ter quando estamos sempre no mesmo local.
Em relação aos cargos que exerço… Na verdade não há super-pessoas e só é possível desempenhar alguns cargos se os desempenharmos no seio da nossa atividade normal. Acredito muito no trabalho de dedicação, acho que temos que nos dedicar às coisas para elas acontecerem. O que acontece é que com o passar do tempo vamos tendo uma maneira de trabalhar que é muito mais abrangente e muito menos dependente de nós próprios. Há trabalho que é feito por outros, mas que é partilhado, e essa partilha é o que torna possível sermos capazes de desempenhar várias tarefas, caso contrário é incomportável.
Como sucedeu este caminho de ter ido dar à infeciologia? Foi uma escolha consciente ou fruto do acaso?
Foi uma escolha totalmente consciente. Muito mesmo! Há algumas coisas na infeciologia que são únicas! Por isso, voltaria a escolher a infeciologia. Foi a minha primeira escolha, só fui para MGF porque, na primeira vez que fiz o exame de admissão à especialidade – o Harrison, ainda – não consegui estudar porque estive sempre a trabalhar. Optei por uma vaga que me permitisse continuar a estudar para repetir o exame de acesso à especialidade e entrar em infeciologia que era mesmo o que eu queria.
É engraçado, porque na maioria das vezes acabamos por ser influenciados na escolha da especialidade por um colega, mas, no meu caso, foi mesmo a veterinária. Quando fiz o ano comum de medicina, no Hospital dos Covões (em Coimbra), a primeira especialidade que escolho como opcional é precisamente a infeciologia. E tinha escolhido um mês em infeciologia e outro em medicina física e de reabilitação e acabei por ficar os dois meses na infeciologia e eu acho que isso vem da veterinária, vem do facto de eu gostar das doenças infeciosas na veterinária, vem das zoonoses, vem dessa apetência que já tinha através da medicina veterinária.
“Voltaria a escolher a infeciologia! (…) [O meu gosto por esta especialidade] vem da veterinária, vem do facto de eu gostar das doenças infeciosas na veterinária, vem das zoonoses, vem dessa apetência que já tinha através da medicina veterinária.”
Apaixonei-me pela infeciologia e por algumas particularidades que só esta especialidade tem. A infeciologia é a especialidade mais cirúrgica das especialidades médicas, porque trata, cura e dá alta. É um percurso que tem muito de “espírito de cirurgião”: resolve no imediato e não é tanto uma especialidade de cronicidade (ainda que tenha, em alguns casos, essa componente). Lá está… para quem gosta de novidades e de estar sempre a mexer é a escolha certa e encaixa muito bem na minha personalidade. No âmbito das doenças infeciosas estão sempre a surgir coisas novas, nunca sabemos tudo sobre doenças infeciosas.
Onde se aproximam e onde se afastam a medicina humana e a medicina veterinária?
Na verdade, há só uma medicina. O que distingue um médico é a sua capacidade de raciocínio como médico. Somos treinados para pensar como médicos. Essa é a grande distinção da formação em medicina. E nesse aspeto ambas são idênticas, só as espécies mudam. E o encontro é tão grande que é impossível dissociá-las e quando trazemos para a medicina aquilo que já sabemos da veterinária penso que pode ser um upgrade.
Posso dizer que achei o curso de medicina mais fácil do que o de veterinária, precisamente porque já tinha as bases. O “bê-á-bá” da medicina aprendi-o na veterinária, pelo que é inegável que a complementaridade é gigantesca.
As diferenças são, de facto, muito poucas… Quando eu era aluna de veterinária, achava que na medicina [humana] ia conseguir fazer tudo, que teria tudo à minha disposição, que não haveria as limitações que temos com os animais (por não haver dinheiro) e que nos obrigam a avançar muito devagar e sequencialmente. E, realmente, faz toda a diferença quando se chega à medicina e se percebe que também não temos tudo à disposição como achávamos…
Quando cheguei à medicina tornei-me muito melhor veterinária, por pensar muito mais no bem-estar do animal como um todo, do que na doença ou no tratamento topo de gama. Não deixa de ser engraçado ter ido buscar isso à medicina. Porque na medicina – que nesse aspeto está mais evoluída que a veterinária (e refiro-me sempre à parte clínica de pequenos animais) – está muito virada para a terapêutica de última linha, para a parte cirúrgica e para a cultura de que tudo tem que ter uma resolução imediata. A medicina ensinou-me exatamente o oposto: às vezes é preciso esperar, dar tempo e ir sequencialmente. “Não fazer mal em primeiro lugar” e depois então tratar, que são os princípios básicos do exercício da medicina (humana e veterinária).
Como avalia a evolução da medicina veterinária em Portugal e do seu papel na sociedade?
Eu acho, com muita convicção, que estamos bastante melhor do que estávamos na altura em que eu terminei o curso, em 2014, em que a oferta para assistência médica a animais de companhia era muito escassa. Havia pouca coisa, duas ou três clínicas concentradas nas grandes cidades, e atualmente temos uma oferta vastíssima, com uma qualidade técnica enorme e que nos permite, quase em todos os grandes centros urbanos, ter uma pessoa mais diferenciada em áreas específicas. Mesmo não sendo especialistas, os profissionais cada vez mais se procuram diferenciar e isso é bom, porque nem todos podemos saber de tudo.
Por outro lado, também tenho que dizer que acho que a veterinária está mais desumanizada, com uma muito parca componente humana no cuidado, porque é tudo muito mais acelerado, tudo muito “para ontem”, os resultados económicos também têm que aparecer e isso torna a veterinária um pouco… não queria estar a usar uma palavra forte… mas, torna-a mercantilizada e isso não é bom.
Todavia, em termos técnicos, devemos orgulhar-nos muito do que temos para oferecer neste momento.
Estamos a par das congéneres europeias e mundiais?
Sem dúvida que sim, até porque temos muita gente que se forma no estrangeiro e que vêm exercer para Portugal. Cada vez mais as pessoas investem na formação e numa formação de qualidade e isso é fulcral para as competências técnicas que temos nesse momento. Tenho muita confiança no trabalho dos colegas em qualquer local, porque as pessoas estão bem formadas e são capazes de resolver a maior parte dos problemas clínicos.
Considera que a pandemia de covid-19 pôs ainda mais a nu a necessidade de adoção de uma abordagem integrada animais-humanos-ambiente, a chamada One Health/Uma Só Saúde?
A pandemia expôs a sua importância e o conceito One Health tem hoje a boa reputação que tem também porque existiu a pandemia de covid-19. Na verdade, não haveria nenhuma razão para não a ter, porque olharmos bem para o conceito questionamo-nos porque é que não pensámos sempre assim… Parece que andamos a negar o óbvio e com um atraso de milhares de anos…
No meu caso, porém, este conceito é a minha vida. Sinto que sou uma verdadeira personificação do One Health, porque eu nunca pensei nem só como médica, nem só como veterinária, porque tudo foi sempre um contínuo e estas três esferas da saúde andaram sempre lado a lado e de mãos dadas.
“Sinto-me uma verdadeira personificação do conceito One Health”
Felizmente, acho que cada vez mais estamos a caminhar no sentido certo: há vontade política, há vontade das instituições, das organizações científicas, toda a gente reconhece a validade e a importância deste conceito. O que sinto é que se continua a confundir conceito com disciplina. Ora, isto não é uma disciplina que se ensine numa faculdade, mas algo que tem de se incorporar na vida, na cultura, no dia a dia, na prática. Um pouco à semelhança do que aconteceu com a reciclagem. Devemos ensinar às crianças, desde muito pequeninas, que todas as formas de vida devem ser respeitadas, que devemos sempre pensar como um todo e só assim a sociedade/comunidade conseguirá interiorizar este conceito. É esse trabalho que temos que começar a fazer, consistentemente, de forma que daqui a 30 anos tenhamos uma sociedade preocupada e realmente a fazer alguma coisa, na prática, pela saúde de todos.
Quão longe estamos, a nível nacional, de uma implementação efetiva desta abordagem Uma Só Saúde e qual o grau de sensibilização de médicos, médicos veterinários e população em geral para esta questão?
Os médicos veterinários sempre estiveram sensibilizados para esta questão, porque a medicina veterinária em si sempre teve um papel preponderante na saúde pública. Falamos muito e quase sempre exclusivamente de atividade clínica, mas não podemos esquecer as outras atividades relevantes de um médico veterinário, como o são a inspeção sanitária, por exemplo. Não é à toa que o conceito One Health nasce da veterinária, com William Karesh e com a medicina veterinária de animais selvagens.
O que não pode continuar a acontecer é termos estas outras vertentes da veterinária fechadas sobre elas próprias. E o mesmo sucede com a medicina, muito fechada nos seus silos. É obviamente fundamental, nesta lógica de tríade humana-animal-ambiental, que haja diálogo e partilha entre medicinas e áreas de saber.
Na medicina humana, estou convencida de que se fizéssemos um estudo à porta das faculdades, mais de 50% dos inquiridos seguramente nunca ouviram falar de One Health. No ano passado, estive a representar a Universidade do Porto no certame MOSTRA, onde apresentámos o conceito de Uma Só Saúde e a maior parte das pessoas desconhecia por completo… Na medicina, o One Health ainda é um conceito que está a nascer e há muito trabalho a fazer nesse sentido.
Que medidas/estratégias considera serem necessárias para implementar no terreno estas boas práticas?
É esse trabalho que quero fazer com um grupo que criámos recentemente no Hospital de São João propositadamente para este efeito. Para, antes de mais, criarmos laços verdadeiramente profundos entre saúde humana, animal e ambiental, de forma que possamos trabalhar em conjunto. E depois, temos que envolver a sociedade/comunidade. Se assim não for, não é possível…
Há pouco apontou a importância da veterinária na Saúde Pública e da relevância desta especialidade no contexto do One Health. Vemos porém que, mesmo após a pandemia, a saúde pública permanece como um parente pobre da medicina…
Infelizmente é verdade… Vivemos uma enorme escassez de recursos. Mas, One Health, é muito mais do que apenas saúde pública, ainda que esta desempenhe um papel determinante na operacionalização deste conceito.
Porém, os recursos são poucos e acabam canalizados para algumas tarefas burocráticas que poderiam ser realizadas por outras classes profissionais, que não precisavam de ser levadas a cabo por médicos/delegados de saúde pública. E assim se perdem recursos para a implementação de medidas em One Health.
Se ao nível de uma autarquia, há um delegado de saúde e um médico veterinário municipal que nunca reúnem, não fazem trabalho efetivo de planeamento e apenas reagem face a ocorrências pontuais – porque legalmente mandatório – então nunca vamos ter mudança no sentido da tão almejada Uma Só Saúde. Se a saúde pública, quer veterinária, quer humana, não for implicada e integrada, é impossível levar este conceito à prática.
Apostar numa vertente preventiva e não agir unicamente de forma reativa…
No geral, acreditamos muito pouco em preparação e prevenção. Mesmo depois do que vivemos com a covid-19, quando falamos atualmente nos vírus das febres hemorrágicas, como o Ébola ou o Marburg, continua a ser muito difícil passar a ideia da necessidade de preparação e da dispensa de recursos específicos e dedicados para essa área.
Porque depois quando acontece algo e há uma pandemia, já vamos estar preparados. Isso viu-se na covid… Felizmente, no Hospital de São João, tivemos a sorte de estarmos a fazer preparação. Já tínhamos criado a Unidade de Doenças Infeciosas Emergentes e estávamos a fazer formação para resposta aos vírus hemorrágicos e isso fez com que estivéssemos mais preparados para responder à covid-19 logo de início. Embora fosse uma preparação muito curta, fez diferença na nossa capacidade de resposta.
Que mensagem gostaria de deixar aos colegas veterinários?
Gostaria de reforçar a ideia do quão importante é termos como ónus da nossa prática a pessoa/animal que está à nossa frente, isto é, colocar sempre no centro de cada decisão e atitude o ser humano, animal ou ecossistema.
Esta é a forma mais natural e intuitiva de passar o conceito de One Health da teoria à prática e de ter mais humanização e mais empatia na nossa atuação. É que por vezes estamos distraídos com coisas que são acessórias e acabamos por desviar o olhar daquilo que realmente importa, que é a nossa responsabilidade perante quem está à nossa frente.
O conceito One Health tem tudo a ver com empatia, com pensarmos que não estamos sozinhos. Somos só mais uma espécie.
CV
Licenciada em Medicina Veterinária pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
Licenciada em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
Especialista em Doenças Infeciosas.
Assistente convidada de Doenças Infeciosas na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Mantém a sua atividade profissional, clínica e científica no Serviço de Doenças Infeciosas do Centro Hospitalar Universitário de São João (Porto), no qual se dedica às várias áreas das Doenças Infeciosas, nomeadamente Doenças Infeciosas Emergentes.
Mantém a sua atividade veterinária através da formação e consultoria/consulta clínica na área das Doenças Infeciosas.
Membro da Sociedade Portuguesa de Doenças Infeciosas e Microbiologia Clínica.
Membro da Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infeciosas.
Autora de diversos artigos científicos, também participou como palestrante em diversos congressos e cursos de pós-graduação nas áreas de Doenças Infeciosas e One Health.
*Entrevista publicada na edição 171, de maio, da VETERINÁRIA ATUAL.