As análises ao sangue são fundamentais para o diagnóstico em medicina veterinária. A colheita de sangue implica a cooperação do animal, que nem sempre é a melhor, assim como a experiência e capacidade técnica de profissionais habilitados, sendo um procedimento difícil em animais debilitados. No dia a dia, esta colheita também se traduz em tempos de espera, maior mão-de-obra e desconforto para todos os intervenientes.
Correntemente, o sangue é analisado em máquinas de hemograma automáticas, que utilizam reagentes e consumíveis, e que implicam um investimento significativo em equipamento, e gestão de stocks. Para garantir uma qualidade dos resultados obtidos, também é necessário ter profissionais qualificados para trabalhar com os equipamentos. Nos consultórios veterinários, nas clínicas mais pequenas ou em trabalho de campo, as amostras de sangue são recolhidas e enviadas para um laboratório externo, implicando uma logística de transporte de amostras e um maior tempo de espera pelos resultados.
A tecnologia de «Point-of-Care» (POC) sem reagentes (‘Reagent-less’) permite efetuar a análise do sangue sem recurso a consumíveis ou reagentes, em tempo real (~1 a 3s), necessitando de uma única gota de sangue (Martins et al., 2019, Barroso et al., 2021, Barroso et al., 2022, Barroso et al., 2024). A tecnologia desenvolvida utiliza sistemas óticos patenteados, espectroscopia ultravioleta, visível e de infravermelho próximo ao espetro da luz visível, que capturam a informação espectral sobre a composição da amostra de sangue. Esta é depois ‘desembaralhada’ nos diferentes componentes do hemograma e relacionada com métodos de referência por algoritmos de inteligência artificial com auto-aprendizagem (Martins, 2021). Este processo permite determinar os componentes do hemograma de uma amostra desconhecida. Ao longo dos últimos 15 anos foi possível aperfeiçoar a tecnologia, para que hoje exista um POC democratizável, passível de andar no bolso de médicos veterinários, sendo utilizável tanto na prática clínica, como em condições severas de trabalho de campo. O POC atualmente disponível abre caminho para a introdução da medicina veterinária personalizada em ambulatório, e/ou casa do animal com necessidades de cuidados continuados, ou até em contexto de produção animal de precisão.
O sistema foi validado em ambiente clínico, tendo-se obtido as seguintes métricas de correlação (R) e erro total (ET): i. cão: glóbulos vermelhos (R=0,94, ET=6,39%), hemoglobina (R=0,95, ET=7,14%), hematócrito (R=0,93, ET=4,43%%); e ii. gato: glóbulos vermelhos (R=0,98, ET=5,67%), hemoglobina (R=0,99, ET=4,08%), hematócrito (R=0,98, ET=1,69%) (Barroso et al., 2021). O mesmo sistema demonstrou ser capaz de detetar um aumento de glóbulos brancos em cães (R= 0.85, ET=20,94%) e em gatos (R=0,84, ET=32,25%); neste caso, a capacidade de diagnóstico rondou os 80 a 100% nas duas espécies dentro dos intervalos de referência – seguindo os critérios da Sociedade Americana para a Patologia Clínica Veterinária (Barroso et al., 2022, Barroso et al., 2023).
Atualmente o sistema POC está a ser adaptado para a deteção precoce da mastite bovina, no projeto MyVet – um projecto SEED no INESC TEC (Centro de robótica industrial e sistemas inteligentes), que conta com a colaboração do ICBAS (Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar) e Segalab – Laboratório de sanidade animal e segurança alimentar. Neste projeto de investigação e desenvolvimento pretende-se criar um POC para trabalho de campo atuando ao nível da pecuária de precisão, bem-estar animal e diagnóstico médico-veterinário, permitindo: i. avaliar a qualidade do leite (ex. proteína e gordura totais, ureia, lactose); ii. deteção de mastites a partir da quantificação de células somáticas no leite; iii. efetuar o hemograma numa única gota de sangue que servirá como ferramenta para diagnosticar condições inflamatórias e avaliar a respetiva resposta imunitária. Estes dados serão processados de forma a ser possível detetar precocemente a mastite, evitando a progressão para mastite formas pré-clinicas ou clínicas. O projeto tem também como objetivo relacionar os dados do hemograma com a qualidade do leite e com parâmetros de produção leiteira, para relacionar a saúde e bem-estar de cada animal com a sua produtividade. Adicionalmente, a utilização deste sistema POC terá um primeiro teste piloto junto de produtores, por forma a compreender como poderá ser implementado um sistema de telemedicina com recurso a inteligência artificial que maximize a produtividade das explorações. É oportuno acrescentar que o sistema POC desenvolvido já tem várias patentes associadas, cobrindo diferentes invenções e componentes tecnológicos, estando a propriedade intelectual presente em vários territórios, como EUA, EU, Brasil, China e Japão.
Agradecimentos
Este trabalho de investigação foi financiado pelo prémio SEED project INESC TEC (5a Edição): ‘MyVet – Reagent-less point-of-care for veterinary blood analysis’.
Referências
- Barroso, T.G.; Queirós, C.; Monteiro-Silva, F.; Santos, F.; Gregório, A.H.; Martins, R.C. Reagentless Vis-NIR Spectroscopy Point-of-Care for Feline Total White Blood Cell Counts. Biosensors 2024, 14, 53. https://doi.org/10.3390/bios14010053
- Barroso, T.G.; Ribeiro, L.; Gregório, H.; Monteiro-Silva, F.; Neves dos Santos, F.; Martins, R.C. Point-of-Care Using Vis-NIR Spectroscopy for White Blood Cell Count Analysis. Chemosensors 2022, 10, 460. https://doi.org/10.3390/chemosensors10110460
- Barroso T.C., L. Ribeiro, H. Gregório, F. Santos, R.C. Martins. 2021. Point-of-care Vis-SWNIR spectroscopy towards reagent-less hemogram analysis, Sensors and Actuators B: Chemical, Volume 343, 130138, https://doi.org/10.1016/j.snb.2021.130138
- Martins et. al. 2019. US10209178B2 Optical system for parameter characterization of an element of body fluid or tissue.
- Martins RC. 2021. EP3776561. Spectrophotometry method and device for predicting a quantification of a constituent from a sample.
Autores*
Martins RC1,*, Costa A2, Pereira A3, Barroso TB4, Gregório H4, Pinho L2, Santos F1, Moura P1, Marcos R2,**
1INESC TEC—Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência—Campus da FEUP, Rua Dr. Roberto Frias, 4200-465 Porto, Portugal
2Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas, ICBAS, Rua de Jorge Viterbo Ferreira 228, 4050-313 Porto – Portugal
3Segalab – Laboratório de Saúde Animal e Segurança Alimentar, R. Cidade da Póvoa de Varzim 55, 4490-295 Argivai – Portugal
41H-TOXRUN—Unidade de Pesquisa em Toxicologia da Saúde Única, Instituto Universitário de Ciências da Saúde (IUCS), CESPU, CRL, 4585-116 Gandra, Portugal