Longe vão os tempos em que a odontologia veterinária e a cirurgia maxilofacial veterinária poderiam parecer “ficção científica” para alguns tutores. Hoje, mais evoluídas que nunca, dão resposta a todo o tipo de patologias orais e até a preocupações estéticas. Os médicos veterinários que trabalham na área dizem que a rentabilidade económica que podem trazer para o setor e a crescente consciencialização dos tutores para o papel da saúde oral na saúde e bem-estar geral dos animais estão a servir de catalisador para esta evolução.
A evolução do conhecimento sobre as patologias da cavidade oral, a melhoria da formação em odontologia veterinária e o interesse de cada vez mais médicos veterinários, que também veem na área uma forma de melhorar a rentabilidade dos seus CAMV através da diversificação da oferta, têm contribuído para o aumento do número de clínicas com serviços de odontologia e cirurgia maxilofacial veterinária.
Mas, apesar da evolução do conhecimento e da crescente consciencialização para a importância da profilaxia na saúde oral, apenas 14% dos tutores em Portugal cuidam diariamente da saúde oral dos seus cães. A conclusão foi recentemente divulgada pela MARS, que, em parceria com a IPSOS e Patrícia Gayán, responsável pelo Departamento de Odontologia e Cirurgia Maxilofacial do Hospital Veterinário de São Bento (HVSB), em Lisboa, realizou o estudo Importância Dos Cuidados de Saúde e Higiene Oral nos Cães.
De acordo com o documento, 70% dos donos afirmam estar conscientes de que se não existirem cuidados de saúde oral frequentes podem desenvolver-se problemas mais graves, contudo, a maioria (54%) admite não se deslocar com frequência ou não levar de todo o animal ao médico veterinário devido a questões relacionadas com a saúde oral, apesar de as recomendações apontarem para a importância de dois check-ups orais anuais para despiste de patologias.
O mau hálito, o cálculo e as cáries dentárias são os problemas de saúde oral canina que os tutores mais conhecem e os métodos de prevenção mais utilizados são as barras mastigáveis (73%), a escovagem dos dentes (16%) e o gel antitártaro (12%). Ainda assim, apenas 40% dos tutores acreditam ser necessário usar estes produtos diariamente, com a escovagem do pelo e a limpeza dos olhos a serem apontados como os cuidados mais frequentes que os tutores têm com os seus cães.
Prevenir ou remediar?
Mais curioso ainda é que 70% dos tutores dizem estar conscientes de que as doenças orais podem levar a problemas de saúde mais sérios para os seus cães, mas apenas 11% afirmam cuidar da saúde oral do seu cão como cuidam da sua.
A médica veterinária Patrícia Gayán, que participou na realização do estudo, acredita que “estes dados são preocupantes, uma vez que uma incorreta saúde oral pode levar ao desenvolvimento de doenças inflamatórias, como gengivite e periodontite, as quais têm uma larga incidência na população canina. A doença periodontal é, aliás, a doença que mais diagnosticamos em consulta nos animais, sobretudo porque não existe sensibilização para a importância destas questões e cuidados a ter. Tal como em nós, humanos, também nos cães a boca é o espelho do organismo”.
“A classe médico-veterinária está pouco desperta para a matéria da odontologia, ainda que esta lhes possa oferecer novas possibilidades de interação com o seu cliente” – Patrícia Gayán
A médica veterinária diz ainda que entre as conclusões do estudo, a que mais a surpreendeu foi o facto de se “chegar à conclusão que a classe médico-veterinária está pouco desperta para a matéria da odontologia”, ainda que esta lhes possa oferecer novas possibilidades de interação com o seu cliente. “Nem sempre é dada suficiente informação aos tutores sobre os cuidados preventivos e existe até uma franja que nem os implementa nos seus próprios animais de estimação”, afirma.
E em relação à atitude dos tutores? “Verificamos que a consulta de rotina preventiva começa a ser regular na nossa prática, com alguns tutores a considerarem esta visita de prevenção uma necessidade que lhes pode diminuir preocupações futuras.”
Patrícia Gayán conta ainda que há cerca de 25 anos, quando começou a fazer cirurgia odontológica a animais, a área “parecia ficção científica” e “pedir a um tutor para tratar os dentes do seu animal era algo que obrigava a uma prévia sensibilização”. Contudo, acredita que se “evoluiu muito”.
“Devido à crescente procura de serviços cada vez mais especializados na área, impulsionada pelo maior acesso à informação, temos assistido a grandes evoluções, tanto no diagnóstico como nos tratamentos realizados ao nível da cavidade oral”, garante a responsável pelo Departamento de Odontologia e Cirurgia Maxilofacial do HVSB.
A médica veterinária diz que uma das maiores tendências são os tratamentos regenerativos. “Nesta matéria, houve uma grande evolução, fruto de todo um trabalho de investigação que continua a acontecer. Podemos afirmar que, hoje em dia, fazemos todo o tipo de tratamentos médicos e cirurgias que se realizam na área congénere de medicina humana. Desde simples limpezas a cirurgia periodontal, passando pela aplicação de próteses adaptadas a cada caso clínico, resolução de fraturas, etc.”
Atualmente, a doença periodontal e as fraturas, tanto dentárias como as relacionadas com a mandíbula ou maxila, continuam a ser os problemas odontológicos que mais obrigam a tratamentos cirúrgicos em animais, sobretudo no caso dos cães. No caso dos gatos, os problemas que mais frequentemente lhe surgem em consulta são as estomatites e as lesões de reabsorção dentária.
A médica veterinária diz ainda que, apesar de ser necessário continuar a fazer o mesmo trabalho de sensibilização de há 25 anos, os tutores estão hoje mais disponíveis para investir em tratamentos dentários.
“Já existe uma maior consciência e sensibilização dos tutores no que diz respeito à importância de uma boa higiene oral e às consequências negativas que a imprudência e as más práticas de saúde oral podem acrescentar à morbilidade do animal. Contudo, parece-me que ainda temos um caminho a percorrer nesta tarefa de sensibilização. Quando a patologia obriga à cirurgia, por regra, os tutores, confrontados com o problema, estão disponíveis desde que seja explicado o relevo e importância da patologia do seu animal. No entanto, temos de continuar a apostar na educação dos nossos clientes e na formação dos profissionais veterinários”, conclui.
Preservar a anatomia da cavidade oral
Bruno Tavares, diretor clínico da Clínica Veterinária da Boa Nova, em Leça da Palmeira, e médico veterinário que contribuiu para a criação do serviço de Estomatologia do Hospital Veterinário Montenegro, dedica-se à odontologia e à cirurgia maxilofacial veterinária há cerca de nove anos. No final de 2019, recebeu na sua clínica o primeiro ortopantomógrafo de uso veterinário do País.
Filho de um estomatologista, desde cedo se interessou pela odontologia veterinária, que na sua opinião, tem vindo a aproximar-se da medicina humana nos últimos anos. “Quando cheguei à medicina veterinária já acompanhava o meu pai em estomatologia humana e tinha um vasto conhecimento na medicina humana. Na chegada à veterinária, ao Hospital Veterinário Montenegro, percebo que a odontologia era ainda muito arcaica. O que se tem verificado nos últimos anos, mesmo em estruturas no estrangeiro, é que os médicos veterinários procuram aproximar-se da medicina humana, até porque a tecnologia está a evoluir nesse sentido e é preciso recorrer a esses instrumentos para resolver outros problemas que não apenas destartarizar e extrair, que era o que se fazia há cinco ou dez anos. A medicina veterinária está, sem dúvida, a aproximar-se da medicina humana”, conta.
Entre os maiores avanços da área aponta a evolução da imagiologia dedicada à cavidade oral. De acordo com Bruno Tavares, a radiografia panorâmica digital associada ao raio-x intraoral “é fundamental” como base do trabalho diário em estomatologia. “Essa foi a principal razão pela qual sentimos a necessidade da instalação do primeiro ortopantomógrafo do País [na Clínica Veterinária da Boa Nova]. Além disso, existe um avanço muito significativo também nos equipamentos dentários, o que confere um maior detalhe e rigor clínico aos tratamentos cirúrgicos da boca. Atualmente esta convergência entre a utilização dos meios digitais e a tecnologia inovadora dos equipamentos permite uma abordagem mais delicada, favorecendo uma maior taxa de sucesso e melhor recuperação dos tecidos.”
Apesar de os problemas odontológicos em cães e gatos terem características diferentes, o médico veterinário acredita que a cirurgia odontológica se justifica sempre que é necessário repor a função anatómica ou pôr fim à dor e à doença crónica.
Entre os problemas odontológicos que mais frequentemente trata por via cirúrgica estão “as lesões e fraturas dentárias com viabilidade radicular, que podem ser tratadas por desvitalização (pulpectomia parcial ou total), evitando a perda dentária”.
Além disso, aponta a cirurgia ortognática como uma solução frequentemente usada para “as más oclusões traumáticas, genéticas ou congénitas” e revela que “com o aumento da incidência de tumores, a exérese de massas benignas ou malignas está cada vez mais presente na prática clínica veterinária”.
“Na maior parte dos CAMV em Portugal, as cirurgias odontológicas mais comuns em animais, de uma forma geral, talvez sejam extrações dentárias simples ou complexas, flaps de reconstrução e remoção de tumores.” No entanto, na sua clínica, a realidade é um pouco diferente, já que acredita que “é fundamental preservar a anatomia da cavidade oral”.
“Efetuamos com muita frequência gengivoplastias, pulpectomias — totais e parciais —e apicectomias como alternativa às extrações dentárias. Regularmente, efetuamos ainda a cirurgia de enxerto ósseo para evitar a progressão da doença periodontal. Mesmo quando já não é possível manter os dentes, normalmente os enxertos ósseos são fundamentais para evitar a retração gengival, perda progressiva do osso e eventual substituição do dente por implantes dentários. Por vezes temos de optar pelas extrações complexas de raízes retidas ou dentes inclusos”, acrescenta.
“Existe um avanço muito significativo também nos equipamentos dentários, o que confere um maior detalhe e rigor clínico nos tratamentos cirúrgicos da boca” – Bruno Tavares
Também a cirurgia de exérese de patologias orais oncológicas, segundo Bruno Tavares, é cada vez mais recorrente, “uma vez que a natureza da patologia já lhe confere um carácter urgente, no que diz respeito a gestão de margens cirúrgicas diminutas”, assim como a cirurgia ortognática, que é usada com o objetivo de reposicionamento maxilar ou mandibular, corrigindo a discrepância de oclusão e função temporomandibular, e a redução de fraturas mandibulares patológicas, uma realidade cada vez mais frequente “pelo agravamento da doença periodontal” observado em alguns animais.
Apesar de todas estas cirurgias serem já rotineiras, o médico veterinário explica que quando recebe animais referenciados por outros médicos veterinários, os problemas odontológicos tendem a ir muito além da doença periodontal, sendo a dor o que mais leva os tutores a procurarem tratamentos especializados. “A lesão das peças dentárias e dos tecidos de suporte ósseo são muito frequentemente causa de consulta, quer por traumatismos, infeção ou processos neoplásicos. Os defeitos de oclusão, com necessidade de ortodontia, são também comuns. Mas um dos problemas que identificamos com maior frequência nas consultas, sendo transversal à maior parte das patologias da boca, é a dor oral severa”, explica.
Investimento versus benefício
Questionado sobre a consciencialização dos tutores para estes problemas e a necessidade de os tratar, Bruno Tavares afirma que “a classe veterinária e as farmacêuticas tiveram um importante papel no sentido da sensibilização da patologia oral no cão, no gato e até no coelho”. E acrescenta: “Hoje os donos estão atentos, alerta e disponíveis para que lhe seja transmitido o tratamento mais adequado às necessidades da saúde oral do seu animal. Aceitar uma cirurgia odontológica, depende, claro, da capacidade de investimento versus benefício para o animal; mas mais importante que tudo isto, depende da compreensão do valor atribuído à decisão médica estabelecida.”
O investimento na prevenção, porém, segundo o médico veterinário, “é ainda um ponto sensível da área”, mas existem vários procedimentos veterinários de profilaxia, bem como produtos que comprovam a redução estatística dos problemas odontológicos: “Neste sentido verificamos que os donos manifestam vontade de melhorar a condição da boca dos seus animais. A escovagem com uma periocidade adequada, por exemplo, seria sempre a base da prevenção. No entanto, o investimento no tempo e consistência dedicados à prevenção é de facto o mais difícil e onde temos um caminho de sensibilização a percorrer.”
O diretor clínico da Clínica Veterinária da Boa Nova explica também que quando está em causa uma cirurgia, explicar aos tutores o resultado, de uma forma visual, pode ser meio caminho andado para que haja consentimento para o tratamento.
“Quando se mostra os benefícios dos procedimentos que vamos efetuar, é muito simples ter o consentimento dos tutores. Uma das coisas que começo a fazer cada vez mais frequentemente quando estamos a falar de alguma cirurgia mais avançada é recorrer ao digital dental design, mostrando a situação atual e como vai ficar, quer façamos o procedimento ou não. Se não fizermos isto, não temos compliance, mas se o fizermos, temos. É uma forma de mostrar know-how e experiência”, refere.
Além disso, acredita que “o terreno que os animais ganharam na vida das pessoas” está a fazer com que os tutores olhem com outros olhos para a necessidade de investir na saúde oral dos seus animais. “Eu sei que isto não é transversal a todas as áreas da medicina veterinária, mas a procura da estética, da saúde e do bem-estar são uma tendência. Pode ser transitório, mas acredito que as pessoas estão preocupadas com isto”, acrescenta.
A estética é, aliás, uma tendência em crescimento na odontologia veterinária, sobretudo no caso de animais de criadores. “Quando falamos de criadores, os cães precisam de ser exemplares perfeitos e a correção do posicionamento dos dentes e da superfície dos dentes, se tiverem alguma fratura na coroa, por exemplo, já é feita. Importa dizer que a correção ortodôntica, que acaba por se traduzir numa estética melhor, é um tratamento muito funcional. Quando temos dentes que não estão na sua posição normal e estão posicionados na direção da língua, por exemplo, pode ocorrer uma úlcera no palato. Este tipo de procedimentos envolvem ortodontia para corrigir a posição do dente para a sua posição natural e esteticamente ficamos com melhores resultados”, explica.
Bruno Tavares recebe também cada vez mais casos de outros médicos veterinários que, segundo ele, têm cada vez maior conhecimento sobre os procedimentos e termos técnicos da odontologia avançada, contudo, acredita que a formação atualmente existente na área “ainda não é suficiente para quem quer dar o salto”.
“Para quem quer passar do tratamento da doença periodontal, das destartarizações e das extrações para tratamentos mais avançados, é um pouco mais difícil. É preciso haver formação nesse sentido. Em todo o caso, vários colegas meus que trabalham nesta área têm feito formações na base da odontologia e tentam passar essas bases para outros. A partilha de conhecimento e de casos é muito importante”, defende.
Para os próximos anos, prevê mais especialização na área da odontologia veterinária e da cirurgia maxilofacial veterinária, mas também mais técnicas digitais associadas à odontologia. “Acho que nos próximos cinco anos haverá uma grande aposta na imagem, seja computorizada, seja ao nível da endoscopia, por exemplo. É algo que estamos a querer utilizar e já fizemos alguns testes. A endoscopia periodontal tem muito potencial. Quando estamos a fazer tratamento periodontal, já podemos também ver as bolsas periodontais com endoscópios que medem cerca de um milímetro. Podemos estar dentro das bolsas e conseguir ter melhor perceção do que estamos a fazer, evitando a cirurgia de retalho gengival aberto. A cirurgia minimamente invasiva é muito importante e provavelmente vai começar na doença periodontal. Isto já existe e muito provavelmente estes meios vão evoluir mais ainda e vão começar a chegar à veterinária. Economicamente, a odontologia é uma área da medicina veterinária muito rentável e que não estava muito explorada”, conclui.
* Artigo publicado originalmente na edição de março de 2020 da revista VETERINÁRIA ATUAL.