Localizado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, o MicroART, liderado pela docente Patrícia Poeta, integra uma equipa multidisciplinar composta por 25 elementos. O grupo tem em curso vários projetos e estudos e, mesmo em ano de pandemia, continua empenhado e ativo tendo o conceito One Health como base de qualquer investigação.
O MicroArt (Microbiology and Antibiotic Resistance Team) é um grupo de investigação com sede na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e que atua na área da resistência bacteriana aos antibióticos, estudando os seus mecanismos de ação há mais de 20 anos. “Procuramos decifrar como as bactérias transmitem e adquirem estas resistências e as consequências na saúde humana, animal e dos ecossistemas. A aquisição e a transferência de genes de resistência aos antibióticos associados à seleção exercida pelo uso intensivo destas substâncias explicam a situação alarmante em medicina humana à escala mundial”, foca Patrícia Poeta, professora catedrática da UTAD.
O tema não é novo e tem estado muito nos holofotes dos meios de comunicação social. O aumento mundial dramático de bactérias patogénicas resistentes a várias classes de antibióticos já suscitou inclusive campanhas de sensibilização da população e de profissionais de saúde para alertar para o excesso de prescrição destes fármacos, como foi o caso da iniciativa da Direção Geral da Saúde no âmbito do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistências a Antimicrobianos, em fevereiro passado. “Os aumentos de infeções causadas por microrganismos resistentes não respondem ao tratamento convencional e, até mesmo os antibióticos de último recurso perderam o seu poder”, explica a também especialista europeia em Microbiologia Veterinária pelo European Board of Veterinary Specialisation.
O grupo de investigação do MicroArt tem vindo a estudar alternativas aos antibióticos para combater as bactérias multirresistentes, como sejam, os subprodutos naturais da indústria vitivinícola e da indústria alimentar, entre outros. “Desta forma, preconizamos distintos estudos epidemiológicos sobre a situação e perfil de bactérias multirresistentes detetadas em diferentes nichos ecológicos tentando contribuir para auxiliar na prevenção e disseminação de resistências que se traduzem num problema grave de saúde pública ao mesmo tempo que procuramos encontrar soluções distintas para combater este problema”, afirma Patrícia Poeta que considera um desafio diário liderar este conjunto de pessoas. “Quando me licenciei soube, imediatamente, que queria fazer investigação. Comecei, desde muito cedo, a lecionar as aulas práticas no curso de Medicina Veterinária, desde 1997, começando a perceber a importância da microbiologia veterinária no diagnóstico médico-veterinário.”
São vários os investigadores envolvidos neste grupo de diferentes formações académicas e diversas valências que permitem chegar a resultados promissores nesta área. No total, o MicroArt integra 25 elementos, entre alunos de estágio, mestrado, doutoramento, investigadores e docentes e inclui valências que vão desde a área da medicina veterinária, medicina, biologia, zootecnia, viticultura e enologia, economia, gestão e bioquímica. “Apesar de mantermos uma estreita colaboração com o grupo de Investigação da Universidade de La Rioja, temos cooperações com outras entidades, como por exemplo, o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, a Universidade de Aveiro, a Universidade do Porto, a Universidade de Lisboa, Universidad Complutense de Madrid e várias instituições que trabalham na conservação da vida selvagem, além de federações de associações da caçadores”, explica a docente.
“É urgente o desenvolvimento de novas vacinas, novos medicamentos e de novas técnicas que permitam um diagnóstico rápido, auxiliando os clínicos nesta tarefa e na escolha do tratamento” – Patrícia Poeta, professora catedrática da UTAD
A investigação desenvolvida por este grupo conta então com parcerias nacionais e internacionais que facilitam a continuidade e aprofundamento dos estudos nas áreas de interesse e a mobilidade de estudantes de mestrado e doutoramento. “O termo ‘saúde única’ tem sido usado pelo MicroArt há vários anos e ficamos muito satisfeitos de verificar que, mais recentemente, outros grupos o começam a aplicar sendo imperativo integrar a saúde humana, a saúde animal, o ambiente e a adoção de políticas públicas efetivas para prevenção e controle de doenças a nível local, regional, nacional e global”, salienta Patrícia Poeta. Dados mundiais indicam que existe cada vez mais consciência deste facto, porque se estima que as zoonoses causem 2,5 biliões de casos de doença e 2,7 milhões de mortes anualmente, em todo o mundo, sendo que, de cinco doenças humanas novas que surgem a cada ano, três delas são de origem animal”.
As consequências da pandemia
Devido à pandemia de covid-19, com sucessivos períodos de confinamento e restrições do número de pessoas no laboratório e a redução dos horários de trabalho laboratorial, determinadas tarefas que a equipa considera cruciais para o desenvolvimento de alguns projetos não foram executadas, o que conduziu a um atraso ou paragem na componente experimental. “Neste contexto, a caracterização genotípica de algumas bactérias e o sequenciamento total do genoma das estirpes mais relevantes no contexto da saúde pública e ‘uma só saúde’ foram afetadas pois, devido à pandemia, não foi possível estabelecer as colaborações, nem o trabalho experimental nas diversas instituições envolvidas em projetos inicialmente elencados para a condução/colaboração das mesmas”, partilha Patrícia Poeta.
Por outro lado, as implicações da covid-19 na resistência a antibióticos constitui uma preocupação do grupo MicroART. “Todos os anos morrem 700 mil pessoas devido à resistência aos antibióticos e o cenário pode complicar-se ainda mais no futuro, tal como mostram as previsões realistas e assustadoras da Organização Mundial de Saúde, que nos diz que se o consumo de antibióticos se mantiver nos números atuais, a resistência aos mesmos, e consequente falha no tratamento, vai ser responsável pela morte de 10 milhões de pessoas até 2050”, cita a docente. Além de todas as implicações, já conhecidas, relativas ao vírus do SARS-CoV-2, na saúde humana, também esta doença poderá estar a agravar a prevalência mundial de resistência antimicrobiana, admite. “É essencial estarmos alertados para as consequências de saúde pública que poderão estar relacionadas com o tratamento de infeções secundárias em pacientes com covid-19.”
O uso inadequado ou exagerado de antibióticos tem implicações na resistência antimicrobiana. “São necessárias medidas urgentes, de forma a reduzir a administração e uso de antibióticos, bem como para a consciencialização da população em geral, incluindo a classe médica, sobre o uso inadequado dos mesmos, e a implementação de medidas higio-sanitárias de forma a prevenir a infeção e transmissão de doenças infeciosas.” Por outro lado, segundo comunicado recentemente pelo Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento), o consumo de antibióticos em ambulatório, em Portugal, desceu 23% em comparação com o ano de 2019 principalmente a amoxicilina + ácido clavulânico, a azitromicina e a amoxicilina. “Este facto deveu-se, sobretudo, às medidas de prevenção contra a covid-19 e ao confinamento que impediram a transmissão de infeções bacterianas, principalmente as respiratórias, onde a esmagadora maioria destes antibióticos são prescritos.”
Independentemente do contexto pandémico, o grupo de investigadores do MicroART continua empenhado a escrever artigos científicos, compilar e tratar os diferentes resultados e a apresentá-los em palestras, congressos nacionais e internacionais, maioritariamente realizados online e com o contributo de colegas de outros países, o que deu a oportunidade para abrir portas a mais e novas colaborações.
Sinais de alerta
Recentemente, o MicroART publicou um estudo no qual participou a investigadora Carla Miranda, e que teve como objetivo fazer um levantamento de conhecimento e consciencialização sobre o uso e administração de antibióticos por parte dos profissionais de saúde de medicina humana e veterinária, assim como, dos estudantes destas áreas, como futuros profissionais de saúde. “Para tentar perceber melhor quais as lacunas a este nível, dividimos os entrevistados em quatro grupos socioprofissionais: A (alunos de graduação), B (alunos de doutoramento e investigadores), C (docentes) e D (técnicos e outras ocupações)”, explica Patrícia Poeta.
“Ao trabalhar em conjunto podemos fornecer aos colegas qual o agente causador da doença infeciosa e, por exemplo, qual o antibiótico a administrar ou qual a sensibilidade antibacteriana de uma determinada bactéria responsável pela infeção” – Carla Miranda, investigadora e doutorada na UTAD
Com os resultados deste estudo verificou-se que, entre todos os entrevistados, 17% revelou alguma lacuna no conhecimento sobre a resistência aos antibióticos e referiu que estes devem ser administrados para diferentes tipos de infeção (bacteriana, viral ou fúngica). “Contudo, dos 159 proprietários de animais de companhia, entre os entrevistados, apenas metade tinha administrado antibióticos ao animal e 64% (n = 102) sabiam que a prescrição veterinária é obrigatória na administração de antibióticos a animais. Todos os grupos concordaram (estatisticamente falando) que a resistência a antibióticos é um grande problema de saúde pública e os antibióticos devem ser administrados para infeções bacterianas e utilizados até a finalização da embalagem inteira (p = 0,00).”
Os grupos B e C demonstraram um maior nível de conhecimento para reconhecer o nome do antibiótico e o seu princípio ativo, comparativamente com os alunos de graduação (p = 0,00). “Os grupos A, C e D foram estatisticamente significativos para o conhecimento sobre a prescrição veterinária obrigatória e os grupos C e D foram estatisticamente significativos para o conhecimento completo da transmissão de bactérias entre animais e humanos. Portanto, verificamos que todos temos de trabalhar em conjunto para este problema multidisciplinar, com o melhoramento ao nível do comportamento, educação e consciencialização do público em geral e profissionais de saúde, incluindo aqueles que prescrevem antibióticos para humanos e animais”, salienta Patrícia Poeta.
Este estudo veio ao encontro de outras investigações já realizadas e revela também a necessidade de formação contínua na área dos antibióticos e de testes de diagnósticos mais rápidos. “Neste sentido, é urgente o desenvolvimento de novas vacinas, novos medicamentos e de novas técnicas que permitam um diagnóstico rápido, auxiliando os clínicos nesta tarefa e na escolha do tratamento.”
Para a autora deste estudo, também médica veterinária a exercer funções de investigadora doutorada na UTAD, o seu maior desafio é responder e alertar para este problema das resistências antimicrobianas numa perspetiva “one health”, assim como, o uso inadequado de antibióticos a nível clínico e doméstico. “Desta forma, iremos contribuir para que medidas mais direcionadas e decisões mais assertivas possam ser tomadas, a nível nacional e internacional, para mitigar este problema mundial”, explica Carla Miranda. O que a fascina na sua função é saber que pode “contribuir para a salvaguarda da saúde pública, através de vários estudos, consistindo estes num sinal de alerta para a comunidade científica, quer no impacto do uso sobretudo de antibióticos durante a pandemia e nas resistências emergentes de enterococcus e staphylococcus resistentes à meticilina em animais de companhia, quer no levamento sobre o conhecimento, gestão e uso de antibióticos existente entre estudantes e profissionais de saúde humana e veterinária”, refere.
Equipa jovem e multidisciplinar
Carla Miranda e Vanessa Silva, de 34 e 30 anos, respetivamente, integram uma equipa de jovens com grande espírito de trabalho conjunto. Para a primeira, o facto de poder desenvolver “trabalhos na área da microbiologia e dar respostas a temas tão atuais e de elevada importância para a saúde pública, como a resistência antimicrobiana, é fascinante”. A sua motivação para a investigação teve início durante o estágio do curso de mestrado integrado em medicina veterinária, onde teve a oportunidade de analisar as lesões durante o exame post mortem de animais destinados ao consumo humano, sobretudo suínos, e analisar estas lesões a nível microbiológico, histopatológico e genético para determinar qual o agente etiológico.” A colaboração entre clínica e investigação é fundamental, defende. “Ao trabalhar em conjunto podemos fornecer aos colegas qual o agente causador da doença infeciosa e, por exemplo, qual o antibiótico a administrar ou qual a sensibilidade antibacteriana de uma determinada bactéria responsável pela infeção”, defende.
Relativamente à prática clínica, embora tenha direcionado o seu caminho profissional para a investigação, a sua entrada na medicina veterinária foi com o objetivo de fazer clínica de animais de companhia. “Por isso, tento sempre que possível fazer clínica, fi-lo nas férias ao longo do meu doutoramento e colaborei recentemente com uma clínica de pequenos animais.” Carla Miranda considera essencial conhecer os problemas que surgem na prática clínica, pois o sucesso da clínica e investigação veterinária depende desta interligação entre ambas as partes.
“A investigação no MicroART não se limita apenas a estudar a resistência aos antibióticos, mas também outros aspetos dos microrganismos em diversas áreas científicas” – Vanessa Silva, investigadora e doutoranda na UTAD
Vanessa Silva é investigadora e doutoranda e desenvolveu o interesse pela área de microbiologia e das ciências biomédicas desde muito cedo. Na sua dissertação de mestrado trabalhou com o Grupo de Animais de Laboratório estudando, desenvolvendo e aperfeiçoando biomateriais para serem usados em odontologia em pacientes diabéticos. Em simultâneo, participou em vários projetos de investigação e, em 2017, integrou o grupo MicroART onde trabalha desde então. “Acho que a microbiologia é fascinante porque estuda pequenos organismos que estão implicados em quase todos os aspetos da vida como a conhecemos”, defende.
Nesta, que considera uma “jornada de aprendizagem incrível”, sente que tem a oportunidade de enriquecer os seus conhecimentos e de melhorar o espírito crítico. “Além disso, tem sido uma oportunidade única para criar novos laços profissionais e pessoais, nacionais e internacionais. A investigação no MicroART não se limita apenas a estudar a resistência aos antibióticos, mas também outros aspetos dos microrganismos em diversas áreas científicas”, sublinha.
Atualmente, Vanessa Silva dedica-se sobretudo à resistência aos antibióticos por parte de diversos géneros de bactérias no contexto de “uma só saúde”, assim como “a habilidade destas bactérias para produzirem biofilme, o que inclui isolamento de bactérias de amostras de humanos hospitalizados e da comunidade, animais de companhia, de produção e selvagens, e meio ambiente como solos e águas superficiais, realização de antibiogramas de modo a avaliar as resistências aos antibióticos por parte das bactérias isoladas, investigação dos genes de resistência, virulência e dos proteomas.” Em 2018, obteve uma bolsa de doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia para desenvolver o seu projeto de tese intitulado “Integrating multiple ‘omics’ analysis of methicillin-resistant Staphylococcus aureus (MRSA) biofilms: a One Health approach to a global threat”.
Patrícia Poeta confessa que não é tarefa fácil passar o conceito aos estudantes de que, para fazerem tratamento, têm de conhecer a etiologia e fazer um correto diagnóstico, o que pode passar pelo laboratório e pela microbiologia médica / veterinária. “O conceito de médico veterinário ainda tem uma grande conotação com a parte clínica. Contudo, tenho sempre incentivado os meus estudantes a desenvolverem parte da sua formação académica e atividades de investigação, quer em Portugal, quer em outros países europeus, de forma a contactarem com outras realidades de ensino”, conclui.
Áreas de investigação prioritárias no MicroART
– Genómica e proteómica aplicada à resistência a antibióticos;
– Genómica aplicada ao estudo dos fatores de virulência bacterianos;
– Os probióticos em biotecnologia e na saúde;
– Alternativas ao uso dos antibióticos;
– O MicroART foi pioneiro no estudo de resistências a antibióticos em bactérias do lince ibérico tendo, para este efeito, celebrado uma cooperação com a Conselharia do Meio Ambiente da Andaluzia, em Espanha, já em 2009.
*Artigo publicado originalmente na edição 148, de abril de 2021, da VETERINÁRIA ATUAL.